O jornalismo tem razões para se arrepender
todos os dias
23/08/2016
Imaginem que o jornal online Observador, em vez de ser um órgão de
propaganda da direita neoliberal, criado e financiado por empresários
conservadores empenhados em impor na esfera política e em defender no espaço
público uma agenda de privatização de serviços públicos, desregulação económica,
liberalização do mercado de trabalho, destruição de direitos sociais e
demonização do Estado, fosse um projecto criado e financiado por pessoas
ligadas à esquerda, empenhadas em difundir um ideário de combate às
desigualdades e à injustiça social e em noticiar a actualidade a partir de um
ponto de vista socialmente empenhado e intelectualmente independente dos
poderes vigentes.
É evidente que, nessas
circunstâncias, não veríamos um elemento do Observador a ocupar um lugar
cativo nos painéis de comentadores da RTP e, se por acaso esse jornal fosse
alguma vez citado por outros órgãos de comunicação social, seria identificado
como “o jornal de esquerda Observador” ou “o jornal Observador,
ligado aos meios da esquerda radical” e os jornalistas que assim o identificassem
considerariam estar a fazer uma descrição não só objectiva mas necessária da
fonte em causa.
Porque é que isso não
acontece, simetricamente, e pelas mesmas razões, com o actual jornal Observador
e porque é que este não é sempre apresentado como “o jornal de direita Observador”
ou “o jornal Observador, ligado aos meios da direita radical”?
Isso acontece devido à
hegemonia do pensamento conservador que considera “normal” que se seja de
direita, e portanto não digno de ser sublinhado ou sequer referido, e “anormal”
que se seja progressista, e portanto exigindo referência que sublinhe esse
“desvio”. Para este pensamento hegemónico, ser de direita não é ser nada porque
essa é a posição “natural”, enquanto ser de esquerda é ser algo “não natural”.
Era precisamente pela mesma razão que, durante o Estado Novo, os apoiantes de
Salazar “não faziam política”, por muito radicais que fossem nesse apoio em
todas as facetas da sua vida, e os oposicionistas eram considerados
“políticos”.
É evidente que os
jornalistas, de direita ou de esquerda, sabem que é tão marcadamente ideológico
ser de direita como de esquerda, mas por que razão sublinham então uma coisa e
passam a outra em branco? Em certos casos, por mimetismo irracional. Muitos
querem apenas to blend in e seguem a onda, imitam os colegas, as
revistas, os famosos, os gurus que aparecem nos media – e estes são
esmagadoramente de direita mesmo quando “não falam de política”. Noutros casos,
por mimetismo premeditado. Querem apenas passar despercebidos e não pôr em
risco o seu posto de trabalho. Noutros casos por cálculo. Querem fazer
carreira, seja onde for, e aprenderam na escola de antijornalismo por onde
andaram que a adulação funciona e que não se pisam os calos dos poderosos.
Noutros caso por medo. A direita conservadora está no poder e tem o dinheiro, a
força e muito da lei do seu lado. Noutros casos, devido ao ritmo industrial de
produção imposto na maior parte das redacções, que obriga a aproveitar a informação
primária tal como chega de algum centro de poder e a republicá-la sem tempo
para a editar, reconstruir, verificar seja o que for ou sequer pensar. Noutros
casos por pura distracção, porque o vento reaccionário é tão constante que se
torna hipnótico. Noutros casos ainda, uma minoria, por consciente adesão a um
modelo ideológico que se pretende reproduzir.
Estas circunstâncias
têm todas algo em comum. São todas contrárias à deontologia que rege o
jornalismo, que obriga a uma total independência dos poderes e à adopção de uma
atitude de equidade e saudável cepticismo em relação à informação recebida das
fontes, oficiais ou não.
Seja qual for a razão
em cada caso particular, é por isso que continuamos a ver os noticiários cheios
de citações nunca contraditadas de Pedro Passos Coelho, diga este as inanidades
que disser no seu escasso léxico e por frágil que seja a sua situação política
no interior do partido, e é por isso que qualquer pergunta a um político de
esquerda está sempre dedicada a tentar encontrar brechas no entendimento
parlamentar à esquerda, mesmo quando elas têm de ser inventadas por uma edição
imaginativa. Porquê? Porque é preciso sublinhar, em cada momento, a
contranaturalidade de um governo apoiado pela esquerda. Pensamento hegemónico
da direita dixit. É também por isso que os pivots fazem uma
careta quando dizem o nome de um dirigente do PCP mas não quando dizem o nome
de um dirigente do PSD, numa demonstração de sectarismo que pode ser
inconsciente, mas não é por isso menos sectária. É por isso que, numa
entrevista de Catarina Martins publicada neste jornal, tem de ser
colocada em título uma frase que dá a ideia contrária ao pensamento expresso
pela entrevistada (dando a impressão de que, se fosse hoje, o BE não assinaria
o acordo com o PS) mas que é conforme ao ar do tempo,
sempre hegemónico, da direita.
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