Em tempo de pandemia e de eleições presidenciais este texto é oportuno e ajuda também a perceber que um acto eleitoral exige de todos nós votar conscientemente pois tudo isto anda ligado.
MC
Pobreza e desigualdade
E nós? Será que o ímpeto inato da igualdade morreu em
nós? Não bastam esmolas nem remendos. A cada um a responsabilidade de lutar
pela igualdade. Porque há desigualdade, há pobreza, há crise e há um mundo
natural a ser destruído em nome do lucro.
Isabel do Carmo
18 de
Janeiro de 2021
Nas festas
foi um tempo de se falar dos pobres. Epidemia, mais pobres, mais desigualdade.
Vão aumentar. Ora, se há pobres é porque há desigualdade. Nenhum país é só de
pobres ou só de ricos. É o “sistema”, dizem. Se há pobres há insegurança alimentar, más condições de habitação. Estas situações são causa de vida
sem saúde e de mais anos com doença. E se há pobres e desigualdades é porque há
muito ricos, para chamar as coisas pelos nomes. Estes não encontram formas de
repartir, no mínimo aumentando os salários. É o “sistema” da concorrência,
dizem. Pois então é contra este “sistema” que temos que lutar. Porque a pobreza
e a desigualdade não podem ser eternas.
Em todos os
países estudados há desigualdade, mas é diferente de uns para outros. Com uma
constante: quanto mais desigualdade, mais pobreza. Mesmo nos países menos
desiguais, os escandinavos, social-democracia real, os 10% mais ricos detêm 25%
do rendimento do trabalho e do capital, enquanto 50%, os mais pobres, detêm 30%.
Desigual, mas menos mal, se tivermos em conta que a saúde, a educação e outros
bens públicos são universais e gratuitos. Mas se formos para o farol do
capitalismo, os Estados Unidos da América (EUA), a nação de Reagan e de Trump,
sempre grande, polícia do mundo, autoritária, a vender armas e a fazer guerras,
os 10% mais ricos detêm 60% do rendimento do capital e do trabalho e 50%, que
são os mais pobres, detêm 15%. Estreitando a divisão em percentis, nos EUA, um
país com 260 milhões de adultos, 1% detém o principal da riqueza e os outros
têm 99%, slogan do movimento Occupy Wall Sreet.
Mas 1% são 2,6 milhões de pessoas! É muita gente com muito poder – financeiro,
político, cultural, comunicacional, militar. E chamam a isto o apogeu da
democracia!
É a esta gente
que o Reino Unido e o resto da Europa, nós próprios, temos buscado inspiração.
Das suas agências ou afins ouvimos notícias, as suas redes de comunicação
mandam em nós, vemos os seus filmes, a agência de medicamentos inspira as
directivas europeias. A cultura da desigualdade tem sido aquela que nos domina.
A Europa é menos desigual, mas tem sido o suficiente para ter pobreza bem
visível. Os países menos desiguais têm menos pobreza, mais distribuição de
rendimento. Mas globalmente, na Europa, 60% do património nacional pertence a
10% da população e 50%, que são os mais pobres, detêm 5 a 10%. Em Portugal melhorou, mas em 2017 estava com um nível de
17,3% da população na pobreza, mesmo depois das transferências sociais serem
feitas (INE, 2017). Uma grande parte desta população (10%) são pessoas que
trabalham. Se formos ver os Açores, são 32% os que estão abaixo do limiar da
pobreza. Serão mais agora que lhes vão tirar as transferências sociais, decisão da nova coligação parlamentar.
Estes
números crescerão muito em 2020, em todos os países, com os novos pobres da
pandemia. As
desigualdades também. Nos países onde já foram estudadas, os ricos estão mais ricos. O Institute of
Policy Studies dos EUA publicou: as fortunas combinadas dos 647 mais ricos do
país cresceram quase um milhão de milhões (1 bilião) entre Março e Novembro de
2020. Em Portugal estamos a falar de um limiar de pobreza calculado em 501€.
Mas quem recebe o salário mínimo não está rico com certeza. Quanto aos mais
velhos, há 1.457.205 pensionistas a receberem uma pensão abaixo do salário
mínimo. A pensão mínima da Segurança Social é de 275,28€ e a da Caixa Geral de
Aposentações é de 257,28€. O aumento de 10€ para
as pensões abaixo
de 658,20€ aprovado pelo Orçamento Geral do Estado de 2021 talvez desse para
comprar alguns iogurtes e fruta, poucos, durante um mês, mas serão talvez para
acrescentar aos pagamentos da água, da electricidade e do telefone.
Não é de
estranhar que 10% da população tivesse em 2015 insegurança alimentar,
dificuldade de acesso a alimentos seguros e nutritivos, que permitam uma vida
saudável, e que cerca de 50% não comam vegetais e fruta suficientes (Carla
Lopes e col., Inquérito Nacional de Alimentação e Actividade Física).
Quanto à habitação, em Portugal há 4,1% de pessoas com privação severa das
condições de habitação (Eurostat, Observatório das Desigualdades, 2017). Os
critérios para considerar “severa” são muito apertados e não se sabe até que
ponto estão incluídos os bairros ilegais. Com estas condições de rendimento, de
alimentação e de habitação, os pobres têm mais doenças, mais obesidade, mais
diabetes, mais doenças cardiovasculares, mais pneumonias, maior mortalidade.
Claro que o
aspecto exterior das famílias foi mudando. Uma casa de família pobre e sem
comida na mesa, mas com sofá, televisão e as pessoas vestidas e calçadas,
pareceria rica, aos olhos de observadores do Barreiro onde nasci e vivi. Os
bens e o consumo evoluem, mas a pobreza e a desigualdade também. A crise vai
agravar tudo. Na anterior crise financeira, 2008 a 2015, as consequências foram
graves: o SNS gastou menos 540 milhões de euros em medicamentos e 15,1% dos
utentes diziam não os ter adquirido por falta de dinheiro, cerca de 9% não
foram à urgência por dificuldades económicas, 5% por falta de dinheiro para os
transportes; fizeram-se menos cinco milhões de consultas nos Centros de Saúde
entre 2008 e 2015, as camas hospitalares decresceram entre 2010 e 2014
(Observatório Português dos Sistemas de Saúde, Relatório da Primavera
2015). Quanto ao que se passava nos lares, o presidente da União das
Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, era uma voz a pregar no deserto.
Durante a crise aumentaram as doenças mentais, as anemias por falta de ferro,
as doenças respiratórias. Não foram estudadas as carências nutricionais no
sangue, mas deviam ter sido. Perante este quadro dramático levantou-se o
movimento “Que se lixe a Troika”, mas não houve tumultos, revoltas desordenadas,
pedras, barricadas… Mansamente caminhámos através das
cidades, em multidão. Mas não
houve mudança, pelo menos imediata. Quanto às vozes que agora se levantam
diariamente, nessa altura estiveram caladas.
E se há
desigualdade é porque há ricos. As 25 famílias mais ricas de Portugal detinham
em 2018 19 mil milhões de euros, o que equivalia a 10% do PIB. São elas,
concentradas para abreviar, a Corticeira Amorim, a Jerónimo Martins e
sociedades ligadas, o Grupo José de Mello, a Sonae, o Grupo Simoldes, a Alves
Ribeiro Construção, a Visabeira, a Portucel, o Grupo Pestana, o Violas SGPS, a
RAR, a Mota Engil, Mário Ferreira, a Farfecht, a Salvador Caetano, a
Nutrinveste, a Lusiaves, a Out Systems, a Ascendum. Sabe-se que algumas destas
sociedades põem o seu dinheiro em projectos não rentáveis, com benefício
público. Calcula-se também que algumas terão gestos de solidariedade importantes.
Também não se trata de “diabolizar” os ricos, de forma primária. Trata-se de,
mais uma vez, pensar no “sistema”.
Os
possuidores de tanto património, para além de o colocarem em offshores,
portanto numa nuvem sem impostos, que lhes deve dar uma sensação de poder, não
têm onde gastar tanto dinheiro. Acumulam. A acumulação agrava a desigualdade.
Rousseau dizia que a igualdade é uma aspiração inata da alma ou do coração dos
humanos. Será? O ímpeto da igualdade fez parte dos movimentos cristãos
iniciais, mas bloqueou quando se tornou religião do Estado e quando o
proselitismo se transformou em massacres. Passou a religião e liturgia dos
ricos e foi necessário que passassem séculos para novos profetas tentarem
recuperá-la como religião dos pobres. O ímpeto da igualdade foi também motor
das revoluções que triunfaram numa parte do mundo e foram a esperança dos
deserdados e humilhados. Mais uma vez, como catecismo do Estado, a esperança
foi morta e massacrada, sem respeito pelos seres humanos.
E nós? Será
que o ímpeto inato da igualdade morreu em nós? Não bastam esmolas nem remendos.
A cada um a responsabilidade de lutar pela igualdade. Porque há desigualdade,
há pobreza, há crise e há um mundo natural a ser destruído em nome do lucro.
Médica,
professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, membro do grupo Estamos do Lado
da Solução
Médica; professora da
Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política
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