sexta-feira, 6 de junho de 2014

AS ELEIÇÕES EUROPEIAS, ANÁLISES

As europeias de 2014: subsídios para a compreensão dos resultados
05/06/2014 - 05:57
É difícil não ver nestes resultados uma contestação aberta ao rumo que a Europa tem seguido nos tempos recentes.
As europeias de 2014 tiveram resultados extraordinários na Europa, nomeadamente devido à fulgurante ascensão da direita radical no PE. Mas ficaram também marcadas pelo refluxo dos partidos do centro, os quais têm governado a UE em situação de “grande coligação” (ou seja, com a esquerda socialista e a direita conservadora juntas) e que são corresponsáveis pelo cunho neoliberal que a Europa tem tido desde Maastricht, mas também por uma construção europeia cada vez mais feita nas costas dos cidadãos.
Em Portugal, à derrota histórica da direita correspondeu uma vitória pálida do PS, um refluxo dos bloquistas e, em contraponto, à afirmação mais ou menos bem-sucedida de micropartidos como o MPT, o Livre e o PAN. Mais, a “vitória de Pirro” do PS está a gerar ondas de choque no partido e a possibilidade de uma mudança na liderança está em aberto. O objetivo deste artigo é refletir sobre os resultados das europeias e algumas das suas eventuais implicações na Europa e em Portugal.
Na Europa, as eleições para o PE ficaram marcadas pelo refluxo das duas maiores famílias políticas. De 2009 a 2014, os conservadores do PPE, onde pontuam PSD e CDS-PP, passaram de 35,77% para 29,43% dos lugares, regredindo de 274 para 221 assentos (note-se que o PE passou de 766 para 751 membros). Apesar de a direita estar no poder numa maioria de países, os Socialistas & Democratas (S&D), grupo no qual se insere o PS, foram também fustigados: passaram de 25,59%, em 2009, para 25,17% dos lugares, i.e., de 196 para 189 eurodeputados. A crescer só mesmo a direita radical, a qual, segundo a imprensa, poderá chegar aos 130 eurodeputados e formar um grupo parlamentar forte, e a esquerda radical do GUE/NGL, onde estão o PCP e o BE, a qual passou de 4,57% para 5,99% (de 35 a 45 membros).
É difícil não ver nestes resultados uma contestação aberta ao rumo que a Europa tem seguido nos tempos recentes, seja do ponto de vista da sua democraticidade, seja das suas políticas socioeconómicas. No primeiro caso, basta lembrar o Tratado Constitucional Europeu, que, após ter sido chumbado em referendo na Holanda e em França, foi transformado em Tratado de Lisboa e passou a ser aprovado apenas e só pelos Parlamentos nacionais (ou seja, nas costas dos cidadãos), exceto quando imperativos constitucionais obrigavam a procedimento diverso. Mas foi, além do mais, um embuste perpetrado pelas elites sobre os cidadãos comuns porque, como disse Valery Giscard d’Estaing, “são exatamente os mesmos instrumentos. Só se mudou a forma como estão arrumados (Le Monde, 27/10/2007)”. Por cá, PS e PSD, que se tinham comprometido com um referendo, cumpriram obedientemente os novos ditames europeus, preferindo rasgar o compromisso que tinham com os eleitores. Ou basta ainda lembrar a miríade de instituições não eleitas e com enormes poderes, nas quais avulta naturalmente o BCE, o qual pode, através das suas intervenções (ou da falta delas) nos mercados de capitais, fazer descer ou subir, respetivamente, significativamente as taxas de juro da dívida pública dos países sem sequer prestar contas aos eleito(re)s europeus, nomeadamente ao PE. Ou ainda o esmagamento do peso dos pequenos países desde os tratados de Amsterdão e de Lisboa.
Do ponto de vista das políticas socioeconómicas, basta pensar que a Europa que temos (não uma qualquer Europa ideal que muitos prezamos e julgamos desejável), e cujas orientações têm sido cristalizadas nos tratados (nomeadamente no Tratado Orçamental) com o beneplácito do PPE e dos S&D (e, por cá, do PSD e do PS: Portugal foi o primeiro país a assinar o Tratado Orçamental, pasme-se), sobrevaloriza o princípio da concorrência em detrimento da proteção dos serviços públicos. É também a UE “realmente existente” que endeusa a concorrência e as liberdades dos movimentos de capitais, mesmo que tal implique a competição pelos mínimos sociais e fiscais e uma Europa de mãos atadas perante os mercados de capitais. É ainda esta Europa “realmente existente” que sobrevaloriza o combate à inflação e os equilíbrios orçamentais, em detrimento do crescimento económico e do emprego, e que não hesita em dar prioridade ao salvamento da banca, mesmo que tal implique atirar para o desemprego e para o empobrecimento milhões de cidadãos. O PS pode até ter uma visão mais crítica desta Europa “realmente existente” do que o PSD (pelo menos o atual, ferozmente neoliberal), mas a verdade é que, por um lado, parece de mãos atadas perante os tratados que bloqueiam a Europa e, por outro lado, não parece disposto a “dar murros na mesa” e a correr riscos para tentar infletir o rumo das políticas europeias (na verdade, quando a França do PSF vacila, que podemos efetivamente esperar do Portugal do PS?). Ou seja, as suas divergências face ao PSD em matéria do rumo de política europeia, na prática, resumem-se a muito pouco, dada a “impotência democrática” que grassa por essa Europa fora. Por isso, os temas europeus não foram politizados (pelos partidos do centro) nas últimas europeias, em Portugal pelo menos, e não puderam, por isso, servir de muito na hora de votar. Resta ver como reagirão os S&D e o PPE perante o ascenso dos eurocéticos. Com mais uma “grande coligação” e continuidade nas políticas, “mudando alguma coisa para que tudo fique na mesma”? Ou procurando infletir na política de alianças e no rumo do policy making da UE, e assim respondendo aos desejos de mudança dos cidadãos europeus?
A direita portuguesa teve uma derrota histórica nestas eleições para o PE: comparando a percentagem de votos dos partidos da coligação em 2011 com a mesma percentagem em 2014, verificamos a maior penalização de sempre do governo incumbente nestas eleições de segunda ordem: -22,9%. As segundas e terceiras maiores penalizações anteriores, com Socrátes, em 2009 (-18,4%), e Cavaco, em 1989 (-17,5%), ficam ainda assim a notável distância. O PS venceu, é certo, mas apenas tangencialmente: os 31,45% de 2014 são pior resultado do partido desde 1994, inclusive, se excetuarmos o annus horribilis de 2009. Mais, se compararmos a situação com as europeias, cujo contexto era  equivalente ao de Maio passado, as de 2004, então a magreza da vitória socialista é ainda mais evidente.
Claro que estes magros resultados socialistas pouco ou nada têm a ver com a organização interna do partido ou com o sistema eleitoral (como sugerem as florentinas propostas do líder para ganhar tempo perante o assalto à liderança de António Costa), têm antes que ver com a incapacidade do PS em se apresentar como uma alternativa credível e robusta face à direita, com a incapacidade demonstrada em tentar construir uma nova política de alianças (que não legitime a direita neoliberal radical, reciclando-a para o próximo governo… como se perspetiva difusamente…), e com a falta de vontade de correr riscos e de “dar murros na mesa” para procurar infletir a política neoliberal europeia. De facto, perante o Governo mais impopular de sempre, que governa sem mandato político, violando a Constituição e fazendo cerrados ataques ao TC (revelando até falta de patriotismo ao mobilizar instituições internacionais nas investidas contra o tribunal), com políticas de austeridade iníquas e de resultados desastrosos, a vitória do PS é ainda mais frustrante. De facto, o PS mal se diferenciou da direita, sobretudo até ao final de 2012, apesar de o executivo governar muito (!) para além da troika: segundo dados coligidos por investigadores da FCSH-UNL, entre Junho de 2011 e Setembro de 2012, o PS só votou contra 16,7% das propostas da direita na AR; aprovou 58,3% e absteve-se em 25%. Mais, a direção socialista que consagrou a liberdade de voto dos seus deputados foi a mesma que, em 2012, tentou por todos os meios demover deputados seus de pedirem a fiscalização constitucional do Orçamento para 2012. E, apesar do monumental embuste eleitoral, em 2011, da governação além troika e reiteradamente contra a Constituição, o PS tem estado sempre disponível para se entender com a direita, basta lembrar a célebre “reforma” do IRC. Se continuar por este andar, ainda se arrisca a perder em 2015, ou a ter mais uma “vitória de Pirro”.
Politólogo, professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)