O retrato está bem feito, duvido que a solução proposta seja a melhor.
MC Cunhas, favores e soluções
MC Cunhas, favores e soluções
Dantas Rodrigues
04/06/2016
Filhos do povo como
são, não admira que os nossos políticos tenham feito da “cunha” “negociação”,
dando desse modo legitimidade às suas inconfessáveis manobras
O ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, é mais um político a
contas com crimes no exercício de funções públicas. Suspeita-se que tenha usado
o seu cargo político para decidir em benefício de determinada entidade (crime
de prevaricação), e tenha aceitado determinada oferta para influenciar decisões
junto de certas entidades públicas (crime tráfico de influências).
Dito em duas palavras:
cumplicidades de “favores” e ”cunhas” que permitem lucrar com as prerrogativas
que oferecem os cargos públicos. Em linguagem bem portuguesa quer isto dizer:
“eu dou-te uma coisa a ti, se tu me deres uma coisa a mim…”
Os portugueses sempre
tiveram uma habilidade muito especial para a meter a sua “cunha” na esfera
pública, seja para conseguirem uma consulta médica, seja para o inspector
fechar os olhos aos seus negócios quando empregam trabalhadores ilegais. Aquele
inegável jeitinho para a pedinchice, aquela arte única para a conversa fiada,
é-lhes transversal e ninguém parece ficar incomodado com isso. Ou não fosse tão
genuinamente nosso aquele velho manhoso e popular aforismo que “quem não chora
não mama.”
Filhos do povo como
são, não admira, pois, que os nossos políticos tenham feito da “cunha”
“negociação”, dando desse modo legitimidade às suas inconfessáveis manobras,
transformando tudo ou quase tudo em legalidade, como seja, por exemplo,
convidar amigos para negociar em nome do Estado. Acham-se imunes, crendo que
são pessoas respeitáveis, vêem-se acima do comum dos mortais e, como tal,
julgam-se senhores de tudo, não se preocupando minimamente se transgridem a lei
ou se se entregam a vulgares práticas desonestas de poder.
Já sei, dir-me-ão, que
a política, com os ordenados que paga, não dá para enriquecer. Claro que não
dá, toda a gente sabe. Mas o que nem toda a gente imagina é o que dá o status,
o poder de estar ligado a ela, à dita política. Aos que não têm paciência para
esperar, gera dinheiro que até pode ser ocultado na conta offshore de um
qualquer amigo, e aos que tiverem paciência (até nem é preciso muita), podem
vir a ter o mundo a seus pés. Pense-se em percursos que começaram em simples
ministérios, passaram pelas altíssimas instâncias da União Europeia, já vão
agora nas influentes universidades privadas dos EUA e que, amanhã, só terão o
céu como limite.
Senhores do poder, os
políticos fazem amigos facilmente, de preferência amigos empresários, amigos a
quem não se pode negar um favor. Afinal é um pedido de amigo, não é verdade? De
“cunha” em “cunha” o barco vai navegando, fazendo com que os parcos recursos do
País sejam utilizados para incrementar o clientelismo, promover acordos e
ganhar concursos, outrora públicos, hoje muitos dos quais decididos por ajuste
direto. No fim de contas, pergunta-se, mas que mal existe em ser um amigo a
ganhar uma empreitada de obras públicas? Não estará essa empreitada, pelo facto
de ter sido entregue a um bom amigo, em boas mãos? Claro que está, dizem eles
entre si!
No fundo, vistas bem
as coisas, a corrupção até é vantajosa: ganha o empreiteiro, ganham os
trabalhadores do empreiteiro e ganha o político. Ganham todos, pensam eles!
Mas, como nunca podem ganhar todos, é uma utopia, quem perde é o pagador, que é
sempre o dinheiro público, porque no preço do contrato até o suborno costuma
ser incluído. Esta teia de vantagens é sempre tecida sobre regras de jogo que
desviam os recursos das necessidades sociais básicas, cria desigualdades na
distribuição de incentivos e no acesso aos mercados, interfere nos processos
eleitorais e promove e oculta outros crimes, muitos dos quais até de natureza
mais grave.
A ciência jurídica
debate-se com um importante problema, que é também uma interrogação: como é que
deve ser fiscalizado e controlado o exercício do poder público? Sempre defendi
um processo penal garantista, que proíba a obtenção de provas ilícitas e a
aplicação de penas excessivas e não ressocializantes. A realização da justiça
reside num «direito penal mínimo», isto é, em penas adequadas à conduta
criminosa, mas sujeitas a limites.
Dentro desse
enquadramento fazem falta, no nosso processo penal, dois instrumentos
fundamentais: o estatuto do arrependido e os acordos-sentença. O estatuto do arrependido
consiste na atribuição de um prémio de pena ao cúmplice ou ao autor de crimes
pela confissão e colaboração com a investigação judicial, permitindo desvendar
teias criminosas. O que colaborar com a investigação policial na identificação
dos demais autores ou cúmplices, desde que a informação seja realmente
importante e relevante, beneficiará de redução de pena, de pena em regime
aberto (RAVE) ou de perdão de pena.
Nos crimes económicos,
ou vulgarmente conhecidos por crimes de colarinho branco, é indispensável a
figura do arrependido.
Os acordos-sentença
consistem numa suspensão do processo judicial para o agente do crime, através
de um acordo quanto à pena a aplicar e ao montante da indemnização para
ressarcir os lesados, à semelhança da Plea Bargain do direito
norte-americano. Assim, o Ministério Público, ao encerrar o inquérito com a
elaboração do despacho de acusação, notifica os arguidos para, num prazo de
cinco dias, se pretenderem, iniciar a fase das negociações que se prolongaria
pelo prazo de 15 dias, visando a aplicação de uma pena que suspenderia o
processo judicial. Essa transação penal permitiria que as penas sugeridas pelo
Ministério Público fossem negociadas com os arguidos e seus mandatários, face
aos indícios probatórios carreados para os autos.
O acordo a que se
chegasse preveria sempre uma confissão parcial ou total dos factos descritos no
despacho de acusação: uma pena, suspensão da execução da prisão ou não,
dependendo da gravidade dos factos praticados, e ainda a perda das coisas, direitos
ou vantagens obtidas por via da prática dos factos ilícitos, ou o pagamento ao
Estado de uma compensação. O mesmo procedimento seria utilizado para as
empresas acusadas, aplicando-se-lhes penas de multa e compensações. O juiz
aferiria da validade da confissão dos factos pelos arguidos e competir-lhe-ia
homologar o acordo-sentença. Caso as negociações se iniciassem e, depois,
saíssem frustradas, o processo seguiria diretacmente para julgamento, não se
realizando a fase da instrução.
Eis como vejo que se
deverá atacar um dos cancros mais letais da sociedade portuguesa, a “cunha”, o
“favor”, “a mão que lava a outra”, que, em mãos de políticos e de seus amigos,
se transformam sempre em tráfico de influências. Se, pelo contrário, nada se
fizer, o que acontecerá é que a indiferença seguirá o seu pernicioso caminho e
ninguém mais acreditará nas instituições de um regime pasto da gula dos mais
improváveis apetites.
Advogado
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