Os hábitos da
servidão
Alguém
escolheu Moscovici para ministro das Finanças de Portugal, responde acaso
perante o nosso Parlamento, vai a votos nas urnas, foi eleito pelos
portugueses?
26 de Maio
de 2018 JPPereira
A gente habitua-se a tudo e não devia habituar-se. Bem sei que, como no anúncio da CNN sobre os
factos (uma maçã) e as falsidades (bananas), há um terceiro elemento que é uma
daquelas dentaduras
de brinquedo a que se dá corda e passa gloriosa e barulhenta diante da maçã:
chama-se “distracção”. Temos demasiadas distracções que fazem uma cortina para
nos impedir de ver os factos e, não os vendo, não os escrutinamos, nem os
analisamos, nem tiramos consequências. Aqui é um exército de dentaduras a bater
os dentes, ou seja, mais do que uma distracção, é uma política.
Esta semana, a Comissão Europeia fez mais uma das suas habituais conferências
de imprensa pronunciando-se sobre a governação de Portugal. Insisto na
caracterização: pronunciando-se sobre o modo como Portugal é governado, um país
soberano, com um governo apoiado numa maioria parlamentar, que deveria
responder em primeiro e quase único lugar perante a Assembleia da República e
os portugueses. As coisas já estão tão envoltas em fumo, que nós achamos normal
que um político socialista francês, antigo trotsquista, um dos responsáveis
pelo afundamento a pique do seu partido, agora investido na burocracia
europeia, se pronuncie, com a maior normalidade, sobre o que acha bem ou acha
mal no modo como Portugal é governado. Alguém escolheu Moscovici para ministro
das Finanças de Portugal, responde acaso perante o nosso Parlamento, vai a votos
nas urnas, foi eleito pelos portugueses? Não, não e não, três nãos. E, no
entanto, estas perguntas são aquelas que deveríamos fazer, se tivéssemos os
olhos abertos.
O que ele está a fazer chamava-se, na diplomacia antiga, “droit de
regard”, ou seja, o “direito de exercer um controlo sobre qualquer coisa”,
como a Inglaterra tinha sobre Portugal nos tempos do Ultimato, na verdade,
antes e depois, como os EUA queriam exercer no pós-25 de Abril, como a URSS
tinha na Finlândia, ou com a teoria da “soberania limitada” que justificou a
invasão da Checoslováquia, por aí adiante com centenas de exemplos, nenhum bom.
Não adianta dizer “como os portugueses o desejaram quando entraram para a
Europa”. Falácias, porque muito do que é hoje a União Europeia pouco tem que
ver com o projecto inicial, muito do que se diz serem as “regras europeias” não
o são, estão em tratados que não são “europeus”, e outros que foram “vendidos”
aos europeus com dolo, como sendo uma coisa, quando, afinal, são outra.
Lembram-se como o Tratado de Lisboa era um marco na devolução de poderes aos
parlamentos nacionais? Não, não se lembram, porque este tipo de embustes é
suportado por tantos interesses, da comunicação social aos negócios, à
política, que nem sequer se pára para pensar. Depois admiram-se com o crescendo
do populismo e do antieuropeísmo na Europa, como se não tivessem nada que ver
com o monstro que ajudaram a criar.
Se quiserem perceber como é que a Europa chegou ao estado a que chegou,
ouçam Moscovici sem distracções. O que ele e os outros comissários dizem não é
uma neutra especulação económica, nem a aplicação de uma vulgata “científica”
da economia – é um conjunto de recomendações, ao estilo de ordens, de carácter
político. Político. Político. Deixem lá a dentadura passar que a maçã continua
lá atrás: político. Porque Moscovici não fala de todos os problemas
portugueses, fala da ortodoxia (aliás, partilhada com o nosso ministro das
Finanças) da economia do “ajustamento”, o rastro das ideias e práticas da troika.
Ele nunca diz que um problema dos portugueses é o alto nível de pobreza, são as
desigualdades sociais ou os salários baixos, ou a degradação dos direitos
sociais, ou o caos nos serviços públicos a começar pela Saúde. Não, o que ele
diz é: não comecem a gastar demais com a Saúde, olhem para a despesa antes de
tudo, e claro que recomenda que “racionalizem” a despesa, coisa que sabemos
pela experiência da troika o que significa. Ele não está
preocupado com o facto de os portugueses poderem ser vítimas das políticas de
“poupança” (o eufemismo para os cortes) na Saúde – o que o preocupa é que a
agitação social dos utentes e dos profissionais possam levar o Governo a gastar
mais nos hospitais. Porque é que tenho a certeza que, se fosse para os bancos,
ele não diria o que disse?
Por tudo isto, o pior é habituarmo-nos. Não é democrático, não é aceitável,
não é normal. Defendamos a maçã da pilha de bananas, e tiremos a corda à
dentadura, antes de gentilmente a mandarmos para o lixo