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O Estado iníquo
do povo justo e a embaixada fora da lei
Israel nasceu
torto e por este andar não vejo como alguma vez se vai endireitar.
23 de Maio
de 2018
Fernando D´Oliveira
Neves
Bastaria Jesus Cristo, que era judeu, e ao enunciar a igualdade inventou o
humanismo, para adjectivar de justo o povo judeu. Mas o reino de Cristo era de
outro Mundo. Também poderia bastar o contributo que o povo judeu deu, em todos
os campos, para a civilização dita ocidental. Mas é sobretudo a perseguição
odiosa, infame e insuportável de que foi objecto ao longo da História por parte
desse mesmo ocidente cristão, e bem assim a resistência sublime que lhe soube
opor, que me leva a querer apodar os judeus de povo justo. O que me leva a
sentir sufocado pela injustiça que a política do Estado de Israel faz à sua
memória e aos valores humanistas que são a marca do sofrimento dos judeus e da
revolta que com eles partilhamos.
Israel nasceu torto e por este andar não vejo como alguma vez se vai
endireitar. O terrorismo foi um dos vectores da criação do Estado de Israel,
juntamente como um efectivo lobby político e o justificado
sentimento de culpa por parte dos europeus, culpados do crime repugnante da
perseguição milenar aos judeus que atingira a infâmia total com o Holocausto.
Como também à irresponsável tibieza do governo britânico que, mais uma vez,
brincou aos deuses ao decidir o destino das suas colónias. Tirou literalmente
das suas casas cerca de 800 mil árabes que lá viviam para nelas colocar judeus.
Literalmente, insisto. Ouvi discussões entre palestinos nascidos em Jerusalém e
judeus, nascidos na Bulgária ou na Polónia, que ocupavam a casa
daqueles.
Seguramente era justo, após todo o sofrimento infligido aos judeus,
procurar-lhes uma terra onde pudessem construir a sua pátria e aí viver em
segurança. O problema é que foi escolhido um território ocupado por outro povo
e assim se criou, artificialmente, mais uma disputa entre dois povos pelo mesmo
território.
A decisão das Nações Unidas passou pela criação, nesse território, de dois
Estados, com Jerusalém dividida sob a autoridade internacional. Os árabes não
aceitaram essa solução, pois, como disse Ben-Gurion, primeiro primeiro-ministro
de Israel, se fosse palestino também não aceitaria negociar entregar a sua
terra aos judeus, pois não foram eles que os expulsaram de Israel, não é deles
o Deus que prometera Israel aos judeus e não tinham sido os árabes que haviam
perseguido os judeus e perpetrado o Holocausto.
A oposição árabe não foi, porém, suficiente para impedir a criação do
Estado de Israel, nem a expulsão dos 800 mil palestinos que ainda hoje vivem em
campos de refugiados, verdadeiros viveiros de ódio, que foram contaminar os
países vizinhos, alguns dos quais passaram a ser teatro de guerras alheias.
Se ainda hoje se fala dos dois Estados como solução para o problema do
Médio Oriente, a verdade é que a sucessão de guerras, a ocupação por Israel da
margem ocidental e o sucessivo estabelecimento estratégico de colonatos
israelitas ilegais inviabiliza, na prática, a criação ali de um Estado
palestino.
Israel não se coibiu de conduzir esse processo em arrogante desafio ao
Direito internacional e ignorando as sucessivas resoluções do Conselho de
Segurança das Nações Unidas. É, aliás, impressionante a lista dessas resoluções
que Israel não cumpriu.
No final dos anos setenta, após várias guerras, o processo de consolidação
da posição de Israel nos territórios ocupados e o início da criação dos
colonatos estava em pleno progresso.
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Em Junho de 1980, preocupado com a denúncia de que Israel estava a preparar
legislação para alterar o estatuto da Cidade Santa, o Conselho aprovou a
resolução 476, que reafirmou a condenação da aquisição de território pela força
e a inalterabilidade do estatuto de Jerusalém. Com a sua habitual indiferença
perante a lei e a justiça, o governo de Israel aprovou logo a seguir a anexação
de Jerusalém Leste.
Portugal ocupava então, pela primeira vez, um lugar no Conselho de
Segurança e eu, no primeiro posto da minha carreira, integrava a delegação
portuguesa, onde tinha, sob a orientação elucidada do embaixador Leonardo
Mathias, a questão do Médio Oriente. No dia seguinte à anexação andava eu pelos
passos perdidos das Nações Unidas, onde a deliberação israelita tinha
naturalmente provocado grande alvoroço e se discutia um violento projecto de
resolução, apresentado pelo grupo árabe, em resposta a essa flagrante infracção
da legalidade. Com a ajuda do sr. Ascenção, funcionário permanente da nossa
Missão, que conhecia a ONU como as mãos dele, fomo-nos dando conta que apesar
do clima de justa e radicalizada indignação, havia entre os árabes quem tivesse
a percepção de que seria mais vantajoso, para a causa palestina, tentar obter
uma resolução moderada, do que apresentar o tal projecto que garantia o veto
americano, visto que a política americana para o Médio Oriente é refém da
política delinquente de Israel.
A delegação portuguesa era chefiada pelo embaixador Vasco Futscher Pereira,
o mais distinto embaixador da sua geração, que ocupava, nesse mês de Agosto de
1980, a presidência do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. Ao fim da
tarde, o embaixador reunia os membros da delegação no gabinete da presidência
no próprio edifício da ONU. Fui para essa reunião com o intuito de transmitir a
ideia de que seria possível conseguir aprovar, na nossa presidência, uma
resolução moderada. Mas o embaixador estava furioso, o que era nele muito raro,
com a reacção dos árabes, não ligou muito aos meus argumentos e disse que não
tencionava tomar qualquer iniciativa nesse sentido.
Fui para casa cabisbaixo, pois estava absolutamente convencido de que, como
aliás se veio a verificar, haveria condições para aprovar uma resolução e
estávamos a perder uma ocasião única para que a nossa presidência granjeasse o
reconhecimento da quase (Israel) unanimidade dos membros das Nações Unidas.
No dia seguinte de manhã, estava eu desanimado no meu gabinete quando o
embaixador Futscher irrompe por ali a dentro e me manda ligar para o embaixador
Terzi, representante da OLP junto da ONU. Eu ainda esbocei a minha surpresa face
ao dia anterior, mas Futscher diz-me “deixa-te de coisas e faz o que te digo”,
o que fiz com entusiasmo. E convocou para essa tarde, já com o acordo dos
palestinos, um reunião com os cinco membros ocidentais do CS (além de nós e dos
três permanentes, a Noruega) e o embaixador da Tunísia, país moderado e também
membro do CS.
Foi uma reunião dura, longa e fascinante. Os americanos enviaram à reunião
um diplomata sénior, que logo que chegou se sentou com os braços cruzados e um
ar contrariado que parecia querer manifestar distância em relação à posição que
foi defendida pelo colega da Missão americana que o acompanhava. Este era nada
mais, nada menos que um advogado judeu (!). Foi com ele que durante horas
prosseguiu a discussão com os restantes membros ocidentais do Conselho. A certa
altura, Futscher sai por um momento da sala. Um pouco depois de ele regressar
entra uma secretária que vai dizer ao embaixador da Tunísia que havia um
telefonema para ele. Mal o tunisino sai, redobra a pressão para o americano ceder
e aceitar não vetar o projecto de resolução que lhe tínhamos apresentado e
estava a ser discutido. Passada uma boa meia hora, Futscher chama-ma e diz-me
“vai ter com o tunisino, que deve estar farto de estar à espera”. Então mas ele
não está ao telefone?, pergunto eu. “Não, fui que inventei isso para podermos
ser mais veementes com o americano.” E foi assim que alcançámos o desfecho que
pretendíamos, só possível graças à brilhante perícia diplomática de Futscher
Pereira.
Foi assim aprovada, na presidência portuguesa de Agosto de 1980, a
resolução 478, que sancionava e considerava nula e de nenhum efeito pela lei
internacional a anexação por Israel de Jerusalém Leste e pedia aos países que
ainda tinham embaixada em Jerusalém para a retirarem para Telavive. Resolução
que agora os Estados Unidos vêm contrariar, violando a lei internacional e
cedendo à política de força e discriminação étnica que Israel insiste em
prosseguir e me surpreende como a menos adequada para honrar a memória dos
judeus que foram perseguido ao longo da História e que pereceram na ignomínia
do inferno do Holocausto.
Embaixador reformado
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