terça-feira, 26 de janeiro de 2021


 

Ai Portugal, Portugal

Hoje safámo-nos por pouco. Com Ana Gomes a derrotar a extrema-direita, evitou-se o “desastre à francesa” e há ainda aqui muito que é reversível — se se aprenderem as lições destas eleições e se volte a dar uma estratégia compreensível para o futuro deste país. Ai Portugal, Portugal. Do que é que tu estás à espera?

Rui Tavares

Oxalá aprendessemos as lições. Umas eleições organizadas em pleno pico da pandemia, numa teimosia formalista que nem dezenas ou centenas de milhares de portugueses impedidos de exercerem o seu voto por estarem infetados ou em isolamento profilático conseguiu aplacar. Um Presidente que desvalorizou o ato eleitoral ao ponto de nem sequer produzir para ele tempos de antena. Um primeiro-ministro e líder do maior partido que desvalorizou ainda mais e ainda antes as eleições presidenciais, dando o seu resultado por adquirido e forçando o seu partido a não assumir uma posição de apoio a uma candidatura. Uma direita que deixou que se normalizasse no seu seio uma extrema-direita perante a qual não consegue formar um cordão sanitário e sem a qual não conseguirá, já nas próximas eleições autárquicas, formar muitas maiorias pelo país fora. E, finalmente, uma esquerda que depois de ter tido dois terços dos votos ainda há ano e meio, porque o eleitorado então validou nas urnas a convergência da “geringonça” e deu à esquerda partidária a maior maioria parlamentar desde o 25 de abril, está de novo enredada nos seus taticismos e curto-prazismos, como demonstrado pela votação no último orçamento e pela apresentação de candidatos partidários para ocupar espaço partidário numas eleições que — como quer a Constituição tantas vezes citada — têm uma natureza não-partidária.

As lideranças políticas do país — nos órgãos de soberania como nas direções dos partidos tradicionais — quiseram que estas eleições fossem só para cumprir calendário. Esqueceram-se, ou fingiram esquecer-se, do essencial: que uma eleição por sufrágio direto e universal numa época de várias crises em simultâneo será sempre um sinal político impossível de desvalorizar. E as eleições deste domingo deixaram Portugal à beira do abismo, com uma direita em crise profunda, canibalizada pela sua extrema-direita, e uma esquerda sem saber o que fazer ao mandato que lhe foi dado em 2019, deixando o seu eleitorado desmobilizado e angustiado com a ascensão da extrema-direita e a falta de rumo estratégico do país.

À hora a que escrevo, a queda no abismo só não se deu graças a Ana Gomes, que ainda há poucos meses tinha todas as razões, em particular pessoais, para não querer avançar. Antes de Ana Gomes avançar para estas eleições, todas as sondagens durante o último ano davam o candidato da extrema-direita à frente dos candidatos partidários da esquerda. Se Ana Gomes tivesse faltado a estas eleições, o candidato da extrema-direita teria ficado em segundo e estaríamos agora face ao cenário do desastre francês de 2002 que, ao que tudo indica, só teremos evitado in extremis.

Ouviremos todo o tipo de justificações partidárias para que a convergência à esquerda não se tivesse feito. Depois de dadas essas justificações, o que ficará por esclarecer é o seguinte: já se esqueceram que, em 1996, quando Sampaio ganhou as eleições contra Cavaco Silva, foi também graças a uma desistência de Jerónimo de Sousa? Já se esqueceram que ainda há poucos anos o BE apoiava o candidato oficial do PS, Manuel Alegre, em pleno consulado de José Sócrates? O que se passou para terem esquecido essas lições? Será Ana Gomes menos à esquerda do que Alegre ou Sampaio? Já se esqueceram de todas as vezes que a elogiaram para contrapor a um PS oficialista? Já pensaram na vantagem estratégica que teria sido apoiar uma candidatura na esquerda do PS, entrando no seu eleitorado, cilindrando o candidato da extrema-direita, ganhando espaço para temas tão essenciais como a transparência, a justiça, a igualdade e a ecologia no debate no interior da maioria parlamentar de esquerda? Não é só o que se perde por não fazer a convergência — é também o que não se ganha.

A esquerda terá agora cinco anos para reaprender a ganhar eleições presidenciais, coisa que parece ter esquecido há duas décadas. Mas antes disso há algo de muito mais urgente e importante: o que fazer aos últimos dois anos e meio desta legislatura, sustentada por uma maioria de esquerda que não é capaz de assinar um papel em conjunto com uma estratégia para o país. Se a esquerda não entender que tem de arrepiar caminho na forma como (não) está a usar a sua maioria, se continuarmos a ver as jogadas meramente táticas para romper com a “geringonça”, um dia acordaremos com uma maioria de direita, apoiada na extrema-direita, tendo os maiores fundos europeus de sempre para gastar — e se a esquerda detestou Cavaco como primeiro-ministro, que se prepare para pior.

Se a esquerda não entender que tem de arrepiar caminho na forma como (não) está a usar a sua maioria, um dia acordaremos com uma maioria de direita, apoiada na extrema-direita, tendo os maiores fundos europeus de sempre para gastar

Hoje safámo-nos por pouco. Com Ana Gomes a derrotar a extrema-direita, evitou-se o “desastre à francesa” e há ainda aqui muito que é reversível — se se aprenderem as lições destas eleições e se volte a dar uma estratégia compreensível para o futuro deste país. Ai Portugal, Portugal. Do que é que tu estás à espera?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Historiador; fundador do Livre


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