Ai Portugal, Portugal
Hoje safámo-nos por pouco. Com Ana Gomes a derrotar a
extrema-direita, evitou-se o “desastre à francesa” e há ainda aqui muito que é
reversível — se se aprenderem as lições destas eleições e se volte a dar uma
estratégia compreensível para o futuro deste país. Ai Portugal, Portugal. Do
que é que tu estás à espera?
Oxalá
aprendessemos as lições. Umas eleições organizadas em pleno pico da pandemia,
numa teimosia formalista que nem dezenas ou centenas de milhares de portugueses
impedidos de exercerem o seu voto por estarem infetados ou em isolamento
profilático conseguiu aplacar. Um Presidente que desvalorizou o ato eleitoral
ao ponto de nem sequer produzir para ele tempos de antena. Um primeiro-ministro
e líder do maior partido que desvalorizou ainda mais e ainda antes as eleições
presidenciais, dando o seu resultado por adquirido e forçando o seu partido a
não assumir uma posição de apoio a
uma candidatura. Uma
direita que deixou que se normalizasse no seu seio uma extrema-direita perante
a qual não consegue formar um cordão sanitário e sem a qual não conseguirá, já
nas próximas eleições autárquicas, formar muitas maiorias pelo país fora. E,
finalmente, uma esquerda que depois de ter tido dois terços dos votos ainda há
ano e meio, porque o eleitorado então validou nas urnas a convergência da
“geringonça” e deu à esquerda partidária a maior maioria parlamentar desde o 25
de abril, está de novo enredada nos seus taticismos e curto-prazismos, como
demonstrado pela votação no último orçamento e pela apresentação de
candidatos partidários para ocupar espaço partidário numas eleições que — como
quer a Constituição tantas vezes citada — têm uma natureza não-partidária.
As
lideranças políticas do país — nos órgãos de soberania como nas direções dos
partidos tradicionais — quiseram que estas eleições fossem só para cumprir
calendário. Esqueceram-se, ou fingiram esquecer-se, do essencial: que uma
eleição por sufrágio direto e universal numa época de várias crises em
simultâneo será sempre um sinal político impossível de desvalorizar. E as
eleições deste domingo deixaram Portugal à beira do abismo, com uma direita em
crise profunda, canibalizada pela sua extrema-direita, e uma esquerda sem saber
o que fazer ao mandato que lhe foi dado em 2019, deixando o seu eleitorado
desmobilizado e angustiado com a ascensão da extrema-direita e a falta de rumo
estratégico do país.
À hora a que
escrevo, a queda no abismo só não se deu graças a Ana Gomes, que ainda há poucos meses tinha
todas as razões, em particular pessoais, para não querer avançar. Antes de Ana
Gomes avançar para estas eleições, todas as sondagens durante o último ano
davam o candidato da extrema-direita à frente dos candidatos partidários da
esquerda. Se Ana Gomes tivesse faltado a estas eleições, o candidato da
extrema-direita teria ficado em segundo e estaríamos agora face ao
cenário do desastre francês de
2002 que,
ao que tudo indica, só teremos evitado in extremis.
Ouviremos
todo o tipo de justificações partidárias para que a convergência à
esquerda não se
tivesse feito. Depois de dadas essas justificações, o que ficará por esclarecer
é o seguinte: já se esqueceram que, em 1996, quando Sampaio ganhou as eleições
contra Cavaco Silva, foi também graças a uma desistência de Jerónimo de Sousa?
Já se esqueceram que ainda há poucos anos o BE apoiava o candidato oficial do
PS, Manuel Alegre, em pleno consulado de José Sócrates? O que se passou para
terem esquecido essas lições? Será Ana Gomes menos à esquerda do que Alegre ou
Sampaio? Já se esqueceram de todas as vezes que a elogiaram para contrapor a um
PS oficialista? Já pensaram na vantagem estratégica que teria sido apoiar uma
candidatura na esquerda do PS, entrando no seu eleitorado, cilindrando o
candidato da extrema-direita, ganhando espaço para temas tão essenciais como a
transparência, a justiça, a igualdade e a ecologia no debate no interior da
maioria parlamentar de esquerda? Não é só o que se perde por não fazer a convergência
— é também o que não se ganha.
A esquerda
terá agora cinco anos para reaprender a ganhar eleições presidenciais, coisa
que parece ter esquecido há duas décadas. Mas antes disso há algo de muito mais
urgente e importante: o que fazer aos últimos dois anos e meio desta
legislatura, sustentada por uma maioria de esquerda que não é capaz de assinar
um papel em conjunto com uma estratégia para o país. Se a esquerda não entender
que tem de arrepiar caminho na forma como (não) está a usar a sua maioria, se continuarmos
a ver as jogadas meramente táticas para romper com a “geringonça”, um dia
acordaremos com uma maioria de direita, apoiada na extrema-direita, tendo os maiores fundos
europeus de sempre para
gastar — e se a esquerda detestou Cavaco como primeiro-ministro, que se
prepare para pior.
Se a esquerda não entender que tem de arrepiar caminho
na forma como (não) está a usar a sua maioria, um dia acordaremos com uma
maioria de direita, apoiada na extrema-direita, tendo os maiores fundos
europeus de sempre para gastar
Hoje safámo-nos
por pouco. Com Ana Gomes a derrotar a extrema-direita, evitou-se o “desastre à
francesa” e há ainda aqui muito que é reversível — se se aprenderem as lições
destas eleições e se volte a dar uma estratégia compreensível para o futuro
deste país. Ai Portugal, Portugal. Do que é que tu estás à espera?
O autor
escreve segundo o novo acordo ortográfico
Historiador; fundador
do Livre
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