Intoxicação pelo
futebol
Jorge Miranda
O futebol
transformou-se, entre nós, num lamentável instrumento de deseducação e de
alienação (para não dizer mais).
24 de Maio
de 2018
Os recentes acontecimentos num determinado clube têm mostrado, de forma
espantosa, até onde pode ir a intoxicação pelo futebol. Não nego a gravidade
dos incidentes ocorridos em Alcochete, mas, para além de tudo mais,
verificam-se em Portugal e no mundo situações muito mais graves, preocupantes e
complicadas de que quase se não tem falado ou de que deixou mesmo de se falar.
No tempo de Salazar, dizia-se que o futebol era uma forma de afastar as
pessoas da política. Agora, ao fim de mais de quarenta anos de democracia, o
poder do futebol atingiu níveis insuspeitáveis. Basta reparar no número de
jornais diários a ele dedicados; no espaço e no tempo que ocupa nos outros
órgãos de comunicação social, em particular na televisão; no relevo dado, nos
noticiários da rádio e da televisão, aos seus dirigentes, treinadores e
jogadores, muito superior ao atribuído a outros agentes da nossa vida coletiva
e a dirigentes políticos; nas transmissões frequentes de jogos (até entre
equipas estrangeiras) nos chamados horários nobres; nos cafés e restaurantes,
por esse país fora, abertos para acompanhar os jogos ou os treinos.
O futebol transformou-se, entre nós, num lamentável instrumento de
deseducação e de alienação (para não dizer mais).
Tem que se reconhecer que o fenómeno, em maior ou menor escala, se observa
igualmente em todos os países europeus e da América Latina; que os campeonatos
internacionais vêm adquirindo uma importância também política imensa; que a
FIFA acaba por ser um importante centro de influência e de poder. Apenas duvido
de que, em qualquer outro país, aqueles acontecimentos e as vicissitudes
subsequentes no referido clube ocupassem horas e horas, dias e dias em todas as
estações de rádio e de televisão e que até titulares de órgãos de soberania
fossem chamados a pronunciar-se.
Em vez disso, que atenção tem prestado a RTP, estação oficial, paga pelos
contribuintes, a questões como a da OPA de uma empresa estatal chinesa sobre a
EDP, fundamental empresa estratégica portuguesa? Quanto tempo tem dedicado à situação
do serviço nacional de saúde ou da justiça, às desigualdades do interior, à
crise do sistema ferroviário? Quantos debates entre especialistas tem promovido
acerca da paternidade responsável, da gravidez de substituição, da eutanásia?
Que atenção tem prestado aos dramas dos Palestinianos e dos venezuelanos, às
guerras na Síria, no Afeganistão ou na Somália? Como tem discutido a vaga de
nacional-populismo em vários Estados da União Europeia? Como tratou dos ataques
terroristas a igrejas na Indonésia?
A RTP – e, designadamente, a RTP1 (o seu canal generalista e o mais visto pelas
pessoas) tem de se reorientar e mudar. Tem (sem prejuízo da RTP2) de se abrir à
cultura, com programas periódicos (mais ou menos breves ou longos, consoante os
casos) sobre a língua portuguesa, sobre os museus e monumentos, sobre as artes,
sobre o folclore, sobre a história, sobre o mar. Deveria contribuir para a
sensibilização ambiental. Deveria estar mais voltada para a realidade
religiosa, na diversidade de crenças e de vivências, não deixando de ser uma
estação laica. Deveria acompanhar mais de perto os trabalhos do Parlamento, em
plenário e em comissões dentro do pluralismo político.
Não se trata, resta acrescentar, de fugir ao futebol, em especial quando se
aproxima mais um Campeonato do Mundo. Trata-se apenas de lhe dar o lugar que
num Estado democrático empenhado constitucionalmente em promover a efetivação
dos direitos económicos, sociais e culturais, lhe pode caber. Tudo com conta,
peso e medida. Tudo com equilíbrio.
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