As outras
“baixas densidades”
Os poderes
locais vivem numa quase impunidade, irregularidades e ilegalidades sendo moeda
corrente...
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15 de Maio
de 2018
J.-M. NOBRE-CORREIA
Ser imperial e centralista é a tendência natural de Lisboa: os últimos
séculos provam-no sobejamente. Foi-o em relação aos territórios de além-mar. E
continua a sê-lo em relação ao Portugal “do interior”, para além do território
que considera ser a sua inevitável área de expansão.
Com o regresso da democracia, a situação não mudou de maneira claramente
percetível. E os projetos atuais de descentralização municipalista, sem criação
de regiões, acentuarão ainda mais a situação dos pequenos potentados locais que
se comportam como reizinhos da terra.
A verdade é que a desgraça económica, social, cultural e demográfica em que
se encontram as regiões de “baixa densidade” não são só fruto da tendência
imperial e centralista de Lisboa. A situação convém perfeitamente a notáveis
locais que vivem assim em grande impunidade no que diz respeito ao Estado de
direito, às suas leis e aos seus regulamentos. Porque os poderes executivo e
legislativo nacionais não sabem o que por cá se passa. E porque os media ditos
nacionais também o ignoram.
O “pessoal político” que ocupa os postos de comando da sociedade portuguesa
é em grande parte oriundo de Lisboa ou residente a maior parte do tempo em
Lisboa. Mesmo quando se faz eleger em distritos eleitorais “do interior” de que
tudo ignoravam e de que tudo continuaram largamente a ignorar, pois não vivem a
vida quotidiana dos que cá residem realmente. Mesmo se não têm pejo algum em
declarar residirem “no interior” e assim usufruírem das benesses financeiras do
Estado e das suas “ajudas de custo”. Sejam embora os endereços declarados
muitas vezes fictícios e que os que cá vivem e trabalham nunca ou quase nunca
os por cá vejam.
Este sistema político aberrante que permite que sejam eleitos (a nível
nacional como local) gente que de facto não reside (e até, por vezes, nunca
residiu) nos círculos eleitorais que vão representar, não favorece a tomada de
conhecimento pelas instituições centrais do Estado das ilegalidades e
irregularidades praticadas quotidianamente a nível local. E a função de
contra-poder, que é uma das razões de ser dos media, também ela é
pouco ou nada exercida.
A fragilidade dos media locais, nomeadamente em termos
jornalísticos, faz que tenham em boa parte dos casos caído mais ou menos
indiretamente nas mãos dos eleitos locais, passando a ser quase sempre boletins
oficiosos da ação destes. Enquanto que para os media ditos
nacionais “o interior” é uma zona cinzenta da informação, dispondo raramente de
correspondentes locais e vendendo cá os jornais um número irrisório de
exemplares.
Desde logo, as chamadas autoridades locais vivem numa quase-impunidade.
Constituindo as suas redes de exercício do poder, fazendo eleger funcionários
municipais como presidentes de juntas de freguesia, de corporações de
bombeiros, de instituições bancárias regionais, de misericórdias, de
instituições culturais, de associações desportivas ou de lazer... De tal modo
que toda e qualquer crítica positiva ou mera oposição seja muito simplesmente
impossível.
A articulação entre instituições locais assim arquitetada faz que todos os
abusos, ilegalidades e irregularidades passem a ser prática corrente. Os
departamentos da administração local agem assim com total desenvoltura perante
os cidadãos, não respondendo sequer às diligências destes, ignorando
soberanamente cartas registadas ou aviso de receção e mesmo diligências de
advogado. Enquanto que os dossiês legalmente consultados pelos cidadãos são
escandalosamente traficados de uma consulta para a outra, com a substituição de
documentos e o desaparecimento de outros, em função dos reparos do dito
interessado.
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Neste tipo de situações, em Lisboa e até, sejamos
benevolentes, no litoral centro-norte do país, haveria sempre alguma “fuga”
generosa que chegaria a “jornalistas de investigação”para fazer rebentar uma
“exclusividade” picante. No Portugal “do interior”, os escândalos de
administrações locais caiem no silêncio da indiferença da política, da justiça
e do jornalismo. E os pequenos potentados locais querem que assim continue a
ser, de modo a que possam reinar soberanamente na “sua” freguesia” ou, melhor
ainda, no “seu” concelho...
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de
Bruxelles
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