segunda-feira, 14 de maio de 2018

O OUTRO LADO DE ISRAEL




    Forças israelitas matam 37 palestinianos na Faixa de Gaza
Mais de 900 manifestantes da Marcha do Retorno ficaram feridos. Já morreram mais de 80 pessoas desde que começaram estes protestos, há seis semanas.
14 de Maio de 2018

 Número de palestinianos mortos sobre para 41

De acordo com os serviços de saúde palestinianos, o número de manifestantes mortos nesta segunda-feira subiu já para 41.
                                                                                                                                           Setenta anos depois, os jovens não esqueceram
É em cima desta memória, que é o seu pecado original, que o Estado de Israel está construído.
14 de Maio de 2018
Carlos Almeida

No dia 7 de Fevereiro de 1948, Ben-Gurion, à época presidente da Agência Judaica, visitou Lifta, uma vila nos arredores de Jerusalém cuja população fora expulsa pela acção das milícias sionistas. No regresso, reflectindo sobre o alcance daquelas operações militares, partilhou os seus pensamentos com o Conselho Central do seu partido:

“Quando cheguei agora a Jerusalém, senti que estava numa cidade judaica [...]. É verdade que nem toda a Jerusalém é judaica, mas existe já nela uma zona judaica: quando se entra na cidade, através de Lifta e Romema (...) – não há árabes. Cem por cento de judeus [...]. Se continuarmos, é realmente possível que nos próximos seis ou oito meses existam mudanças consideráveis no país, muito consideráveis, e a nosso favor.” [1]
Ben-Gurion sabia do que falava. Nos meses seguintes, perto de 800 mil pessoas foram expulsas das suas casas e terras – o equivalente a cerca de 90% da população do território que o plano de partilha da Palestina consagrado na resolução n.º 181 da Assembleia Geral da ONU, de 29 de Novembro de 1947, atribuía a um futuro Estado judaico – 531 povoações foram destruídas, 11 áreas urbanas totalmente esvaziadas de população. Desde os finais de 1947 e durante pouco mais de um ano, a Palestina foi varrida por uma tempestade de destruição, mortes e atrocidades pontuada por massacres como os de Balad al-Shaykh, Deir Yassin, Ayn al-Zaytun, Tantura, Dawaymeh.
É em cima desta memória, que é o seu pecado original, que o Estado de Israel está construído. O sonho de um território etnicamente limpo está no coração do projecto sionista e é ele que orienta a política do Estado de Israel desde a sua constituição, seja pela expulsão da população ali residente há gerações, seja pela acção de um aparelho político, jurídico e militar que segrega e discrimina a população palestina, reduzindo-a a uma condição de sub-existência. Yosef Weitz, o homem forte do todo-poderoso Fundo Nacional Judaico, escreveu-o com cristalina clareza no seu próprio diário no dia 20 de Dezembro de 1940: “A única solução é uma Terra de Israel (...) sem os árabes. Não há espaço aqui para compromissos.” [2]
A propaganda de Israel glosa à saciedade a figura da vítima indefesa, ameaçada desde o seu nascimento, lugar de refúgio vital e derradeiro de uma história de perseguições e sofrimentos de que os crimes do nazismo foram a expressão mais radical e violenta. Mas nenhuma das declarações de dirigentes sionistas aqui reproduzidas foi proferida depois de 15 de Maio de 1948. E a maior parte dos crimes aqui evocados ocorreu bem antes dessa data.
A generalidade das potências ocidentais viu no sionismo a solução para a sua “questão judaica”. Kishinev, Auschwitz, Buchenwald não são lugares na Palestina, mas foi para lá que uma estranha e duradoura aliança entre o anti-semitismo, os interesses imperiais das potências ocidentais e o movimento sionista projectou a solução para tal problema. Foi essa aliança que inventou o mito da terra sem povo para um povo sem terra. A declaração do secretário britânico Arthur Balfour, proferida no dia 2 de Novembro de 1917, assegurando o apoio do Império Britânico à consumação do projecto sionista referia-se à população da Palestina como “colectividades não-judaicas”, e cem anos depois, na cerimónia que evocou aquela data, Theresa May voltaria a repetir aquela mesma expressão. Mas até alguns dos primeiros sionistas que visitaram a Palestina no último terço do século XIX sabiam como era falsa essa lógica que reduzia a população da Palestina à condição de negativo, sem identidade própria, nem relação com a terra que habitava e onde tinha as suas raízes.
Em 1988, no Conselho Nacional reunido em Argel, a OLP ofereceu ao mundo a possibilidade de uma solução política para a questão palestina, naquela que foi a primeira e mais dolorosa concessão feita até hoje em todo este processo. Abdicando de 78% do seu território, muito mais do que os 56% que a resolução n.º 181 da ONU atribuía ao Estado de Israel, o povo palestino reclamou o seu direito a constituir um estado livre, independente e soberano nos territórios ocupados em 1967: margem ocidental do rio Jordão, faixa de Gaza, Jerusalém Oriental.
Contudo, o processo de Oslo – tornado possível à custa exclusiva do sacrifício histórico da decisão da OLP – só trouxe a intensificação da campanha de limpeza étnica e segregação da população palestina, com a expansão imparável dos colonatos, a construção do Muro de separação, a multiplicação da malha decheckpoints e da rede de infra-estruturas que servem apenas os colonos, a repressão brutal e indiscriminada e o bloqueio criminoso a Gaza. Com a complacência, a cumplicidade ou o apoio activo das grandes potências, o território da Palestina outrora administrado pelo Mandato Britânico foi submetido, de facto, a uma ordem segregadora, um Estado policial e racista, um verdadeiro regime de apartheid. No passado dia 1 de Maio, com a aprovação no Knesset da nova lei de nacionalidade, foi colocada uma nova pedra nesse edifício. Com ela, Israel dispensa até o qualificativo de “democracia”: estado confessional, exclusivo para os seguidores de uma religião, em qualquer parte do mundo onde vivam, é tudo quanto lhe basta. 
E uma vez mais, o mundo silencia a ignomínia. Os Estados Unidos da América anunciaram o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel. Assim como a extrema-direita racista e xenófoba no poder em Israel dispensa até um simulacro de democracia, também Trump se isenta da observância do direito e da legalidade internacional. Convém não esquecer: Jerusalém é terra duplamente ocupada, contra a resolução n.º 181 da ONU, à sombra da qual Israel reclama a sua existência como Estado, e contra a resolução n.º 242, que considera ilegal a ocupação dos territórios tomados pela força em 1967. As potências europeias são cúmplices deste estado de coisas, caucionando o insulto norte-americano, ou legitimando a lógica segregacionista de Israel, ao ponto de, em alguns casos, criminalizar até o exercício democrático da crítica à política dos governos daquele país.
Setenta anos volvidos, entretanto, os descendentes dos que foram mortos ou expulsos das suas casas naqueles anos de 1940, ou depois durante a campanha de ocupação total da Palestina, em 1967, mostram ao mundo, da forma mais singela e dramática, que, ao contrário do que Ben-Gurion chegou a imaginar, muitos velhos terão morrido, mas os jovens não esqueceram. Na coragem e determinação com que enfrentam as patrulhas do exército israelita dispostas como verdadeiros pelotões de fuzilamento ao longo da Faixa de Gaza, na dignidade com que suportam as humilhações diárias, com que defendem cada oliveira, cada centímetro de terra, ao mesmo tempo que afirmam a sua condição de palestinos, transformam em carne viva a pergunta lancinante de Mahmoud Darwish: “Senhoras e senhores de bom coração, a terra dos homens é mesmo de todos os homens? Onde está então o meu casebre?” Nas suas vozes, o passado e a memória faz-se presente e promessa de futuro.
[1] Gershon Rivlin e Elhanan Oren, The War of Independence: Ben-Gurion’s Diary, Tel-Aviv, Ministry of Defence, 1982, pp. 210/211, citado por Ilan Pappe, The Ethnic Cleansing..., p. 68
[2] Diário de Josef Weitz, 20.12.1940, citado por Benny Morris, The Birth of Palestinian Refugee Problem Revisited, Cambridge University Press, 2004, pp. 53/54
Vice-Presidente do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Os "paraísos fiscais" ou "offshores" são os altares sagrados do capitalismo, os cofres fortes da corrupção, do tráfico de armas, de seres humanos e de órgãos, do financiamento de guerras e do terrorismo, são a cloaca do mundo.
A pergunta que se impõe é qual a razão que permite a sua existência e continuação?
O artigo que se divulga é mais uma posição contra a sua existência, uma posição ética e moral, necessária, mas sabemos que vai ter pouco impacto. Mas temos de continuar a denuncia.
A outra pergunta que coloco é : qual a razão que leva a que todos os governos do mundo estejam calados sobre o assunto?
Martins Coelho

Tempo de agir nos paraísos fiscais
MIGUEL URBÁN
MALIN BJÖRK
MARISA MATIAS
NIKOLAJ VILLUMSEN
YOUNOUS OMARJEE

Agora é o tempo de agir – de uma vez por todas! Porque as promessas firmes para acabar com os paraísos fiscais converteram-se em palavras vazias.
3 de Maio de 2018

Os paraísos fiscais e a evasão fiscal corroem o Estado Social. É por isso que, em vários parlamentos nacionais, iremos trabalhar em iniciativas legislativas para uma lista negra de paraísos fiscais mais abrangente e com sanções bem mais eficazes.

Um sistema fiscal sólido e justo é uma das bases do Estado Social. Se queremos professores nas escolas, médicos nos hospitais e assistência social durante a reforma, precisamos de um sistema tributário que funcione.
É por isso que é tão grave que as multinacionais continuem a ser autorizadas a ocultar lucros em paraísos fiscais e a jogar com os Estados, que competem uns com os outros, para obter acordos fiscais lucrativos. A optimização fiscal agressiva é uma prática gananciosa sem escrúpulos e prejudica seriamente os nossos sistemas tributários.
Nesta perspectiva, nós enquanto principais forças progressistas da Dinamarca, Espanha, França, Suécia e Portugal, apelamos a verdadeiras soluções para as grandes questões transfronteiriças do nosso tempo e decidimos começar por abordar a questão dos paraísos fiscais.
Na sequência dos casos LuxLeaksPanama e Paradise Papers, todos concordaram que era imprescindível lutar contra os paraísos fiscais. Agora é o tempo de agir – de uma vez por todas! Porque as promessas firmes para acabar com os paraísos fiscais converteram-se em palavras vazias.
A lista negra de paraísos fiscais da UE é um claro exemplo disso mesmo. A começar pela definição de paraísos fiscais, a lista negra da UE eliminou o seu próprio objectivo antes mesmo de começar, ao indicar claramente que uma taxa de imposto de 0% sobre as sociedades não constitui em si mesmo uma violação do critério de tributação justa. Ora, se uma taxa de imposto de 0% sobre as sociedades não é injusta, então o que é?
Como já é hábito na UE, as negociações das listas negras dos paraísos fiscais foram feitas à porta fechada, longe da opinião pública. Várias fugas de documentos mostraram, no entanto, que alguns Estados-membros bloquearam activamente a criação de uma lista negra abrangente, e que os incluía. É uma farsa criar uma lista negra e deixar de fora paraísos fiscais óbvios como Malta, Luxemburgo, Irlanda ou a Holanda. Estes paraísos fiscais da UE custam aos restantes Estados-membros milhares de milhões de euros em receitas fiscais, que se perdem todos os anos.
Para piorar as coisas, as promissoras reformas dos paraísos fiscais foram removidas da lista negra e transferidas para a chamada lista cinza, evitando assim quaisquer sanções. A lista já incompleta está agora reduzida a dez paraísos fiscais.
Estes Estados-membros, classificados como paraísos fiscais cinza, aprovaram, deliberadamente, legislação que permite que as multinacionais, os chefes de Estado corruptos e os super-ricos escondam a sua riqueza. Ao contrário de todas as evidências, a UE optou por confiar nestes paraísos fiscais que simultaneamente afirmam estar a fazer tudo o que está ao seu alcance para criar uma política mais justa.
Estamos muito preocupados. E o facto de a pessoa responsável pela luta contra os paraísos fiscais e evasão fiscal ser, nada mais, nada menos, que o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ex-primeiro-ministro do Luxemburgo, em nada diminui a nossa preocupação. Juncker não foi apenas chefe de Estado de um paraíso fiscal da UE, como usou a sua posição para negociar pessoalmente acordos fiscais ilegais com multinacionais.
A construção da União Europeia favoreceu a livre circulação de capitais, permitindo ao mesmo tempo políticas de dumping social, através das quais os Estados-membros reduzem impostos para atrair capital. Além disso, permite-se ainda a existência de paraísos fiscais, como o Luxemburgo, dentro do espaço europeu. Este não é apenas um problema de tributação de impostos na Europa, mas em todo o mundo, uma vez que o Luxemburgo funciona como um centro para fluxos opacos de capitais globais.
A evasão fiscal é uma questão crescente em todo o mundo. As estimativas colocam a receita fiscal perdida em cerca de 50 a 70 mil milhões de euros por ano, apenas na UE. Esta é uma enorme ameaça ao Estado Social na Europa e deixa milhões de pessoas na pobreza nos países em desenvolvimento.
Quando a UE se recusa a introduzir uma legislação sólida, os países afectados devem agir por conta própria. Neste sentido, nós, as forças progressistas da Europa, vamos propor iniciativas coordenadas nos nossos parlamentos nacionais para criação de uma lista negra de paraísos fiscais abrangente. De país para país, numa coligação de interessados, introduziremos regulamentação mais rígida.
Queremos fortalecer os critérios de tributação justa para que países com impostos muito baixos para as multinacionais não escapem da lista negra.
Queremos remover a lista cinza, como forma de criar pressão sobre os paraísos fiscais europeus, mesmo que estes nos continuem a prometer a lua. Queremos uma lista negra que inclua todos os países e jurisdições que não cumpram os critérios – incluindo Estados-membros da UE.
Finalmente, queremos aumentar a pressão sobre os paraísos fiscais que fazem parte da lista negra. Queremos proteger os lançadores de alerta e punir os bancos e conselheiros fiscais ligados a paraísos fiscais. Exigimos a possibilidade de proibir a celebração de qualquer contrato entre o Estado e empresas envolvidas em evasão fiscal ou planeamento tributário agressivo. É absurdo que a tomada de decisão no sector público não possa recusar contratos com empresas que activamente enfraquecem as contas públicas.
Actualmente, proibir essas empresas de celebrar contratos públicos é contrário à legislação europeia. Deste modo, a UE está a impedir os Estados e os municípios de protegerem os sistemas de bem-estar social contra empresas que fogem aos impostos. É, pois, fundamental que se altere esta legislação. Por isso não deixaremos de desafiar a legislação europeia existente, de desobedecer e de tentar encontrar formas para impedir essas empresas de lesar os interesses dos cidadãos.
Este é o começo de uma longa luta. Medidas adicionais serão anunciadas nos próximos meses – tanto no Parlamento Europeu como em muitos dos nossos parlamentos nacionais. Combater a evasão fiscal dos poucos beneficiará os muitos e irá proteger e fortalecer a base da nossa educação, saúde e segurança social.
Eurodeputado e secretário europeu do Podemos, Espanha
Eurodeputada, Partido de Esquerda da Suécia
Eurodeputada, Bloco de Esquerda, Portugal
Deputado e vice-presidente do grupo parlamentar da Aliança Vermelha-Verde, Dinamarca

Eurodeputado, La France Insoumise, França

domingo, 22 de abril de 2018


22 DE ABRIL DIA DA TERRA
(MALTRATADA DIRIA EU)
UM ARTIGO OPORTUNO

Um novo olhar sobre o planeta
MARIA AMÉLIA MARTINS-LOUÇÃO

O consumo ávido e egoísta origina problemas ambientais e desequilíbrios sociais, como aqui se exemplifica.
22 de Abril de 2018
O dia da Terra, 22 de Abril, foi introduzido para nos levar a reflectir sobre o planeta onde habitamos. Actualmente, a humanidade vive à custa do consumo dos recursos renováveis da Terra como se houvesse mais dois planetas. Apesar destes excessos, as desigualdades sociais, a pobreza, o excesso de consumo são uma constante, e políticas, que integrem as necessidades sociais e a salvaguarda do património natural, são pouco eficientes. Em 2012, Kate Raworth, economista inglesa, usou a ideia das barreiras planetárias lançada em 2009 por Johan Rockström, para lançar a Economia Donut. A proposta é repensar o conceito de desenvolvimento económico associando a justiça social com a sustentabilidade ambiental. O novo olhar convida à junção das barreiras planetárias com as sociais, como ponto de partida para o desenvolvimento de estratégias sustentáveis.
No actual modelo de gestão económica, as sociedades funcionam quase como um piloto a navegar sem bússola. As políticas públicas oferecem poucos incentivos em direcção a um caminho sustentável e as pessoas vivem em função do curto prazo e do seu círculo restrito familiar. Vive-se com a certeza de haver solução para tudo: a inovação científica e tecnológica avança a velocidade cruzeiro apontando respostas satisfatórias.
É fundamental saber usar os recursos globais, sem criar desigualdades sociais. No entanto, desde a década de 60 do século XX que Portugal consome mais do que produz, tendo aumentado 68% a sua pegada ecológica, actualmente de 3,6 hectares globais. De acordo com a “Global Footprint Network”, o desenvolvimento sustentável do planeta ocorre se, a nível global, forem atingidos 1,7 hectares globais. Não se pode continuar a ignorar este problema. O consumo ávido e egoísta origina problemas ambientais e desequilíbrios sociais, como aqui se exemplifica.
1. Recursos hídricos. As descargas de poluentes nos rios são uma constante e a capacidade de diluir as cargas poluentes, qualquer que seja a sua origem (doméstica, industrial ou agrícola), tem vindo a diminuir. A fiscalização é pouco eficaz e, quando há identificação das infracções, os culpados pagam coimas insignificantes que não impedem a repetição de crimes semelhantes. Acesso a água potável é um dos objectivos do desenvolvimento sustentável 2030, mas não basta assegurar água na torneira nas zonas urbanas. Há que assegurar qualidade de água nas zonas rurais, nos ecossistemas ribeirinhos, para sustentabilidade das populações. Também a alteração do regime de chuvas que ameaça a disponibilidade hídrica em Portugal não é compatível com a política de subsídios à agricultura de rega, à ausência de auditorias à eficiência do uso da água e ao pouco investimento em águas residuais.
2. Qualidade do ar. São conhecidos os efeitos que as partículas atmosféricas têm para a saúde pública. Mais pequenas do que 2,5 microns (PM2,5), alojam-se nos pulmões e estão associadas a ataques cardíacos, doenças coronárias e aumento da pressão arterial. Actualmente são responsáveis por três milhões de mortes por ano a nível global e pela diminuição do tempo médio de vida. A monitorização contínua é feita nos grandes centros urbanos, culpabilizando-se os veículos automóveis pelas emissões poluentes. No entanto, sabe-se hoje que a grande fonte de emissão destas partículas provem das actividades agrícolas, especialmente da volatilização de amónia dos fertilizantes e excrementos animais. Na atmosfera, a amónia reage com outros compostos dando origem a partículas secundárias de aerossóis, arrastadas pelos ventos para grandes distâncias. Esta é uma poluição silenciosa que pode corresponder a 65% das partículas atmosféricas, sem monitorização eficaz em Portugal. A grande preocupação é a redução das partículas emitidas pelos transportes nos centros urbanos. Com a presente alteração do regime de chuvas, a quantidade de partículas atmosféricas é um verdadeiro problema pouco dimensionado ou equacionado. Urge o estabelecimento de um sistema de monitorização e fiscalização em todo o território, para assegurar a saúde de todos os portugueses.
3. Emissões de CO2. Após a devastação do património florestal dos últimos dez anos, o investimento do Estado na reflorestação com espécies autóctones é ainda tímido. As áreas florestais e arbustivas aumentam o sequestro de carbono, e por isso o investimento na floresta devia ser prioritário para cumprir o Protocolo de Quioto. Infelizmente, continuam a faltar incentivos aos privados para a diversificação da exploração da floresta, para além da madeira, e para o estabelecimento de viveiros com plantas certificadas e geneticamente resilientes a diferentes condições ambientais. Entre outras, são políticas públicas que podiam trazer co-benefícios para o desenvolvimento económico das comunidades rurais e servir como medidas de compensação para o mercado de carbono. A exploração de petróleo no Algarve, ao arrepio da vontade dos cidadãos, é também incompatível com a política de redução das emissões.
Estes são apenas três problemas ambientais com carente sustentabilidade social. Em regra, a sociedade, cada vez mais urbana, sente-se impotente e não luta por um problema que não a afecta directamente. Cabe ao Estado assegurar estratégias de protecção de longo prazo dos recursos naturais finitos e aos mediadenunciar e questionar crimes e atropelos sócio-ambientais, alertando e convidando a população a ter um novo olhar sobre o planeta.
Bióloga, professora catedrática da Universidade de Lisboa; presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia


segunda-feira, 19 de março de 2018

PENSAR PORTUGAL MERECE LEITURA



Pensar a economia, pensar Portugal, propor pluralismo
O Portugal de hoje começou em 1993, o momento simbólico em que terminaram dois grandes ciclos de crescimento muito semelhantes.
19 de Março de 2018
José Reis

Nos últimos anos, sob o ambiente de chumbo da austeridade, o debate económico popularizou-se. Mas não é certo que se tenha democratizado. As visões apressadas, a busca de uma sentença singela ou a ansiedade de encontrar um culpado roubaram espaço às atitudes serenas, à apreciação das continuidades, das roturas e do lastro estrutural da nossa vida material, isto é, da sua complexidade. Usou-se pouca informação e estudou-se pouco. Ao mesmo tempo, predominou a noção de que a economia é plana e descarnada, funcionando através de mecanismos abstratos e de poderes teleológicos (“os mercados”), quando na verdade o que mais conta são deliberações concretas tomadas por instituições onde intervêm atores poderosos e se definem normas e regras, tanto jurídicas como políticas. Quer dizer, onde se estabelecem formas de economia política. É isso, aliás, que define os contextos em que umas economias evoluem e consolidam ou alteram a sua condição face a outras. O surgimento e afirmação de novas gerações de economistas e outros cientistas sociais que revigoram o debate contrariou significativamente esta tendência e é a melhor razão para que se insista na ideia de que se pode almejar o pluralismo e propor discussões onde o tempo, o espaço, as instituições e a compreensão dos contornos da deliberação política são essenciais. A criação da Associação Portuguesa de Economia Política, que em janeiro realizou um importante encontro, é prova disso.           

A atitude detida que sugiro, e que me parece uma condição elementar para que o debate seja democrático, não prescinde de tentar perceber coisas que vêm de longe. Por exemplo, que somos um país onde a industrialização moderna só ocorreu nos anos 1960 e foi extraordinariamente limitada nos seus efeitos modernizadores porque, na década anterior ao 25 de Abril, quando houve taxas de crescimento exuberantes, o volume total de emprego não aumentou e o que se exportou massivamente, sob a forma de emigração, foi força de trabalho. E que, por isso, só a revolução democrática criou e estabilizou o mais poderoso mecanismo de inclusão social de que uma economia pode dispor, o que consiste na inserção das pessoas no emprego e no mercado do trabalho. Assim como não deve dispensar a compreensão das mudanças radicais a que provavelmente não demos a devida atenção, como a que se encasulou ao longo da segunda metade da década de 1990, quando se estabeleceram as poderosas regras e normas que dariam forma à União Económica e Monetária e ao euro, gerando condicionalismos e restrições apertadas que aprisionaram o crescimento e outras formas de deliberação e desviando a criação de riqueza da esfera produtiva para outros planos. Coisas bem diferentes dos “mercados” tão presentes na linguagem comum. 
Por isso, no livro A Economia Portuguesa: Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017), Almedina, 2018, que acabo de publicar, digo que “o Portugal de hoje começou em 1993”. Foi esse o momento simbólico em que terminaram dois grandes ciclos de crescimento económico muito semelhantes, cada um com cerca de dez anos, o que se seguiu ao 25 de Abril e o que correspondeu à primeira fase da integração europeia (engana-se quem julgue que Portugal só cresceu neste último período, basta observar a informação estatística disponível). Mas aquele ano foi também o momento em que se desencadeou a formação de um conjunto de circunstâncias económicas e políticas originais, todas elas a contribuírem para o dado absolutamente novo de um crescimento anémico, que depois a austeridade transformaria em instabilidade e retrocesso. Desse caldo fizeram parte coisas vindas de trás, como uma desindustrialização e uma terciarização excessivas e uma acentuada dependência expressa na balança comercial, e coisas originais, das quais a mais saliente foi um intenso processo de endividamento externo, capitaneado pela banca e possibilitado pela financeirização emergente, isto é, pela facilidade de circulação de capitais que passou a ter a função de reciclar nas periferias os excedentes económicos concentrados no centro de uma Europa já profundamente assimétrica e fraturada. Resistiu ainda a criação de emprego, que só quebraria dramaticamente no final da primeira década deste século.       
É a soma destes dois argumentos que nos pode ajudar a perceber como nos dias de hoje se torna central um punhado de circunstâncias muito difíceis que são a matéria de uma economia política da recuperação ensaiada desde que se iniciou um novo ciclo político. Os desequilíbrios presentes na economia portuguesa são enormes. É essa, aliás, a causa da sua persistente condição periférica, isto é, da sua dependência, com diferentes formas ao longo dos tempos. Excessos de desindustrialização e de terciarização, com dinamização das exportações através de serviços turísticos low cost, concentração em baixos salários e na precariedade laboral. Custos do trabalho a pesaram pouco e cada vez menos no valor da produção. Um domínio poderoso da circulação de capitais financeiros que captam uma significativa parcela da riqueza criada. Uma dívida pública que atingiu montantes exorbitantes para cobrir os desmandos de uma banca que endividou externamente o país e viu a sua dívida reestruturada, ao invés da que passou a ser pública. Um Estado coartado na sua ação positiva de configurador da economia e da sociedade porque as restrições financeiras que sob ele impendem são grandes. E, finalmente, um território deslaçado, fruto de um modelo de crescimento unipolar, centrado em Lisboa e assente na redução comparativa do valor do trabalho. É por isso que os termos verdadeiramente estruturais de uma recuperação são exigentes. Têm de atender ao sistema produtivo e à qualificação das nossas atividades, dando relevo às industriais. Não podem ignorar a enorme punção de valor que a dívida origina. Obrigam a compreender a natureza dos movimentos da financeirização. Implicam um Estado capaz e ativo, e não meramente criador de mercados privados, como muitos desejam. Compelem a que olhemos para o país inteiro sabendo que precisamos de um sistema urbano nacional robusto, que ajude a reconstituir os territórios fragilizados. Cada um destes termos são possíveis de detalhar e de debater com a serenidade de quem se preocupe mesmo com a vida material do país e das pessoas e com a sua natureza estrutural. Pode ser que volte a alguns deles. Autor do livro A Economia Portuguesa: Formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017), Almedina, 2018
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; investigador do Centro de Estudos Sociais


sábado, 24 de fevereiro de 2018

DEMOCRACIA E POPULISMOS



Face à subida eleitoral na UE dos partidos chamados "populistas", direita pura e fascizante, tocam campainhas de alarme e, ainda timidamente, começa-se a colocar o dedo nas causas, quer partidárias quer sociais.

Esta reflexão sobre a nossa realidade é oportuna e um contributo mais para "nos esclarecermos". Adapte-se o conteúdo deste artigo a VRSA e encontraremos "coincidências" inquietantes.

MC


“Há em Portugal uma cultura de compadrio”
Conceição Pequito conclui que a qualidade da democracia portuguesa é má porque os partidos monopolizam as listas eleitorais e vivem da cartelização do Estado. Alerta também para o outsourcing legislativo do Parlamento associado aos deputados-advogados.
24 de Fevereiro de 2018

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Num país onde não há populismo, os impulsos populistas são canalizados pelo Presidente com a sua proximidade, defende Conceição Pequito Teixeira, autora do livro Qualidade da Democracia Portuguesa, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual identifica as razões da má qualidade da democracia portuguesa. Em entrevista ao PÚBLICO, a professora alerta para a importância do pacote sobre transparência e defende que o “outsourcing legislativo” é a “devolução de um poder a privados”.
No seu livro diz que a qualidade da democracia é má. Porquê?
Há uma esmagadora maioria dos cidadãos que apoia em abstracto o regime político, o que não acontece na generalidade das novas democracias surgidas após a queda do Muro de Berlim. Esta adesão quase total aos princípios e aos valores basilares da democracia num país que teve 48 anos de Estado Novo, este apoio normativo ao regime é importante.
Mas depois a qualidade é má...
Nos indicadores sobre a percepção dos cidadãos em relação a como funciona a democracia na prática, as suas principais instituições ou a classe política, a avaliação não podia ser pior do que é e, contrariamente às democracias mais recentes, mostramo-nos bastante mais envelhecidos. Os níveis de desconfiança em relação aos partidos são muito superiores.
Conclui que a responsabilidade primordial da má qualidade da democracia é da partidocracia. De que forma os partidos estão a prejudicar a democracia?
Através do monopólio da representação política que continuam a ter para a Assembleia da República. Falo disto, mas não é no sentido de acabar com ele, no que se refere a só os partidos poderem apresentar candidatos à Assembleia e não poder haver listas de grupos de cidadãos como há nas autárquicas. Tenho muitas dúvidas que a solução pudesse passar por aí, acho-a muito difícil e caótica. O monopólio dos partidos, se fosse assumido com um conjunto de mecanismos que não o tornassem por si só um bloqueio, seria interessante.
É nesse sentido que fala da alteração da lei eleitoral?
É. Se os partidos, ao terem de escolher os candidatos, tivessem normas claras, precisas, objectivas de como escolher, de como os ordenar nas suas listas. Repare a situação que temos, que é muito rara nas democracias europeias: quando votamos nas legislativas, estamos a votar nas decisões que o partido tomou dentro de muros sobre quem é candidato e o seu lugar na lista. E, quando votamos, limitamo-nos a ratificar as escolhas feitas por outrem. Por isso é que digo que o interessante é partilhar entre os partidos e os cidadãos este poder de escolher quem nos representa no Parlamento.
Fala de as pessoas poderem ordenar os nomes?
Exactamente. Ter-se-ia de fazer uma divisão do território eleitoral diferente. O interessante era o território ser redesenhado com círculos eleitorais com uma magnitude entre seis a dez candidatos e que o eleitor no boletim tivesse o nome do partido, os nomes dos candidatos e pudesse reordenar as escolhas feitas pelo partido. Assim, as escolhas dos cidadão efectivamente influenciavam quem entrava no Parlamento.
A discussão é recorrente, já houve estudos e propostas do PS e do PSD nunca aprovados. Os partidos não querem mudar as regras do jogo?
Os partidos não querem mudar as regras do jogo. A discussão já foi muito viva, agora é menos, porque as pessoas já perceberam que não passa de retórica. Os principais partidos têm ganhos com este sistema eleitoral. Sendo proporcional, beneficia os maiores partidos devido ao método de Hondt. E os mais pequenos também não têm muita simpatia por fórmulas que vão no sentido maioritário. Mas o problema sério que nós temos é de proximidade do eleito face ao eleitor.
No livro levanta também o problema da cartelização.
Um dos desvios partidocráticos que me parece mais sensível é o da cartelização dos maiores partidos. Já não se quer chegar só ao Parlamento, quer-se sobretudo chegar ao governo, porque temos cada vez mais a colonização do Estado pelos maiores partidos. A colocação de pessoal na administração pública intermédia, de topo, no sector empresarial do Estado, aquilo que são as ditas “profissões parapolíticas”. O que os americanos chamam o spoil system: quer-se ganhar as eleições para se distribuírem os despojos entre os vencedores. Os partidos vivem da patrimonialização do Estado.
Uma das suas conclusões é que não há fenómenos populistas. A popularidade do Presidente é uma canalização dos impulsos populistas de seguir um líder?
Tem tudo que ver. A partir de 2014, por toda a Europa, os partidos de recorte populista ganharam lugares. O populismo não é uma ideologia, tanto pode ser utilizado pela esquerda como pela direita. A divisão que o populismo faz é entre os que se apropriam da soberania do povo e a vontade geral do povo, como se fossem dois mundos incomunicáveis e intocáveis. A concepção da casta dos políticos e o “eles” e “nós”, é esta a fronteira.
E que é mitificada.
Exactamente. Esse discurso é também muito facilitado pelos meios de comunicação social, pela fulanização e pela simplificação. O populismo é um discurso simplificado, apresenta soluções fáceis para problemas complexos. E é caracterizado também pela proximidade entre os governantes e os governados, como se isso fosse um sinal de desapego ao poder, de o político continuar próximo das preocupações das pessoas. Acho que Marcelo Rebelo de Sousa encarnou esse papel da proximidade, a que ele acrescenta os afectos, mas podemos chamar-lhe uma proximidade popular e populista. Os afectos são talvez um populismo lusitano.
Mas essa canalização não é por razões puramente populistas?
O Presidente achou a fórmula certa, que é a de uma magistratura de proximidade, a que ele vai buscar o poder de que necessita em cada momento, como quando foi de Pedrógão Grande, em que o usou sem dó nem piedade. Ele legitima a sua interferência em áreas do Governo com base nessa popularidade de proximidade. Não lhe chamaria populismo, porque além da proximidade ele não usa só temas fáceis. O discurso dele não é tão simples.
Ou seja, não é populista mas canalizou os impulsos populistas?
Canaliza completamente. Nós, até ver, não temos populismo.
Como vê o pacote da transparência?
Juntaram muitos projectos de lei sobre questões que são contíguas, mas que deviam ser tratadas aprofundadamente e separadamente. Todas elas são importante. Talvez a mais importante não seja tanto a da regulamentação do lobbying; se for bem legislado, não acho mal. Mas o que descaracteriza a actividade dos órgãos de soberania é o outsourcing legislativo. E aqui entra a questão inevitável do deputado-advogado. De facto, temos um Parlamento cujas leis, as mais importantes, são feitas fora do próprio Parlamento, encomendadas por ajuste directo a grandes escritórios de advogados, nos quais trabalham advogados que são deputados. Então, quem faz as leis fora do Parlamento, o que já é uma aberração, vem aprová-las dentro do Parlamento.
Esse conflito de interesses deve ser travado?
Devia. Até admitia o outsourcing a título excepcional, quando as matérias são demasiadamente complexas. Agora, em termos recorrentes, acho um desvirtuar do poder legislativo e regulatório do Parlamento. É a devolução de um poder a privados, com tudo o que isto propícia a nível de conflito de interesses, de tráfico de influências. Parece-me o problema mais delicado. Havia uma possibilidade que era dotar de facto o Parlamento de um núcleo de assessoria jurídica especializada comum a todos.
Mas há assessorias.
Existem, por grupos parlamentares, e há assessores que podem ser assim chamados, mas no fundo são pessoas do partido, a quem se ofereceu um determinado tacho: “Tu fazes-me a campanha e eu levo-te para o Parlamento como assessor.” Mas com que qualidade? Com que especificidade? Consulte o perfil dos assessores e não encontra a matéria-prima de que precisa para legislar bem. E legislar mal significa a necessidade de rever leis para que se possam interpretar sem ser de forma dúbia.
E a exclusividade?
Sou contra a exclusividade da função parlamentar. Se eles já se dissociam tanto da sociedade, criar demasiadas incapacidades e incompatibilidades é afastar do Parlamento muitas profissões que são lá precisas. É bom que as pessoas tenham uma profissão, que a exerçam, que retornem a ela. Encararem a política como uma missão meritória, mas transitória. Quem quiser fazer dela a sua própria carreira optará pela exclusividade. Agora, uma exclusividade imposta pelo legislador parece-me um apelo a convidar os piores que estão nos partidos e a arranjar-lhes lugar no Parlamento. E se já não são nada bons os que lá estão...
Como vê os casos dos membros do Governo que se demitiram por investigações do Ministério Público ou por razões de ética?
Vamos ver muitos mais casos, se o pacote da transparência for aprovado. Quanto mais regras se fazem, mais regras se infringem. O que falta? Falta bom senso dos próprios. Há uma cultura na classe política portuguesa, independentemente até da qualificação académica, do estilo de vida que possa ter, que é o sentimento de impunidade. Os políticos em Portugal têm um desfasamento que é ainda não terem interiorizado que o tempo dos media é muito mais rápido, muito mais célere e escrutinador do que era. Eles pensam sempre que não é possível saber-se o que fazem, não há quem saiba. E, hoje, os media fazem um controlo e uma fiscalização política não só sérios, como a um tempo vertiginoso. Não há tempo para o próprio conceber a sua autodefesa. Por isso, é muito bom que, antes de aceitar presentes e convites, o político ponha o bom senso a funcionar e pense: “Posso fazê-lo, mas isto vai ser sabido.” A opacidade do exercício da política é muito própria do português, a ideia de que há coisas que não se sabem. Tudo se sabe hoje, os media sabem em tempo mais do que útil e escrutinam-no.
Em Inglaterra essa questão não se põe. Porque é que os políticos portugueses não têm esse bom senso?
Exactamente. Porque a cultura política inglesa não tem nada que ver com a nossa. Ainda agora um governante inglês se demitiu por chegar atrasado ao Parlamento para responder a uma pergunta. Acho que é excesso de zelo. Não queria tanto. Há em Portugal uma cultura de compadrio e de “aquele fez, eu faço, tu farás, nós fazemos”. Há sempre muita conjugação do verbo fazer nos diversos tempos verbais. É uma questão cultural que não é só da classe política.
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Qualquer pessoa que tenha experiência política ou que conviva com a vida pública, mesmo para lá da política, nas instituições e no Estado, sabe que há muitas práticas que, não sendo ilegais, são inaceitáveis em si mesmas e por maioria de razão para a imagem das instituições e dos homens. Refiro-me a esta coisa tão simples: o acesso a determinados tipos de poder, quase sempre pequenos poderes, permite utilizar lugares e funções em proveito próprio ou dos próximos. Insisto: não estou a falar de crimes, nem mesmo na maioria dos casos de evidentes ilegalidades — estou a falar de abusos e aproveitamentos, infelizmente tão comuns na vida pública portuguesa. Conheci muita gente, e não é retórica o “muita”, que quando acede a um lugar ou um cargo deixa de ter a economia que a maioria das pessoas sem poder tem. Arranja maneira de quase todas as despesas pessoais e nalguns casos dos seus familiares e próximos serem cobertas por dinheiros públicos, aumenta-se a si própria, de forma directa ou indirecta, através de alcavalas ou de prebendas, usa o poder que tem para beneficiar amigos, familiares ou pessoas a quem se devem favores ou se quer que fiquem a dever favores.
José Pacheco Pereira (conhece, sabe do quefala)



quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

INUNDAÇÕES SECAS INCÊNDIOS


·        Incêndios rurais, secas e inundações                                                                                    É necessário dar lugar à transição, do estado actual, para outro mais sustentável.
7 de Fevereiro de 2018
Desde os grandes incêndios do ano passado, muito se tem dito a propósito de florestas. No entanto, há temas que não têm sido abordados e que vale a pena referir: a relação entre floresta, secas e inundações — nada na comunicação social ou no discurso político parece mostrar que há a noção de que são as árvores (umas mais do que outras) que permitem reter e infiltrar água no solo, de modo a permitir a sua utilização futura e evitar a seca e, por outro lado, a diminuir o risco de inundações. Como em Portugal estes fenómenos podem ocorrer num curto período de tempo devido à variabilidade do clima mediterrânico que nos caracteriza, é bom que as pessoas percebam que tudo está ligado. Sem um ordenamento global da paisagem, não há equilíbrio possível e estes fenómenos agravam-se, não devido a imponderáveis climáticos, sempre desresponsabilizadores, mas sobretudo por inépcia dos agentes que actuam sobre o território, incluindo políticas públicas. E se, particularmente algumas árvores, nos podem salvaguardar de secas extremas e inundações (Molkanov [1] recomenda como valor mínimo da florestação de uma bacia hidrográfica 40% da sua área), é fácil perceber que os incêndios rurais têm consequências catastróficas a nível da água disponível, para já não falar do solo que nos sustenta, do ar que respiramos, etc.
Sobre os incêndios rurais tem-se falado, e bem, a propósito de várias vertentes: aldeias seguras, organização do combate, etc. Daquilo que não se tem falado é da futura organização do espaço rural e muito particularmente do espaço florestal. Que pinheiro e eucalipto são as espécies mais combustíveis entre as que ocupam o país, parece já haver uma noção generalizada, embora alguns insistam na máxima de que não é a espécie que interessa (em matéria de incêndios), mas sim a gestão. Se, no total do espaço florestal, 56% é constituído por pinheiro bravo e eucalipto e se, da área que ardeu, 53% era pinheiro bravo e eucalipto (Carta de Ocupação do Solo 2010), é evidente que a composição da ocupação desse espaço tem que ser alterada. Ora, quando o Governo diz que só vai permitir eucalipto nas áreas anteriormente ocupadas por essa espécie, é o mesmo que dizer que tudo vai ficar na mesma. Muito particularmente a área do Pinhal Interior que ardeu praticamente toda, na sua maior parte era ocupada por eucalipto, que aliás já está a regenerar. Também o pinheiro bravo regenera naturalmente com toda a facilidade.
Conclusão: se nada se fizer, o que vamos ter no futuro é mais uma vez eucalipto e pinheiro para alimentar o ciclo infernal dos incêndios. O outro pressuposto que há a considerar é que as folhosas autóctones ou tradicionais, além de serem menos combustíveis, produzem uma folhada capaz de melhor regenerar o fundo de fertilidade do solo do que o pinheiro e o eucalipto e, sem solo vivo, a paisagem e, portanto, o país caminham para o deserto e o despovoamento. Isto obriga-nos à proposta de um modelo de ordenamento do território mais resiliente.
Em síntese, há que criar alternância na combustibilidade da ocupação do território. Esta alternância tem que estar relacionada com a forma do terreno porque esta determina o comportamento do fogo, tanto mais, quanto maior for o declive. Há duas estruturas fundamentais, nas quais se deve garantir a natureza do revestimento: uma constituída pelas linhas de água e os fundos de vale que devem ser revestidos por folhosas da galeria ripícola ou, se houver agricultores, agricultura; outra, constituída pelas cabeceiras das linhas de água que devem ser revestidas por folhosas (que não o eucalipto), ou seja carvalhos, entre os quais o sobreiro que é retardador de fogo (desde que tenha cortiça), mas também o castanheiro. O olival, a vinha e a pastagem são outros modos de ocupação muito úteis para a criação de espaços abertos onde o fogo tem mais dificuldade em progredir. Nas vertentes, as linhas de água secundárias com galerias ripícolas, ou freixo nas situações mais secas, ou ainda agricultura, podem formar linhas, no sentido do maior declive, que interrompem ou retardam a progressão do fogo quando lavra longitudinalmente à encosta. Estas estruturas da paisagem são complementadas por vazios constituídos por vias e caminhos.
A implementação deste novo modelo espacial não nega a existência de eucalipto e de pinheiro bravo, mas implica a redução da área actual e localiza estas duas espécies em situações contidas dentro do “miolo” da nova estrutura criada, embora com exigências específicas de gestão, incluindo a exclusão das zonas mais declivosas. Está-se a falar duma mudança de paradigma que, para acontecer, tem que ser financiada: a agricultura tem um papel importantíssimo na criação de um tampão ao fogo à volta das aldeias e cidades e ao longo dos vales, tal como acontecia antigamente e continua a acontecer em muitos casos. Não se trata da grande agricultura industrial, mas da pequena agricultura familiar que permitirá manter pessoas a viver nas zonas mais desfavorecidas — esta agricultura, que tem um papel muito para além da subsistência dos seus promotores, tem que ser financiada por fundos públicos.
A introdução de folhosas, por plantação ou regeneração natural, também tem que ser financiada. Trata-se de financiar a transição entre um modelo em que o eucalipto e o pinheiro bravo são dominantes, para outro em que as folhosas autóctones materializam uma estrutura de protecção contra os incêndios e de conservação da água, do solo e da biodiversidade. Um dos modos de promover este financiamento é através da instituição de uma tabela de serviços de ecossistemas que contabilize os benefícios que o novo modelo trará para a sociedade. É também preciso mostrar que a nova paisagem criada é economicamente viável, introduz diversidade na produção e pode fixar pessoas no terreno, mas é necessário dar lugar à transição, do estado actual, para outro mais sustentável.
[1] Molchanov, A. A., Hidrologia Florestal, 1963, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1971
Manuela Raposo Magalhães
Arquitecta Paisagista; investigadora do LEAF/ISA/ULisboa