segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021


 

CONHECER OUTRAS OPINIÕES E IDEIAS!



A crise económica do capitalismo e a crise do “coronavírus”

01.02.21

Partido Comunista Alemão (DKP)

No país rico que é a Alemanha, o sistema de saúde não estava preparado para a situação, embora cenários de uma epidemia de longo alcance fossem considerados prováveis. A privatização desenfreada e a orientação para o lucro têm custado tanto aos empregados como aos doentes. Mesmo o dinheiro que inundou o sistema de saúde em face da epidemia de coronavírus não foi usado para melhorar as infraestruturas, mas para garantir lucros.

O que muitas vezes é referido pelos média dominantes como a “crise do coronavírus” é, na verdade, independentemente da pandemia, a crise económica mais profunda do mundo em pelo menos cem anos. É uma crise cíclica de sobreprodução combinada com crises estruturais em vários setores económicos, com a pandemia do coronavírus e a ação governamental relacionada com ela e juntando uma característica especial a essa crise.

Essa particularidade pode ser o facto de a pandemia ter levado a que os processos de crise em todo o mundo se tornassem mais intimamente ligados no tempo do que teriam sido sem ela e, portanto, terem tido um efeito mais rápido. Neste contexto, a ação governamental ou as ações das corporações e bancos visam utilizar a pandemia do coronavírus para justificar medidas que beneficiem os interesses económicos e políticos da classe dominante.

Isto também se reflete nas medidas de restrição na Alemanha. Restrições coerentes de todos as atividades não essenciais teriam sido bastante apropriadas. Mas não foram implementadas na Alemanha. Com exceção de algumas empresas com influência direta e importante do Estado, como a Deutsche Bahn [empresa de transporte ferroviário e de infraestruturas – NT] e a Lufthansa [Companhia aérea de bandeira – NT], a influência direta do governo na direção das restrições foi evitada. As ordens para o encerramento de empresas só foram emitidas quando já não se podia esconder um escândalo como no setor de carnes. Mesmo lá, contudo, as operações não foram completamente encerradas. E a epidemia espalhou-se ali de forma particularmente violenta porque as condições de trabalho insuportáveis, especialmente para os migrantes, já existiam há décadas. Apesar de tudo, também não vão mudar muito no futuro e já há escapes na nova legislação, pois ela só se aplica às grandes empresas, que agora podem ser divididas em empresas mais pequenas para escapar às novas regulamentações, o que já está a acontecer. Outros setores, como a indústria automóvel, usaram e continuam a usar os contratos a tempo parcial prolongados com o financiamento estatal da reposição do salário para mitigar as consequências da crise e garantir os seus lucros. Na Alemanha, o trabalho a tempo parcial é entendido como uma regulamentação ao abrigo do qual os empresários podem, sob certas condições, reduzir as horas de trabalho – e, portanto, os salários – dos seus trabalhadores, total ou parcialmente se, por exemplo, faltarem encomendas, para evitar os despedimentos. Os trabalhadores recebem então um benefício estatal, o subsídio de trabalho a tempo parcial. Como isso equivale a apenas 60% (67% para trabalhadores com filhos) dos salários líquidos, os trabalhadores sofrem uma perda salarial considerável, embora existam acordos coletivos de trabalho em algumas áreas para pagamentos complementares parciais. Embora o subsídio para trabalho a tempo parcial tenha sido temporariamente aumentado durante a pandemia, isso não compensa de forma alguma a perda de rendimento.

Os pacotes de estímulo económico do governo alemão, por ocasião da “crise do coronavírus”, que chegam a centenas de milhões de euros, são medidas para garantir os lucros de grandes corporações, incluindo as da indústria de armamento. A propósito, apenas uma minoria dos assalariados trabalha nessas empresas. Os trabalhadores recebem apenas uma pequena parte desses recursos e pagam com perda de rendimentos, perda de emprego ou trabalho a tempo parcial. Ao mesmo tempo, as associações patronais exigem a redução do salário mínimo, cortes nos gastos sociais, cortes de impostos para as empresas. A luta de classes vinda de cima é travada com toda a sua violência: milhões de pessoas têm trabalho a tempo parcial, mas o número de pessoas oficialmente registadas como desempregadas aumentou mais de 6%. Isto significa que na Alemanha, atualmente, cerca de um quarto dos assalariados têm trabalho a tempo parcial, cerca de 20% estão em empregos precários e 6% estão desempregados, segundo as estatísticas oficiais; o número real de desempregados é muito maior.

No entanto, a política de apoio financeiro às grandes empresas mostra que, na República Federal da Alemanha, o dinheiro está realmente disponível, mas trata-se também de saber para quem o está e para quem não o está. É tarefa dos comunistas consciencializar disso a classe operária e todos os trabalhadores. Devem opor-se à ideologia de uma suposta parceria social – todos supostamente a lutar juntos contra o vírus – e deixar claro que “Não há NÓS no Estado de classe!

No país rico que é a Alemanha, o sistema de saúde não estava preparado para a situação, embora cenários de uma epidemia de longo alcance fossem considerados prováveis. A privatização desenfreada e a orientação para o lucro têm custado tanto aos empregados como aos doentes. Mesmo o dinheiro que inundou o sistema de saúde em face da epidemia de coronavírus não foi usado para melhorar as infraestruturas, mas para garantir lucros.

Os comunistas alemães dizem portanto: a saúde não deve ser uma mercadoria; todas estruturas de saúde devem ser propriedade de todos. A saúde é um direito fundamental.

O sistema de ensino da Alemanha também não estava preparado para a situação de pandemia. As consequências foram endossadas aos pais, às crianças e aos professores. A pandemia agrava a exclusão social e as consequências são particularmente dramáticas para crianças de famílias pobres, que não têm o seu próprio equipamento informático e que podem não receber assistência com o ensino à distância. Não há nenhum apoio especial para essas famílias, as escolas têm poucos funcionários e tudo isso se está a tornar particularmente evidente mais uma vez.

Exigimos mais dinheiro para educação, mais auxiliares de ação educativa, turmas mais pequenas, uma escola para todos, sem privatizações.

Mas a crescente exploração económica é apenas uma parte da luta de classes. A classe dominante também está preocupada em desmantelar os direitos democráticos e sociais. As disposições da Lei do Horário de Trabalho já foram alteradas para pior. As associações patronais estão a exigir a diminuição da proteção contra os despedimentos, mais contratos a termo, o desmantelamento dos direitos das comissões de trabalhadores. O direito de manifestação foi restringido com a justificação da proteção da saúde. No entanto, a sua reposição após a pandemia certamente não será uma coisa pacífica, e serão necessárias duras lutas.

A situação pandémica também demonstrou mais uma vez que a UE é um instrumento de exploração imperialista, especialmente o imperialismo alemão. Países como Itália e Espanha não receberam nenhum apoio. Ao contrário, quando o material médico era urgentemente necessário na Itália, a Alemanha proibiu a sua exportação. Este país, o mais afetado pela epidemia de coronavírus, recebeu apoio da China, de Cuba e da Rússia, mas não da UE. As medidas entretanto adotadas pela UE visam também principalmente estabilizar o sistema financeiro em benefício dos países mais fortes da UE.

O aumento do armamento e da militarização também estão a ser impulsionados à sombra da pandemia. Novos programas de armamento e o apoio a empresas de armamento tornam-se condição de atribuição dos pacotes de estímulo económico, mas também faz parte do esquema a criação de um ambiente que leva à aceitação como normal da intervenção das Forças Armadas em matéria de segurança interna sob o pretexto de combater a pandemia. Mesmo que a manobra americana de grande escala, Defender 2020, apoiada por outros Estados da OTAN, incluindo a República Federal da Alemanha, tenha sido reduzida por causa da pandemia de coronavírus, isso de modo nenhum afeta a política em curso de cercar a Federação Russa e a República Popular da China. Pelo contrário, a propaganda antirrussa e antichinesa continua a crescer. Todas as oportunidades são aproveitadas para endurecer as sanções.

Este ano, o DKP iniciou uma recolha de assinaturas para o levantamento de todas as sanções, incluindo aquelas contra a Rússia, a China, a Venezuela, Cuba e a Síria. Exigimos paz com a China e a Rússia – vamos sair da NATO!

Internacionalmente, o imperialismo alemão está a contar com a integração da NATO por um lado, abraçando conscientemente o papel de parceiro menor do imperialismo dos EUA, enquanto apoia a estratégia agressiva da NATO de cerco militar à República Popular da China e da Federação Russa. Por outro lado, aposta na UE sob a sua liderança, competindo neste aspeto com o imperialismo francês. A UE serve como uma região interior para o seu próprio fortalecimento e como uma concorrente económica do imperialismo dos EUA.

A integração na NATO, a liderança da UE e o seu próprio fortalecimento também levam a contradições, incluindo aquelas entre diferentes secções do capital na Alemanha. Quanto à política economicamente agressiva do imperialismo norte-americano em relação à República Popular da China, partes do capital e o seu governo estão divididos porque precisam de manter relações económicas com a República Popular da China na sua concorrência com o imperialismo norte-americano para o seu próprio fortalecimento. Questão idêntica se coloca quando se trata de lidar com a Federação Russa, como pode ser observado no tratamento do projeto do gasoduto North Stream 2.

A gestão da pandemia e a crise económica global mostram mais do que claramente: o capitalismo não é capaz de resolver os problemas dos trabalhadores, nem mesmo os mais pequenos. Torna-se óbvio que é necessário uma economia planificada e a socialização dos meios básicos de produção, em suma: um desenvolvimento socialista. Os sucessos dos povos da República da China, Vietname e Cuba no combate à pandemia mais uma vez demonstram a superioridade do desenvolvimento socialista. Para tornar possível tal desenvolvimento, ou seja, mudanças revolucionárias em direção ao socialismo, é necessária uma ampla aliança contra o capital monopolista. Isso não é possível sem um forte partido comunista. Nesse sentido, ainda temos muito trabalho a fazer.

Fontehttps://drive.google.com/file/d/1oivXo-NegL88uPdVbmibm1VHc5re1wf3/view, pp. 51-53, acedido em 2021/01/15.

Tradução do inglês de TAM


sábado, 30 de janeiro de 2021


Pensando o voto!


O fim do sonho português?

Os democratas deste país, a imensa maioria dos portugueses, têm de saber lidar com estes cinco pilares para que o fim do sonho não seja seguido de um pesadelo ainda mais longo.

Boaventura Sousa Santos

29 de Janeiro de 2021

Para alguma imprensa estrangeira os resultados das últimas eleições significaram o “fim do sonho português”. O sonho português era o facto de Portugal ser o único país da Europa sem significativa força de extrema-direita. A verdade é que, ao longo dos últimos cem anos, a extrema-direita esteve quase cinquenta anos no poder. No restante período, de 1974 até hoje, continuou a existir como uma pequena minoria ressentida e nostálgica, circulando entre a ilegalidade, a legalidade e, sobretudo, a alegalidade, com manifestações por vezes violentas, outras vezes apenas sordidamente insultuosas, e sempre inconformadamente órfãs do pai que lhes devolvesse o ouro que imaginam alguma vez ter tido. Se algum sonho terminou, foi o da clandestinidade e contenção da extrema-direita. Para que o sonho não seja seguido de pesadelo, é necessário analisar o que ocorreu nas eleições. 

Dadas as circunstâncias, as eleições presidenciais foram um prodígio organizativo e demonstraram um espírito cívico que pode ter espantado mesmo os mais avisados. Apesar de alta, a abstenção foi muito mais baixa do que se previa. Os dois grandes vencedores das eleições foram Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. O primeiro, pelo modo como esteve presente; o segundo, pelo modo como esteve ausente. Em tempo de pandemia, esta vitória maciça é um bom augúrio da estabilidade política por que os portugueses ambicionam neste tormentoso período de existencial insegurança. Seguiram-se dois semi-vencedores, Ana Gomes (AG) e André Ventura (AV). AG mostrou que é possível a dignidade política, mesmo nas condições mais adversas. A sua vitória principal foi a de ter afirmado a força e a valentia da esquerda do PS. Quem não se lembra das afirmações infelizes de Carlos César, presidente do PS, quando AG lançou a sua candidatura e o mal disfarçado asco que mostrou pela sua camarada de partido? A vitória da AG foi condicionada pelo facto de não ter conseguido construir uma aliança com as outras famílias de esquerda, ter dado menos atenção aos jovens e não ter sido hábil no uso das redes sociais.

AV foi um falso semi-vencedor. A sua vitória só foi condicionada pelos objectivos que astuciosamente se propôs. Desta perspectiva, foi um vencedor. Propôs-se objectivos arriscados apenas para ampliar artificialmente o fôlego da sua proposta. O objectivo real foi cumprido. São cinco os pilares principais da força da extrema-direita. Primeiro, o crescimento da extrema-direita, um fenómeno mundial que, com diferentes matizes (a que se junta por vezes o conservadorismo religioso), tem vindo a abalar o mundo na última década. Chega a Portugal com algum atraso, e isso pode ser uma vantagem, dado que começam a ser notórios os desastres sociais e políticos a que a extrema-direita conduz os povos quando governa. Basta ver o caso dos EUA, do Brasil e da Índia. A nova geração de fascistas chega ao poder democraticamente, mas, uma vez no poder, não o exerce democraticamente, nem o abandona democraticamente, se perder as eleições. Segundo, o aprofundamento repugnante das desigualdades sociais, a erosão das expectativas de vida digna da grande maioria da população, o medo abissal da pobreza abrupta, o abandono das populações do interior, a falta de acesso aos serviços públicos, nomeadamente de saúde. Terceiro, um pilar específico do caso português: o não se ter feito um julgamento das atrocidades e violências do fascismo e do colonialismo nem se ter educado as novas gerações sobre esse período obscuro da nossa história, um período muito mais longo que a democracia em que temos vivido desde 1974. Quando não se aprende o que foi o passado, o presente parece traiçoeiramente eterno. Quarto, o papel dos media e das redes sociais. A relação da extrema-direita com os media convencionais tem seguido o mesmo padrão em todo o mundo: um período inicial de deslumbramento seguido de hostilização e recurso predominante às redes sociais. Este processo eleitoral ocorreu todo quase até final na lógica do deslumbramento. Muitos terão ficado chocados com a nova geração de entrevistadores-inquisidores que tudo fizeram para centrar os “debates” na afirmação/negação da presença de AV, e não no conteúdo propositivo dessa presença. O deslumbramento só começou a vacilar quando os jornalistas passaram a ser insultados como inimigos e houve limpa-pára-brisas partidos. Quinto, na ausência de alternativas ao neoliberalismo, à injustiça, ao racismo e ao sexismo, as populações vulnerabilizadas tendem a pensar que os seus agressores são os que estão ainda mais vitimizados que eles, sejam eles ciganos ou imigrantes ou populações negras. Gera-se assim a lógica de vítima contra vítima de que se alimenta a política do ressentimento, o recurso privilegiado da extrema-direita. Os democratas deste país, a imensa maioria dos portugueses, têm de saber lidar com estes cinco pilares para que o fim do sonho não seja seguido de um pesadelo ainda mais longo.

O grande derrotado das eleições foi o PSD. O erro político que o seu presidente cometeu ao admitir, em geral, e ao concretizar nos Açores, alianças com o partido/candidato de extrema-direita, ao arrepio dos principais partidos europeus da mesma família política, mostrou que, sendo um bom gestor, não tem cultura nem visão política à altura das extraordinárias circunstâncias em que vivemos na Europa e no mundo. Devia saber que, quer na Europa, quer no mundo, da Hungria e da Polónia aos EUA e ao Brasil e à Índia, a extrema-direita não tem soluções para proteger a vida ou melhorar a economia. É eficaz a destruir, mas nada pode construir em democracia. Pela simples razão de que a sua solução é a destruição da democracia. Por outras palavras, sabe partir loiça, mas não sabe fazer loiça, e muito menos encher os pratos de comida.

Os dois extremos já não se tocam, pela simples razão de que só há um extremo, a extrema-direita. Se estas lições não forem aprendidas, o BE pode desaparecer, uma perda irreparável para as esquerdas e um empobrecimento perigoso da democracia

A esquerda foi de igual modo derrotada, sobretudo porque não se soube unir. Ninguém se apercebeu das diferenças políticas substantivas entre Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias. Chegaram a desaprender o que tinham aprendido em eleições anteriores. Os cálculos políticos derrotaram a política. À esquerda do PS, a derrota foi estrondosa, muito particularmente o Bloco de Esquerda. Espero que a actual direcção aprenda as duas lições principais deste desastre. Primeiro, um bom candidato não basta para corrigir um erro político grosseiro, como foi o de não se abster na votação do Orçamento de 2021. Em tempos de excesso de medo e de enorme deficit de esperança devido à pandemia, era crucial ser parte da solução de governação, uma solução que, não sendo perfeita, não o é mais ou menos que as decididas nos outros países que nos servem de referência na UE. A deserção do BE animou a direita que, a partir de então, assumiu a estratégia de isolar o Governo e pôs o BE na posição de quase pedir desculpa por ter votado contra. Segundo, na actual conjuntura internacional, o anti-sistema foi capturado pela extrema-direita. Pela simples razão de que o anti-sistema agora não é o socialismo ou o comunismo, mas a ditadura e o fascismo, por mais disfarçado de “democracia iliberal”. O sistema é a democracia com todos os defeitos (cada vez maiores) e virtudes (cada vez menos imprescindíveis para largas minorias).

A luta da esquerda deve ser hoje a de aprofundar as virtudes e neutralizar os vícios. Chamamos a isso radicalizar a democracia. Como não há extrema-esquerda, o BE é parte do sistema, e é nessa qualidade que deve concordar e discordar. Isto significa que em caso algum pode dar argumentos ou espaço aos anti-democratas. Os dois extremos já não se tocam, pela simples razão de que só há um extremo, a extrema-direita. Se estas lições não forem aprendidas, o BE pode desaparecer, uma perda irreparável para as esquerdas e um empobrecimento perigoso da democracia.

Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021


 

Ai Portugal, Portugal

Hoje safámo-nos por pouco. Com Ana Gomes a derrotar a extrema-direita, evitou-se o “desastre à francesa” e há ainda aqui muito que é reversível — se se aprenderem as lições destas eleições e se volte a dar uma estratégia compreensível para o futuro deste país. Ai Portugal, Portugal. Do que é que tu estás à espera?

Rui Tavares

Oxalá aprendessemos as lições. Umas eleições organizadas em pleno pico da pandemia, numa teimosia formalista que nem dezenas ou centenas de milhares de portugueses impedidos de exercerem o seu voto por estarem infetados ou em isolamento profilático conseguiu aplacar. Um Presidente que desvalorizou o ato eleitoral ao ponto de nem sequer produzir para ele tempos de antena. Um primeiro-ministro e líder do maior partido que desvalorizou ainda mais e ainda antes as eleições presidenciais, dando o seu resultado por adquirido e forçando o seu partido a não assumir uma posição de apoio a uma candidatura. Uma direita que deixou que se normalizasse no seu seio uma extrema-direita perante a qual não consegue formar um cordão sanitário e sem a qual não conseguirá, já nas próximas eleições autárquicas, formar muitas maiorias pelo país fora. E, finalmente, uma esquerda que depois de ter tido dois terços dos votos ainda há ano e meio, porque o eleitorado então validou nas urnas a convergência da “geringonça” e deu à esquerda partidária a maior maioria parlamentar desde o 25 de abril, está de novo enredada nos seus taticismos e curto-prazismos, como demonstrado pela votação no último orçamento e pela apresentação de candidatos partidários para ocupar espaço partidário numas eleições que — como quer a Constituição tantas vezes citada — têm uma natureza não-partidária.

As lideranças políticas do país — nos órgãos de soberania como nas direções dos partidos tradicionais — quiseram que estas eleições fossem só para cumprir calendário. Esqueceram-se, ou fingiram esquecer-se, do essencial: que uma eleição por sufrágio direto e universal numa época de várias crises em simultâneo será sempre um sinal político impossível de desvalorizar. E as eleições deste domingo deixaram Portugal à beira do abismo, com uma direita em crise profunda, canibalizada pela sua extrema-direita, e uma esquerda sem saber o que fazer ao mandato que lhe foi dado em 2019, deixando o seu eleitorado desmobilizado e angustiado com a ascensão da extrema-direita e a falta de rumo estratégico do país.

À hora a que escrevo, a queda no abismo só não se deu graças a Ana Gomes, que ainda há poucos meses tinha todas as razões, em particular pessoais, para não querer avançar. Antes de Ana Gomes avançar para estas eleições, todas as sondagens durante o último ano davam o candidato da extrema-direita à frente dos candidatos partidários da esquerda. Se Ana Gomes tivesse faltado a estas eleições, o candidato da extrema-direita teria ficado em segundo e estaríamos agora face ao cenário do desastre francês de 2002 que, ao que tudo indica, só teremos evitado in extremis.

Ouviremos todo o tipo de justificações partidárias para que a convergência à esquerda não se tivesse feito. Depois de dadas essas justificações, o que ficará por esclarecer é o seguinte: já se esqueceram que, em 1996, quando Sampaio ganhou as eleições contra Cavaco Silva, foi também graças a uma desistência de Jerónimo de Sousa? Já se esqueceram que ainda há poucos anos o BE apoiava o candidato oficial do PS, Manuel Alegre, em pleno consulado de José Sócrates? O que se passou para terem esquecido essas lições? Será Ana Gomes menos à esquerda do que Alegre ou Sampaio? Já se esqueceram de todas as vezes que a elogiaram para contrapor a um PS oficialista? Já pensaram na vantagem estratégica que teria sido apoiar uma candidatura na esquerda do PS, entrando no seu eleitorado, cilindrando o candidato da extrema-direita, ganhando espaço para temas tão essenciais como a transparência, a justiça, a igualdade e a ecologia no debate no interior da maioria parlamentar de esquerda? Não é só o que se perde por não fazer a convergência — é também o que não se ganha.

A esquerda terá agora cinco anos para reaprender a ganhar eleições presidenciais, coisa que parece ter esquecido há duas décadas. Mas antes disso há algo de muito mais urgente e importante: o que fazer aos últimos dois anos e meio desta legislatura, sustentada por uma maioria de esquerda que não é capaz de assinar um papel em conjunto com uma estratégia para o país. Se a esquerda não entender que tem de arrepiar caminho na forma como (não) está a usar a sua maioria, se continuarmos a ver as jogadas meramente táticas para romper com a “geringonça”, um dia acordaremos com uma maioria de direita, apoiada na extrema-direita, tendo os maiores fundos europeus de sempre para gastar — e se a esquerda detestou Cavaco como primeiro-ministro, que se prepare para pior.

Se a esquerda não entender que tem de arrepiar caminho na forma como (não) está a usar a sua maioria, um dia acordaremos com uma maioria de direita, apoiada na extrema-direita, tendo os maiores fundos europeus de sempre para gastar

Hoje safámo-nos por pouco. Com Ana Gomes a derrotar a extrema-direita, evitou-se o “desastre à francesa” e há ainda aqui muito que é reversível — se se aprenderem as lições destas eleições e se volte a dar uma estratégia compreensível para o futuro deste país. Ai Portugal, Portugal. Do que é que tu estás à espera?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Historiador; fundador do Livre


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O CORONA VÍRUS NÃO ESCOLHE IDADES NEM RAÇAS


 

EM TEMPO DE ELEIÇÕES E PANDEMIA ESTE ARTIGO AJUDA A PERCEBER A SOCIEDADE EM QUE VIVEMOS!


Este mundo não é para velhos

Nestas eleições, como em todas as outras, iremos votar com um sentido altruísta e de solidariedade intergeracional, contra todos aqueles que no passado recente tentaram criar na nossa sociedade, por interesses mesquinhos, um conflito de gerações.

Jaime Teixeira Mendes

20 de Janeiro de 2021

Corre nas redes sociais a chamada Declaração de Great Barrington, uma carta organizada por proeminentes defensores da imunidade coletiva, que foi apresentada como sendo assinada por mais de 15 mil cientistas e médicos, bem como por mais de 150 mil elementos do público em geral.

O canal britânico Sky News encontrou, contudo, dezenas de nomes falsos na lista de signatários médicos, realidade potenciada por se poder inscrever qualquer nome através do site da declaração (in Observador, 9/10/ 2020). Facto que levanta mais uma vez a necessidade de averiguação das “fake news” antes de propagar notícias nos écrans das televisões.

A defesa da imunidade de grupo, ensaiada por países como a Suécia, Reino Unido e Bélgica, e apoiada numa carta de médicos e cientistas, a chamada Declaração de Great Barrington, foi uma experiência negativa que levou à morte desnecessária de inúmeras pessoas. Felizmente, os erros foram reconhecidos – inicialmente pelo Reino Unido e a Bélgica, e por último pela Suécia, com um pedido de desculpa do próprio Rei.

Esta e outras atitudes mostram como as sociedades ocidentais encaram os seus cidadãos mais velhos. Não como sendo aqueles que pertenceram a uma geração que se ergueu no pós-guerra e reconstruiu a Europa, descolonizou, dando origem ao aparecimento de muitos jovens Estados nos continentes africano e asiático, fez a terceira revolução industrial e lutou com êxito pela melhoria das condições de trabalho, pelo acesso universal dos povos à educação e à saúde, assim como na difícil manutenção da Paz. Esta é a geração que foi apelidada de baby boomer devido ao forte aumento de natalidade no pós-guerra (1940-1964) e que em Portugal lutou pela Liberdade, viveu a prisão, o exílio, a emigração e a guerra nas colónias. Luta que valeu a pena, pois restituiu ao país a dignidade, a liberdade e a justiça social.

É por tudo isso que não se compreende que se sacrifique esta geração, defendendo um darwinismo social eticamente reprovável.

Não tenho ilusões que as primeiras ameaças à geração grisalha vieram do espírito neoliberal, com acusações de que já não era produtiva, e de que seria um peso para a Segurança Social, como vimos num passado recente. Mas tentativas para silenciar esta geração “rebelde” estão em curso e não são certamente apenas da famigerada pandemia

Quando um país é ameaçado por um invasor, deverão ser os jovens a estar na primeira linha de combate. Seria inédito, na história, chamar-se os mais velhos a ocuparem as primeiras trincheiras.

Não tenho ilusões que as primeiras ameaças à geração grisalha vieram do espírito neoliberal, com acusações de que já não era produtiva, e de que seria um peso para a Segurança Social, como vimos num passado recente.

Mas tentativas para silenciar esta geração “rebelde” estão em curso e não são certamente apenas da famigerada pandemia.

Numa entrevista publicada na Philosophie Magazine, de Agosto de 2020, Andrei  Poama, professor na Universidade de Leyde, que estuda a ética da privação do direito de voto, analisa a proposta da reforma eleitoral em que o valor do voto de um eleitor diminuí com a idade do cidadão.

A ideia que uma geração mais numerosa de idosos possa dominar outra de jovens é sustentada por alguns politólogos. Já no século passado, com argumentos que estes estavam mais exemptos das consequências dos seus votos que os jovens, Douglas Stewart propunha retirar o direito de voto a partir dos 70 anos ou da idade da reforma.

Filósofos e politólogos de vários países defendem que as pessoas idosas participam mais que os jovens e que assim defendem mais os seus interesses imediatos, ao mesmo tempo que propõem que o valor do seu voto seja inferior ao de um jovem, ou seja, metade de o de um jovem de 18 anos.

Enfim, muda-se o critério normativo: não é a pessoa que conta mas a esperança de vida e o interesse igual de cada um. Passaríamos de “uma pessoa, um voto” para “um futuro, um voto”.

Este pensamento baseia-se na ideia do voto dos velhos ser um voto egoísta.

Acontece que a geração mais velha tem no seu ADN a solidariedade, e quando vota é também a pensar nos mais jovens. Toda esta ideia de “um futuro, um voto”, além de moralmente questionável – acordar ou não o direito de voto segundo a idade –, põe em causa a essência da democracia.

Estes conceitos conduzem, inevitavelmente, a encorajar atitudes de discriminação devido à idade já presentes na nossa sociedade.

Nestas eleições, como em todas as outras, iremos votar com um sentido altruísta e de solidariedade intergeracional, contra todos aqueles que no passado recente tentaram criar na nossa sociedade, por interesses mesquinhos, um conflito de gerações.

Cirurgião pediatra; presidente da AMPDS – Associação de Médicos Pelo Direito à Saúde


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

 

Em tempo de pandemia e de eleições presidenciais este texto é oportuno e ajuda também a perceber que um acto eleitoral exige de todos nós votar conscientemente pois tudo isto anda ligado.

MC

Pobreza e desigualdade

E nós? Será que o ímpeto inato da igualdade morreu em nós? Não bastam esmolas nem remendos. A cada um a responsabilidade de lutar pela igualdade. Porque há desigualdade, há pobreza, há crise e há um mundo natural a ser destruído em nome do lucro.

Isabel do Carmo

18 de Janeiro de 2021

Nas festas foi um tempo de se falar dos pobres. Epidemia, mais pobres, mais desigualdade. Vão aumentar. Ora, se há pobres é porque há desigualdade. Nenhum país é só de pobres ou só de ricos. É o “sistema”, dizem. Se há pobres há insegurança alimentar, más condições de habitação. Estas situações são causa de vida sem saúde e de mais anos com doença. E se há pobres e desigualdades é porque há muito ricos, para chamar as coisas pelos nomes. Estes não encontram formas de repartir, no mínimo aumentando os salários. É o “sistema” da concorrência, dizem. Pois então é contra este “sistema” que temos que lutar. Porque a pobreza e a desigualdade não podem ser eternas.

Em todos os países estudados há desigualdade, mas é diferente de uns para outros. Com uma constante: quanto mais desigualdade, mais pobreza. Mesmo nos países menos desiguais, os escandinavos, social-democracia real, os 10% mais ricos detêm 25% do rendimento do trabalho e do capital, enquanto 50%, os mais pobres, detêm 30%. Desigual, mas menos mal, se tivermos em conta que a saúde, a educação e outros bens públicos são universais e gratuitos. Mas se formos para o farol do capitalismo, os Estados Unidos da América (EUA), a nação de Reagan e de Trump, sempre grande, polícia do mundo, autoritária, a vender armas e a fazer guerras, os 10% mais ricos detêm 60% do rendimento do capital e do trabalho e 50%, que são os mais pobres, detêm 15%. Estreitando a divisão em percentis, nos EUA, um país com 260 milhões de adultos, 1% detém o principal da riqueza e os outros têm 99%, slogan do movimento Occupy Wall Sreet. Mas 1% são 2,6 milhões de pessoas! É muita gente com muito poder – financeiro, político, cultural, comunicacional, militar. E chamam a isto o apogeu da democracia!

É a esta gente que o Reino Unido e o resto da Europa, nós próprios, temos buscado inspiração. Das suas agências ou afins ouvimos notícias, as suas redes de comunicação mandam em nós, vemos os seus filmes, a agência de medicamentos inspira as directivas europeias. A cultura da desigualdade tem sido aquela que nos domina. A Europa é menos desigual, mas tem sido o suficiente para ter pobreza bem visível. Os países menos desiguais têm menos pobreza, mais distribuição de rendimento. Mas globalmente, na Europa, 60% do património nacional pertence a 10% da população e 50%, que são os mais pobres, detêm 5 a 10%. Em Portugal melhorou, mas em 2017 estava com um nível de 17,3% da população na pobreza, mesmo depois das transferências sociais serem feitas (INE, 2017). Uma grande parte desta população (10%) são pessoas que trabalham. Se formos ver os Açores, são 32% os que estão abaixo do limiar da pobreza. Serão mais agora que lhes vão tirar as transferências sociais, decisão da nova coligação parlamentar.

Estes números crescerão muito em 2020, em todos os países, com os novos pobres da pandemia. As desigualdades também. Nos países onde já foram estudadas, os ricos estão mais ricos. O Institute of Policy Studies dos EUA publicou: as fortunas combinadas dos 647 mais ricos do país cresceram quase um milhão de milhões (1 bilião) entre Março e Novembro de 2020. Em Portugal estamos a falar de um limiar de pobreza calculado em 501€. Mas quem recebe o salário mínimo não está rico com certeza. Quanto aos mais velhos, há 1.457.205 pensionistas a receberem uma pensão abaixo do salário mínimo. A pensão mínima da Segurança Social é de 275,28€ e a da Caixa Geral de Aposentações é de 257,28€. O aumento de 10€ para as pensões abaixo de 658,20€ aprovado pelo Orçamento Geral do Estado de 2021 talvez desse para comprar alguns iogurtes e fruta, poucos, durante um mês, mas serão talvez para acrescentar aos pagamentos da água, da electricidade e do telefone.

Não é de estranhar que 10% da população tivesse em 2015 insegurança alimentar, dificuldade de acesso a alimentos seguros e nutritivos, que permitam uma vida saudável, e que cerca de 50% não comam vegetais e fruta suficientes (Carla Lopes e col., Inquérito Nacional de Alimentação e Actividade Física). Quanto à habitação, em Portugal há 4,1% de pessoas com privação severa das condições de habitação (Eurostat, Observatório das Desigualdades, 2017). Os critérios para considerar “severa” são muito apertados e não se sabe até que ponto estão incluídos os bairros ilegais. Com estas condições de rendimento, de alimentação e de habitação, os pobres têm mais doenças, mais obesidade, mais diabetes, mais doenças cardiovasculares, mais pneumonias, maior mortalidade.

Claro que o aspecto exterior das famílias foi mudando. Uma casa de família pobre e sem comida na mesa, mas com sofá, televisão e as pessoas vestidas e calçadas, pareceria rica, aos olhos de observadores do Barreiro onde nasci e vivi. Os bens e o consumo evoluem, mas a pobreza e a desigualdade também. A crise vai agravar tudo. Na anterior crise financeira, 2008 a 2015, as consequências foram graves: o SNS gastou menos 540 milhões de euros em medicamentos e 15,1% dos utentes diziam não os ter adquirido por falta de dinheiro, cerca de 9% não foram à urgência por dificuldades económicas, 5% por falta de dinheiro para os transportes; fizeram-se menos cinco milhões de consultas nos Centros de Saúde entre 2008 e 2015, as camas hospitalares decresceram entre 2010 e 2014 (Observatório Português dos Sistemas de Saúde, Relatório da Primavera 2015). Quanto ao que se passava nos lares, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, era uma voz a pregar no deserto. Durante a crise aumentaram as doenças mentais, as anemias por falta de ferro, as doenças respiratórias. Não foram estudadas as carências nutricionais no sangue, mas deviam ter sido. Perante este quadro dramático levantou-se o movimento “Que se lixe a Troika”, mas não houve tumultos, revoltas desordenadas, pedras, barricadas… Mansamente caminhámos através das cidades, em multidão. Mas não houve mudança, pelo menos imediata. Quanto às vozes que agora se levantam diariamente, nessa altura estiveram caladas.

E se há desigualdade é porque há ricos. As 25 famílias mais ricas de Portugal detinham em 2018 19 mil milhões de euros, o que equivalia a 10% do PIB. São elas, concentradas para abreviar, a Corticeira Amorim, a Jerónimo Martins e sociedades ligadas, o Grupo José de Mello, a Sonae, o Grupo Simoldes, a Alves Ribeiro Construção, a Visabeira, a Portucel, o Grupo Pestana, o Violas SGPS, a RAR, a Mota Engil, Mário Ferreira, a Farfecht, a Salvador Caetano, a Nutrinveste, a Lusiaves, a Out Systems, a Ascendum. Sabe-se que algumas destas sociedades põem o seu dinheiro em projectos não rentáveis, com benefício público. Calcula-se também que algumas terão gestos de solidariedade importantes. Também não se trata de “diabolizar” os ricos, de forma primária. Trata-se de, mais uma vez, pensar no “sistema”.

Os possuidores de tanto património, para além de o colocarem em offshores, portanto numa nuvem sem impostos, que lhes deve dar uma sensação de poder, não têm onde gastar tanto dinheiro. Acumulam. A acumulação agrava a desigualdade. Rousseau dizia que a igualdade é uma aspiração inata da alma ou do coração dos humanos. Será? O ímpeto da igualdade fez parte dos movimentos cristãos iniciais, mas bloqueou quando se tornou religião do Estado e quando o proselitismo se transformou em massacres. Passou a religião e liturgia dos ricos e foi necessário que passassem séculos para novos profetas tentarem recuperá-la como religião dos pobres. O ímpeto da igualdade foi também motor das revoluções que triunfaram numa parte do mundo e foram a esperança dos deserdados e humilhados. Mais uma vez, como catecismo do Estado, a esperança foi morta e massacrada, sem respeito pelos seres humanos.

E nós? Será que o ímpeto inato da igualdade morreu em nós? Não bastam esmolas nem remendos. A cada um a responsabilidade de lutar pela igualdade. Porque há desigualdade, há pobreza, há crise e há um mundo natural a ser destruído em nome do lucro.

Médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, membro do grupo Estamos do Lado da Solução

Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política


quarta-feira, 17 de junho de 2020

O RACISMO EM TEMPOS DE PANDEMIA



Um novo sistema de valores
A ideia que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de opinião no Brasil, em 1988, na qual 97% dos inquiridos respondeu não ter preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre familiares e amigos...
16 de Junho de 2020 Francisco Bethencourt

As manifestações anti-racistas surgidas em todo o mundo como reação ao assassinato gratuito de George Floyd por um polícia branco norte-americano podem indiciar uma mudança no sistema de valores, não só quanto a referências, mas também quanto a práticas concretas.
Poder-se-ia dizer que este movimento pelos direitos dos negros norte-americanos, vitimizados por táticas brutais da polícia desde a emancipação falhada do final da Guerra Civil em 1866, está na linha de vários protestos, desde o início do século XX, contra permanente abuso e linchamento, ate ao movimento dos anos 60, que finalmente abriu caminho aos direitos civis, com largos custos, como o assassinato de Martin Luther King, Jr.
Contudo, há algumas diferenças radicais em relação a protestos anteriores. Os movimentos racistas e supremacistas brancos estão em declínio; até aos anos 60 eram eles que assaltavam bairros negros e originavam os protestos. As pilhagens que se verificaram agora nalguns protestos, prejudiciais ao movimento anti-racista, têm sido condenadas, mas não os protestos em si. Nestes protestos vêem-se muitos brancos e asiáticos, ao contrário do que acontecia até aos anos 60. Finalmente, este movimento social tem-se espalhado a outros países, onde o legado colonial é visível nos locais de memória, na topografia e nos monumentos.
Há duas novidades que mostram a mudança rápida de opinião. Em primeiro lugar, o ajoelhar durante o hino nacional como protesto contra a discriminação racial, iniciado em 2016 no desporto, rapidamente condenado e banido, é agora autorizado, ao mesmo tempo que se vêem polícias brancos a ajoelhar em solidariedade com os protestos. Esta nova atitude estende-se a tradicionais corridas de automóveis organizadas no sul dos Estados Unidos sob a bandeira da Confederação, agora banida. Em segundo lugar, as autoridades locais, que durante décadas bloquearam qualquer discussão sobre estátuas controversas, consideram agora a sua transferência para museus.
A vandalização e destruição de estátuas podem ser contraprodutivas, dado o enraizamento de figuras do passado na memória coletiva. Ainda se está para ver as consequências políticas de todo este movimento, por exemplo, ao nível das eleições para a presidência americana em novembro. Contudo, Trump foi colocado na defensiva, é visível a perda de iniciativa depois de uma primeira tentativa militarista falhada por recusa das chefias militares e governadores de Estados. A verdade é que movimentos iconoclastas fazem parte da história, envolvendo a religião hebraica, o Islão e um breve período da Igreja Ortodoxa Grega, a reforma Protestante com exclusão de imagens em diversas regiões da Europa, a revolução francesa com o esvaziamento de igrejas, enquanto o pós-guerra, a descolonização e o pós-comunismo geraram natural substituição de estátuas públicas com sentido político.
Haverá um conflito de memória entre diferentes grupos sociais com interesses políticos opostos, mas na minha opinião estamos num ponto de viragem. A noção de direitos humanos, baseada na dignidade de todos os seres humanos onde quer que eles vivam e qualquer que seja a sua origem e religião, tende a prevalecer. Não se trata já da noção abstrata de Rousseau, que tanto influenciou a declaração dos direitos humanos proclamada pela revolução francesa, mas só se referia a brancos, ou a declaração de independência dos Estados Unidos, que retirou a referência ao esclavagismo dados os interesses dos estados do sul. Trata-se agora de uma atualização, na prática, da declaração universal dos direitos humanos aprovada pelas Nações Unidas em 1948.
Já nessa altura, o debate em torno dos direitos do indivíduo face ao Estado, considerado por Samuel Moyn como pedra angular, abriu-se aos direitos económicos e sociais. A meu ver, a posição de Moyn é limitada, os direitos humanos devem ser entendidos na sua complexidade. O respeito pelas minorias e a rejeição do racismo estão ali inscritos dado o genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. Mas o que as últimas décadas trouxeram de novo foi um impulso coletivo para a concretização, na prática, desses princípios, ao nível do acesso a residência, emprego, educação, formas de mobilidade social que permitam quebrar a espiral de pobreza em que minorias e classes sociais estão encerradas.
Entretanto, os direitos das comunidades indígenas e os direitos do ambiente e dos animais têm-se afirmado, apesar dos recuos dramáticos em certos países, sobretudo no Brasil, onde a capacidade destrutiva do governo de extrema-direita podia ter ido ainda mais longe sem a resistência de instituições estaduais e federais. Esses direitos definem novas formas de solidariedade e de responsabilidade por uma relação equilibrada com o planeta onde vivemos e do qual dependemos. Mas há mais, o respeito pelas minorias de orientação sexual alternativa enraíza-se em muitos países, enquanto o respeito pelos direitos dos consumidores e pelos direitos dos trabalhadores, inclusive nos países em vias de desenvolvimento, se torna cada vez mais sensível. As empresas envolvidas em práticas de exploração de salários baixíssimos, ou de produção abaixo dos padrões mínimos de qualidade, arriscam processos de boicote que podem custar a quebra na bolsa ou a simples bancarrota.
O novo sistema de valores envolve uma nova ética de respeito pelas pessoas e pela natureza. O sistema económico capitalista baseia-se no lucro, mas os dias da sobreexploração de pessoas e recursos podem estar contados dada a tomada de consciência dos direitos humanos e ambientais. Os efeitos da globalização, como já tinha previsto Norbert Elias, poderão incluir a difusão desses direitos renovados e readaptados, com novos códigos de conduta a vários níveis, empresarial, organizacional, estatal. O desenvolvimento da economia social, com favorecimento de cooperativas, é uma opção que deve ser tida em conta neste novo período de ética social. A reforma do sistema, prometida por Elizabeth Warren, pode ser imposta simplesmente pela extraordinária crise atual, é uma ilusão pensar que tudo voltará ao que era.
Uma última palavra sobre Portugal: a ideia de que não existe racismo só me faz lembrar uma célebre sondagem de opinião no Brasil, em 1988, no centenário da abolição da escravatura, na qual 97% dos inquiridos respondeu não ter preconceitos de raça, mas 99% declarou que conhecia racistas entre familiares e amigos... O Brasil não é comparável, mas existem numerosos estudos da equipa de Jorge Vala desde 1995, bem como as sondagens regulares do Eurobarómetro, que mostram a existência de um racismo consistente, com preconceitos biológicos e culturais, no nosso país. Os dados disponíveis não colocam Portugal no grupo dos países europeus mais inclusivos. Temos claramente um problema educativo, que o negacionismo de parte da classe política certamente não ajuda a resolver. 
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Professor no King's College de Londres