O fim do sonho português?
Os democratas deste país, a imensa maioria dos
portugueses, têm de saber lidar com estes cinco pilares para que o fim do sonho
não seja seguido de um pesadelo ainda mais longo.
Boaventura Sousa Santos
29 de
Janeiro de 2021
Para alguma
imprensa estrangeira os resultados das
últimas eleições significaram
o “fim do sonho português”. O sonho português era o facto de Portugal ser o
único país da Europa sem significativa força de extrema-direita. A verdade é
que, ao longo dos últimos cem anos, a extrema-direita esteve quase cinquenta
anos no poder. No restante período, de 1974 até hoje, continuou a existir como
uma pequena minoria ressentida e nostálgica, circulando entre a ilegalidade, a
legalidade e, sobretudo, a alegalidade, com manifestações por vezes violentas,
outras vezes apenas sordidamente insultuosas, e sempre inconformadamente órfãs
do pai que lhes devolvesse o ouro que imaginam alguma vez ter tido. Se algum
sonho terminou, foi o da clandestinidade e contenção da extrema-direita. Para
que o sonho não seja seguido de pesadelo, é necessário analisar o que ocorreu
nas eleições.
Dadas as circunstâncias,
as eleições presidenciais foram um prodígio organizativo e demonstraram um
espírito cívico que pode ter espantado mesmo os mais avisados. Apesar de alta,
a abstenção foi muito mais baixa do
que se previa. Os dois
grandes vencedores das eleições foram Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.
O primeiro, pelo modo como esteve presente; o segundo, pelo modo como esteve
ausente. Em tempo de pandemia, esta vitória maciça é um bom augúrio da
estabilidade política por que os portugueses ambicionam neste tormentoso
período de existencial insegurança. Seguiram-se dois semi-vencedores, Ana Gomes (AG) e André Ventura (AV). AG mostrou que é
possível a dignidade política, mesmo nas condições mais adversas. A sua vitória
principal foi a de ter afirmado a força e a valentia da esquerda do PS. Quem
não se lembra das afirmações infelizes de Carlos César, presidente do PS,
quando AG lançou a sua candidatura e o mal disfarçado asco que mostrou pela sua
camarada de partido? A vitória da AG foi condicionada pelo facto de não ter
conseguido construir uma aliança com as outras famílias de esquerda, ter dado
menos atenção aos jovens e não ter sido hábil no uso das redes sociais.
AV foi um
falso semi-vencedor. A sua vitória só foi condicionada pelos objectivos que
astuciosamente se propôs. Desta perspectiva, foi um vencedor. Propôs-se
objectivos arriscados apenas para ampliar artificialmente o fôlego da sua
proposta. O objectivo real foi cumprido. São cinco os pilares principais da
força da extrema-direita. Primeiro, o crescimento da
extrema-direita, um fenómeno mundial que, com diferentes matizes (a que se
junta por vezes o conservadorismo religioso), tem vindo a abalar o mundo na
última década. Chega a Portugal com algum atraso, e isso pode ser uma vantagem, dado
que começam a ser notórios os desastres sociais e políticos a que a
extrema-direita conduz os povos quando governa. Basta ver o caso dos EUA, do
Brasil e da Índia. A nova geração de fascistas chega ao poder democraticamente,
mas, uma vez no poder, não o exerce democraticamente, nem o abandona
democraticamente, se perder as eleições. Segundo, o aprofundamento
repugnante das desigualdades sociais, a erosão das expectativas de vida digna
da grande maioria da população, o medo abissal da pobreza abrupta, o abandono
das populações do interior, a falta de acesso aos serviços públicos,
nomeadamente de saúde. Terceiro, um pilar específico do caso
português: o não se ter feito um julgamento das atrocidades e violências do
fascismo e do colonialismo nem se ter educado as novas gerações sobre esse
período obscuro da nossa história, um período muito mais longo que a democracia
em que temos vivido desde 1974. Quando não se aprende o que foi o passado, o
presente parece traiçoeiramente eterno. Quarto, o papel dos media e
das redes sociais. A relação da extrema-direita com os media convencionais
tem seguido o mesmo padrão em todo o mundo: um período inicial de
deslumbramento seguido de hostilização e recurso predominante às redes sociais.
Este processo eleitoral ocorreu todo quase até final na lógica do
deslumbramento. Muitos terão ficado chocados com a nova geração de
entrevistadores-inquisidores que tudo fizeram para centrar os “debates” na
afirmação/negação da presença de AV, e não no conteúdo propositivo dessa
presença. O deslumbramento só começou a vacilar quando os jornalistas passaram
a ser insultados como inimigos e houve limpa-pára-brisas partidos. Quinto,
na ausência de alternativas ao neoliberalismo, à injustiça, ao racismo e ao
sexismo, as populações vulnerabilizadas tendem a pensar que os seus agressores
são os que estão ainda mais vitimizados que eles, sejam eles ciganos ou
imigrantes ou populações negras. Gera-se assim a lógica de vítima contra vítima
de que se alimenta a política do ressentimento, o recurso privilegiado da
extrema-direita. Os democratas deste país, a imensa maioria dos portugueses,
têm de saber lidar com estes cinco pilares para que o fim do sonho não seja
seguido de um pesadelo ainda mais longo.
O grande
derrotado das eleições foi o PSD. O erro político que o seu presidente cometeu
ao admitir, em geral, e ao concretizar nos Açores, alianças com o
partido/candidato de extrema-direita, ao arrepio dos principais partidos
europeus da mesma família política, mostrou que, sendo um bom gestor, não tem
cultura nem visão política à altura das extraordinárias circunstâncias em que
vivemos na Europa e no mundo. Devia saber que, quer na Europa, quer no mundo, da
Hungria e da Polónia aos EUA e ao Brasil e à Índia, a extrema-direita não tem
soluções para proteger a vida ou melhorar a economia. É eficaz a destruir, mas
nada pode construir em democracia. Pela simples razão de que a sua solução é a
destruição da democracia. Por outras palavras, sabe partir loiça, mas não sabe
fazer loiça, e muito menos encher os pratos de comida.
Os dois extremos já não se tocam, pela simples razão
de que só há um extremo, a extrema-direita. Se estas lições não forem
aprendidas, o BE pode desaparecer, uma perda irreparável para as esquerdas e um
empobrecimento perigoso da democracia
A esquerda
foi de igual modo derrotada, sobretudo porque não se soube unir. Ninguém se
apercebeu das diferenças políticas substantivas entre Ana Gomes, João Ferreira
e Marisa Matias. Chegaram a desaprender o que tinham aprendido em eleições
anteriores. Os cálculos políticos derrotaram a política. À esquerda do PS, a
derrota foi estrondosa, muito particularmente o Bloco de Esquerda. Espero que a actual direcção
aprenda as duas lições principais deste desastre. Primeiro, um bom
candidato não basta para corrigir um erro político grosseiro, como foi o de não
se abster na votação do
Orçamento de 2021. Em tempos
de excesso de medo e de enorme deficit de esperança devido à
pandemia, era crucial ser parte da solução de governação, uma solução que, não
sendo perfeita, não o é mais ou menos que as decididas nos outros países que
nos servem de referência na UE. A deserção do BE animou a direita que, a partir
de então, assumiu a estratégia de isolar o Governo e pôs o BE na posição de
quase pedir desculpa por ter votado contra. Segundo, na actual
conjuntura internacional, o anti-sistema foi capturado pela extrema-direita.
Pela simples razão de que o anti-sistema agora não é o socialismo ou o comunismo,
mas a ditadura e o fascismo, por mais disfarçado de “democracia iliberal”. O
sistema é a democracia com todos os defeitos (cada vez maiores) e virtudes
(cada vez menos imprescindíveis para largas minorias).
A luta da
esquerda deve ser hoje a de aprofundar as virtudes e neutralizar os vícios.
Chamamos a isso radicalizar a democracia. Como não há extrema-esquerda, o BE é
parte do sistema, e é nessa qualidade que deve concordar e discordar. Isto
significa que em caso algum pode dar argumentos ou espaço aos anti-democratas.
Os dois extremos já não se tocam, pela simples razão de que só há um extremo, a
extrema-direita. Se estas lições não forem aprendidas, o BE pode desaparecer,
uma perda irreparável para as esquerdas e um empobrecimento perigoso da democracia.
Director Emérito do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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