sexta-feira, 25 de maio de 2018

FUTEBOL : ANESTESIA NACIONAL


Intoxicação pelo futebol
Jorge Miranda
O futebol transformou-se, entre nós, num lamentável instrumento de deseducação e de alienação (para não dizer mais).
24 de Maio de 2018

Os recentes acontecimentos num determinado clube têm mostrado, de forma espantosa, até onde pode ir a intoxicação pelo futebol. Não nego a gravidade dos incidentes ocorridos em Alcochete, mas, para além de tudo mais, verificam-se em Portugal e no mundo situações muito mais graves, preocupantes e complicadas de que quase se não tem falado ou de que deixou mesmo de se falar.

No tempo de Salazar, dizia-se que o futebol era uma forma de afastar as pessoas da política. Agora, ao fim de mais de quarenta anos de democracia, o poder do futebol atingiu níveis insuspeitáveis. Basta reparar no número de jornais diários a ele dedicados; no espaço e no tempo que ocupa nos outros órgãos de comunicação social, em particular na televisão; no relevo dado, nos noticiários da rádio e da televisão, aos seus dirigentes, treinadores e jogadores, muito superior ao atribuído a outros agentes da nossa vida coletiva e a dirigentes políticos; nas transmissões frequentes de jogos (até entre equipas estrangeiras) nos chamados horários nobres; nos cafés e restaurantes, por esse país fora, abertos para acompanhar os jogos ou os treinos.
O futebol transformou-se, entre nós, num lamentável instrumento de deseducação e de alienação (para não dizer mais).
Tem que se reconhecer que o fenómeno, em maior ou menor escala, se observa igualmente em todos os países europeus e da América Latina; que os campeonatos internacionais vêm adquirindo uma importância também política imensa; que a FIFA acaba por ser um importante centro de influência e de poder. Apenas duvido de que, em qualquer outro país, aqueles acontecimentos e as vicissitudes subsequentes no referido clube ocupassem horas e horas, dias e dias em todas as estações de rádio e de televisão e que até titulares de órgãos de soberania fossem chamados a pronunciar-se.
Em vez disso, que atenção tem prestado a RTP, estação oficial, paga pelos contribuintes, a questões como a da OPA de uma empresa estatal chinesa sobre a EDP, fundamental empresa estratégica portuguesa? Quanto tempo tem dedicado à situação do serviço nacional de saúde ou da justiça, às desigualdades do interior, à crise do sistema ferroviário? Quantos debates entre especialistas tem promovido acerca da paternidade responsável, da gravidez de substituição, da eutanásia? Que atenção tem prestado aos dramas dos Palestinianos e dos venezuelanos, às guerras na Síria, no Afeganistão ou na Somália? Como tem discutido a vaga de nacional-populismo em vários Estados da União Europeia? Como tratou dos ataques terroristas a igrejas na Indonésia?

A RTP – e, designadamente, a RTP1 (o seu canal generalista e o mais visto pelas pessoas) tem de se reorientar e mudar. Tem (sem prejuízo da RTP2) de se abrir à cultura, com programas periódicos (mais ou menos breves ou longos, consoante os casos) sobre a língua portuguesa, sobre os museus e monumentos, sobre as artes, sobre o folclore, sobre a história, sobre o mar. Deveria contribuir para a sensibilização ambiental. Deveria estar mais voltada para a realidade religiosa, na diversidade de crenças e de vivências, não deixando de ser uma estação laica. Deveria acompanhar mais de perto os trabalhos do Parlamento, em plenário e em comissões dentro do pluralismo político.
Não se trata, resta acrescentar, de fugir ao futebol, em especial quando se aproxima mais um Campeonato do Mundo. Trata-se apenas de lhe dar o lugar que num Estado democrático empenhado constitucionalmente em promover a efetivação dos direitos económicos, sociais e culturais, lhe pode caber. Tudo com conta, peso e medida. Tudo com equilíbrio.

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