terça-feira, 31 de julho de 2018

SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE









Uma campanha travestida a respeito do SNS
É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita.
31 de Julho de 2018 Isabel do Carmo
No conjunto de títulos e de notícias que têm ocupado a comunicação social a respeito da Saúde, podemo-nos perguntar se se trata de um debate, de uma defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou de uma campanha de promoção dos serviços privados e de uma perspectiva política de facto anti-SNS.
Recentemente, um velho amigo meu francês, de passagem por Lisboa, telefonou-me num fim-de-semana a dizer que estava com uma dor no peito havia duas horas e não sabia se havia de esperar por segunda-feira e procurar um cardiologista. Disse-lhe para tomar um táxi o mais depressa possível e ir à urgência do Hospital de Santa Maria ou do Hospital de S. José. Assim fez e telefonou--me uns dias depois a explicar que tinha tido um infarto cardíaco e tinha posto um stent na coronária. E comentou-me na sua língua: “Cinco estrelas! Afinal, o que se passa com os hospitais não é nada do que vem nos jornais.” (Sabe ler português.)
Mais uma vez se me colocou a questão de a quem é que serve o actual debate sobre os serviços públicos de saúde e se aqueles que se situam à esquerda, tal como eu, não poderão, se não tiverem cuidado, estar a lançar achas para a fogueira dos outros. Percebo o dilema da esquerda parlamentar, que, tendo de defender no lugar certo o SNS, na sua identidade, na sua sustentabilidade e no seu futuro, não pode nem deve fazer coro com o ataque produzido pelo PSD e o CDS. Estes partidos, a comunicação social que os acompanha e alguns organismos profissionais que se integram na mesma narrativa não são defensores do SNS e nunca o foram.
O discurso cheio de menções em defesa do SNS é verdadeiramente hipócrita e repousa sobre a falta de memória da população em geral e da imprensa em particular. Quando, em 1979, a Lei 56, a do SNS, chamada “Lei Arnaut”, foi ao Parlamento, foi aprovada com os votos a favor do PS, do PCP, da UDP e do deputado independente Brás Pinto. Votaram contra o PSD, o CDS e os deputados independentes sociais-democratas. A posição contra este modelo de redistribuição de um SNS universal e gratuito a partir do Orçamento Geral do Estado, o qual é baseado em impostos progressivos, foi sempre a da direita. Em 1987, o PSD ganhou maioria absoluta e a sua orientação, liderada por Cavaco Silva e inspirada pela onda neoliberal e os triunfos de Reagan e Tatcher em 1979/80, foi a de combate ao padrão identitário do SNS, tal como o Partido Conservador fez em relação ao National Health Service inglês. Em 1990, já com uma maioria parlamentar, o PSD e o CDS fizeram aprovar uma nova lei de bases para a Saúde, com a porta aberta para os privados expressa em muito do articulado, pois punha os serviços públicos “em articulação com os serviços privados”. A lei do mercado para tudo e também para a Saúde. É este o filão que constitui de facto o nó central da direita parlamentar e daqueles que a seguem na comunicação social e em alguns grupos profissionais. Falarem na defesa do SNS é uma mentira e um teatro. Alguns terão mesmo conflitos de interesses, dada a sua ligação a empresas com fins lucrativos na área. 
Quando a direita voltou a ter maioria parlamentar e governo, coincidindo com a entrada da troika, passou a dizer que o Estado não tinha dinheiro para pagar a saúde, falando como se o SNS fosse uma benesse oferecida à população. A palavra solidariedade passou a paredes meias com a caridade e a expressão “tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos” atenuou o “tendencialmente gratuito”, como se os impostos donde provém o Orçamento já não tivessem esse critério e não fosse esse o espírito da redistribuição. E foi assim que prosperaram as “entidades privadas, sem ou com fins lucrativos”, para “prestar cuidados de saúde”, expresso na lei de 1990. E o Estado encarregou-se e encarrega-se de lhes comprar serviços. Passou a acontecer o boom das grandes empresas privadas de Saúde. Não se trata já de consultórios unipessoais, mas de entidades de negócio que movimentam milhões.
Logo que tomou posse, o Governo ligado à direita parlamentar reduziu o orçamento para a Saúde, que era em 2010 de 8699 milhões e em 2012 estava em 7525 milhões. E a participação das famílias passou ao seu máximo, 28%. Foi o corte na Saúde, em nome das boas contas do défice. No entanto, se olharmos para o caminho do dinheiro, ele desceu no público e subiu para o privado, como se de vasos comunicantes se tratasse. A despesa corrente com os hospitais públicos desceu de cerca de 5508 milhões de euros em 2010 para 4843 em 2015. No mesmo período, a despesa do SNS com os hospitais privados subiu de cerca de 391 milhões de euros para 554. Os custos com meios auxiliares de diagnóstico e terapêuticos (análises, radiologia, endoscopias) pagos através do SNS foram subindo até 2015.
Foi este o legado do Governo da direita: não se trata da redução dos custos em Saúde “porque não havia dinheiro” e “estávamos à beira da bancarrota”, mas sim de uma inversão daqueles a quem se pagava, com o dinheiro do Estado e com o dinheiro do bolso das famílias. Durante esse período de cinco anos de governo, com o agravamento da situação social, houve comprovadamente mais anemias, mais pneumonias de que foi dado o alerta. Em 2011 houve 27% mais chamadas para o INEM relacionadas com comportamentos suicidários. Entre 2011 e 2012 a prescrição de ansiolíticos e de antidepressivos aumentou em todas as idades e foi o dobro neste período de tempo para as pessoas com mais de 65 anos. O registo de sintomas de ansiedade e depressão em todas as idades a partir dos 15 anos passou para o dobro ou para cinco ou quatro vezes mais, conforme as regiões.
O número de funcionários dos vários sectores na Saúde desceu 12%. As horas de trabalho passaram a 40 semanais e, portanto, uma parte das horas extraordinárias deixaram de ser pagas. Houve uma fuga de médicos e enfermeiros para o estrangeiro.
Estes profissionais queixaram-se de burnout em publicações próprias e em sessões públicas. Durante este período, as almas inquietas do PSD e do CDS, que agora clamam pelos riscos de destruição de um SNS que eles afinal não aprovaram, mantiveram-se tranquilas. Podiam não trazer o assunto para o Parlamento, porque isso é a regra do jogo da competição política, mas ao nível individual podiam expressar-se, indignar-se ou pelo menos inquietar-se. Mas não. E foi este o legado que o Governo da “geringonça” recebeu.
E aqui insere-se o dilema que se coloca a todos aqueles que querem defender o SNS. É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita. O Ministério da Saúde ficou demasiado dependente das Finanças; atrasou-se na abertura das unidades de saúde familiar; não teve uma linha coerente para lidar com os profissionais. Sobretudo, não levou a cabo uma resolução aprovada em Maio de 2017 na Assembleia da República que “recomenda ao Governo que poupe no financiamento a privados para investir no Serviço Nacional de Saúde”, “maximizado os recursos existentes”. Passou um ano e nada se viu neste aspecto, pelo contrário. A posição do Governo na discussão da lei de bases que está em curso inquieta.
Entretanto, a campanha em relação ao SNS prossegue. Protestam contra a passagem às 35 horas de trabalho, não porque “o SNS não estava preparado”, há sete anos era assim, mas porque o que querem mesmo é que as pessoas trabalhem mais, está no ADN do poder de direita. E a quem serve a campanha? Seguramente aos privados, pois quem lê tais títulos e notícias fica amedrontado e corre a fazer seguro de saúde e a ser cliente de privados. Mais sinistro ainda: quem é doente da área de oncologia, seja em crianças (felizmente poucas centenas a nível nacional, dispondo de seis instituições de alto nível), seja em adultos, apavorado como é natural em relação a estas patologias, procura em redor uma salvação e vai comprar serviços a privados de custos elevados, não hesitando em endividar a família para o fazer. É a lei do mercado. Ora, quem nessas circunstâncias de doença foi tratado ou curado nos hospitais públicos sabe a gratidão com que ficou aos serviços prestados.
Esta campanha serve pois interesses privados e é mais do que hipócrita, enganadora. Mas os defensores verdadeiros e coerentes do SNS também não podem demitir-se de estar alerta em relação às derivas e às promessas por cumprir.
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política

terça-feira, 24 de julho de 2018

AS TRAPALHADAS PSD VRSA/ALGARVE



José António Cerejo




Vogal do líder do PSD-Algarve contrata-o para empresa municipal que gere
David Santos fatura à Sociedade de Gestão Urbana do município de Vila Real de Santo António, gerida por um companheiro do PSD, através de empresa comprada a offshores quando não tinha actividade nem bens.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO 
23 de Julho de 2018
David Santos VASCO CÉLIO/LUSA
Cinco meses antes de ser contratado como consultor de uma empresa municipal de Vila Real de Santo António, dirigida por um dos seus vogais na distrital do PSD-Algarve, David Santos comprou a imobiliária Tesaba, uma empresa praticamente inactiva, a duas offshores cujos proprietários diz desconhecer. O contrato que regula a prestação de serviços do líder social-democrata e ex-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Algarve à empresa municipal VRSA - Sociedade de Gestão Urbana (SGU) foi adjudicado à Tesaba por ajuste directo, dois dias antes da entrada em vigor de uma lei que proíbe este tipo de contratação.
Foi tudo muito rápido. A 22 de Dezembro do ano passado, pelas 15h56, a VRSA – SGU envia um email a David Santos em que o convida a apresentar uma proposta para prestação de serviços por ajuste directo na área do Urbanismo e Ordenamento do Território. Dia 22 é uma sexta-feira. Segue-se o fim-de-semana e na segunda é dia de Natal. O prazo fixado pela empresa municipal para entrega da proposta é dia 27 até às 16h. É curto. Não chegam a ser dois dias úteis. Mas David Santos não precisa de tanto tempo. A proposta por ele subscrita em nome da Tesaba entrou às 10h07 do dia 27.
Nesse mesmo dia, um técnico da VRSA-SGU analisou-a e redigiu o “projecto de decisão” de adjudicação, bem como a minuta do respectivo contrato. Ainda nesse dia, o “gestor do procedimento” elabora a proposta de adjudicação, dirigindo-a a Pedro Finote Pires, administrador-delegado da empresa municipal. Finalmente, ainda no dia 27, Pedro Pires proferiu o seu despacho de concordância, autorizando a celebração do contrato. 
 Embora o gestor tenha entendido não explicar ao PÚBLICO as razões desta corrida contra o tempo, o calendário regista um facto: dois dias úteis depois, no dia 1 de Janeiro, entrou em vigor uma alteração ao Código dos Contratos Públicos que proíbe a realização de ajustes directos, em casos como este, para contratos de valor superior a 20 mil euros. Nessas situações, o único procedimento autorizado passou a ser a consulta prévia a pelo menos três fornecedores.
A lei, publicada em Agosto do ano passado, previa no entanto, uma ressalva. Aos contratos cujos procedimentos tivessem sido iniciados antes de 31 de Dezembro de 2017 não se aplicava a nova regra, mesmo que eles só fossem assinados depois dessa data. No caso da contratação da Tesaba/David Santos, o procedimento foi formalmente iniciado a 11 de Dezembro, dia em que a Administração da VRSA - SGU aprovou a sua abertura e o contrato foi assinado a 3 de Janeiro, por Pedro Pires e David Santos. O que significa que, se a intenção era escapar à obrigatoriedade de consultar três entidades, não havia motivo para tanta pressa.
Mais fácil de entender parece o facto de o valor da prestação de serviços contratada ser de 74.950 euros. É que a lei então em vigor estabelecia um tecto máximo para os ajustes directos de 75.000 euros. Acima desse valor já era obrigatório o lançamento de um concurso.
Confrontado com a diferença de 50 euros entre o valor do contrato e o máximo então permitido para os ajustes directos, Pedro Pires também não explicou o que levou a empresa municipal, detida a 100% pela Câmara de Vila Real de Santo António, a definir aquele valor como preço-base do procedimento. O administrador-delegado da empresa, além de vice-presidente concelhio do PSD em Vila Real de Santo António, é um dos oito vogais da Comissão Política do PSD Algarve, presidida por David Santos.
Questionado sobre o facto de a Tesaba ter sido a única entidade convidada a apresentar uma proposta de prestação de serviços, ainda que a lei não obrigasse a convidar mais do que uma, respondeu que “foram cumpridos todos os requisitos formais" para o fazer. Por outro lado, acrescentou, “a VRSA - SGU sentiu que não tinha nos seus quadros ninguém que conjugasse conhecimentos científicos sólidos e uma experiência profissional vasta” na gestão de processos urbanísticos e estivesse disponível para responder às necessidades.
“Foi assim que nasceu o interesse na contratação da Tesaba, uma vez que tal entidade, através do seu gerente, eng. David Santos, que, assumindo directamente a prestação de serviços da Tesaba com a VRSA- SGU empresta a este contrato as valias acima identificadas uma vez que, ao nível dos conhecimentos científicos, o eng. David Santos apresenta uma licenciatura em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico e uma pós-graduação em Direito do Urbanismo e Construção pela Faculdade de Direito de Lisboa. Quanto à experiência profissional o referido engenheiro prima por ter sido vereador de Obras da CM de Faro, Presidente da FAGAR (empresa municipal de Faro) e (…) ter sido, ainda, presidente da presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve [CCDRA]”,
Na proposta apresentada pela Tesaba, David Santos salienta a experiência da empresa, designadamente na “execução de projectos, consultadoria a diversas operações urbanísticas quer em entidades públicas quer privadas”, a que acresce o seu currículo pessoal.
Sucede que no currículo da empresa, anexo à proposta, o ex-presidente da CCDRA, que foi demitido em 2016 pelo actual Governo, refere apenas cinco pequenos trabalhos, dois dos quais “em execução”. Ao todo são nove linhas de “currículo resumido", sendo que nenhum deles tem a ver com o sector público. No portal dos contratos públicos, criado em 2008, só consta aliás um contrato em nome da Tesaba: precisamente aquele que foi celebrado com a VRSA - SGU.
Confirmativas da quase nula actividade da sociedade são as contas que ela, como todas as empresas, deposita anualmente no registo comercial. Nos últimos três anos a rubrica de “vendas e serviços prestados” regista sempre 6300 euros e os gastos com pessoal são inexistentes.
“Decisões pessoais”
A Tesaba foi constituída em 2004 e nasceu pela mão de Miguel Caetano de Freitas, um avogado de Oeiras com experiência na criação de offshores, cujo nome apareceu recentemente nos chamados Panama papers. Dos seus proprietários sabe-se apenas, pelo registo comercial, que eram duas sociedades com sede em Gibraltar: a Frognel Holdings e a Hersant Investments. O seu primeiro gerente foi o próprio Caetano de Freitas, que no ano seguinte foi substituído por Élia Apolo, a advogada de Almancil que se manteve em funções até Agosto do ano passado. Nessa altura, a imobiliária, cuja sede era o escritório da advogada-gerente, foi comprada por David Santos e pela mulher, que ficaram com 60% do capital, e por duas cunhadas, que ficaram com 20% cada.
David Santos assumiu a gerência, a sede passou para o seu domicílio, e quatro meses depois foi em nome dessa empresa que a VRSA-SGU o contratou. A decisão de o contratar, segundo o próprio disse a PÚBLICO, foi tomada pela administração da empresa municipal, presidida por inerência pela social-democrata Conceição Cabrita, presidente da câmara local, no dia 11 de Dezembro. Dois dias antes, David Santos havia sido reeleito presidente do PSD Algarve e Pedro Finote Pires, o administrador-delegado que formalizou a sua contratação, havia sido eleito vogal da sua comissão política.
Solicitado a esclarecer o que é que o levou a comprar uma empresa desconhecida, sem actividade e sem activos conhecidos, através da qual foi contratado pela VRSA - SGU, David Santos respondeu: “trataram-se de decisões pessoais.” Sobre a identidade dos vendedores, afirmou: “Não sei quem são. Tratei de tudo com a advogada.”
Sobre a hipótese de se lhe ter colocado algum problema “meramente ético” por ser contratado, nas circunstâncias em que o foi, por uma empresa de capitais públicos dirigida por um dos seus vogais na direcção do PSD-Algarve, respondeu indirectamente: “Recebi um convite da VRSA – SGU, após deliberação do seu conselho de administração (composto por três membros) de 11/12/2017.”
Pedro Pires, por seu turno, disse ao PÚBLICO que “o convite à Tesaba e a sua contratação afigurou-se como totalmente legal, necessário e uma mais-valia técnica cuja adequação às necessidades identificadas a VRSA – SGU não vislumbrou em nenhuma outra entidade”.

Um contrato em que vale tudo

Nenhuma das partes esclareceu qual é o valor mensal a pagar.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO 
23 de Julho de 2018
PEDRO CUNHA
Com um valor de 74.950 euros, o contrato celebrado entre David Santos e a VRSA - SGU é daqueles que podem ser interpretados à vontade do freguês. Lendo o articulado contratual, bem como o caderno de encargos, a proposta de David Santos, o anúncio da celebração do contrato no portal Base e as explicações dadas ao PÚBLICO pela empresa municipal, fica-se quase na mesma. A única coisa que parece clara é que David Santos poderá receber no máximo de 74.950 euros (mais IVA), divididos em prestações mensais. Mas não se sabe ao certo qual é o valor e o número dessas prestações.
No entanto, daquele emaranhado de versões resulta que esse valor e número dependerão exclusivamente da vontade das partes. De acordo com o aministrador-delegado da VRSA–SGU, Pedro Pires, o pagamento terá de ser feito “em prestações mensais”, pelo que não poderá ser feito “de uma só vez”, e o total a pagar poderá ser inferior ao valor do contrato. O resto são contradições entre os diferentes documentos e explicações.
No anúncio do portal Base lê-se que o “prazo de execução” do serviço será de “365 dias”, o que faz supor que cada prestação mensal atingirá os 6245 euros. Já no texto contratual, também publicado, consta que o “montante total" a pagar será de “74.950, dividido em prestações mensais" e que “o contrato mantém-se em vigor pelo período de um ano, prorrogável por igual período até um máximo de duas prorrogações anuais (…) ou até que seja esgotado o valor contratual (…)”
Mas as dúvidas adensam-se, se atentarmos na proposta apresentada por David Santos e aceite pela VRSA-SGU. "(...) A nossa proposta será de 3000 euros mensais, acrescido de IVA à taxa legal em vigor (pelo período de 24 meses) a que acrescerão as despesas e alojamento (...) até ao valor total de 74.950 euros", lê-se no documento.
 E se formos ao caderno de encargos que serviu de base à contratação, e faz parte do contrato, lemos que 74.950 euros é o "valor correspondente ao prazo máximo do contrato, já incluindo as renovações previstas”, valor esse que "é dividido em prestações mensais até ao prazo máximo do contrato". Sendo esse prazo de três anos poderá concluir-se que a prestação mensal (independentemente das despesas apresentadas) será de 2082 euros.
Sobre todas estas incongruências, Pedro Pires alegou que o prazo de 365 dias inscrito no portal Base é um “mero lapso dos serviços que será corrigido assim que possível” e que “nos primeiros meses da prestação de serviços” foi pago a David Santos “um valor coincidente com a proposta apresentada e adjudicada", ou seja, 3000 euros mais IVA e despesas. Contudo, acrescenta Pedro Pires, “nos últimos meses o volume de trabalho do prestador de serviços diminuiu, tendo as partes acordado baixar o valor da prestação mensal, em função do volume de trabalho”.
 A estas explicações da empresa municipal, David Santos acrescentou um outro dado: “O valor da prestação mensal não pode ser superior ao valor mensal constante do contrato.” O que nenhuma das partes esclareceu foi qual é, afinal, esse valor.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

A GUERRA COLONIAL




NOTA: Para quem viveu a repressão violenta e criminosa do fascismo e a Guerra Colonial na pele, ao assistir agora em VRSA ao branqueamento quer de fascistas quer da guerra em actos e palavras não pode deixar de ficar indignado e preocupado com o conteúdo moral e político de certas figuras públicas.
Públicas só pelas circunstâncias e cargos que ocupam. Este artigo publicado hoje pelo Capitão de Abril Vasco Lourenço não podia vir mais a propósito.
MC





A Guerra Colonial ainda não acabou?
A promoção de Marcelino da Mata, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril.
19 de Julho de 2018   Vasco Lourenço
A História das Nações e o posicionamento dos respectivos povos, perante os diversos acontecimentos do seu percurso colectivo, tem relações que nem sempre são consensuais, acontecendo muitas vezes que o entendimento dos factos é mais fruto das circunstâncias de quando é formulado do que propriamente resultado de um “sentir a Pátria”.
Não são poucas as situações em que o entendimento de acções praticadas varia consoante as épocas e as modas prevalecentes. Nem sempre o “politicamente correcto” é entendido da mesma maneira, havendo mesmo situações onde o que ontem foi incensado hoje é proscrito. E vice-versa, como é natural. Aliás, sabe-se bem que o herói de hoje pode ser o traidor de amanhã, como o inverso também acontece.
Nestes dias assistimos à enorme polémica sobre a questão dos Descobrimentos e da Escravatura (com o respectivo tráfico de escravos).
As conjunturas levam-nos a denegrir o que outrora foi incensado, só porque pode parecer mais “in”, pode dar-nos mais votos, especialmente dos que votam mais influenciados pelo populismo, pelas modas de ocasião, do que pelo discernimento e compreensão.
Não vou aqui tratar deste tema – não é que o mesmo me não interesse e sobre ele não tenha posição –, mas irei tratar especificamente a questão da Guerra Colonial, de que Portugal foi um dos principais protagonistas, durante 13 anos (entre 1961 e 1974).
Durante esses anos, longos anos, os portugueses lutaram, mataram e morreram em três “teatros de operações”, em Angola, na Guiné e em Moçambique.
Aí se envolveram um milhão de portugueses, oriundos de todo o então território nacional, aí morreram mais de dez mil “soldados e marinheiros”, daí regressaram várias dezenas de milhares de deficientes (mentais e físicos), aí se viveram enormes dramas, mas também algumas alegrias, fruto das derrotas e das vitórias parciais que se obtiveram. Aí se constituíram autênticos heróis, habilmente explorados pelo regime fascista-colonialista, mas aí se cometeram igualmente autênticos crimes de guerra.
É da natureza da guerra, não gosto de condenar os que cometeram exageros, pois costumo afirmar que o exagero está na própria existência da guerra, não dos que, fruto das circunstâncias, os cometem.
Estou à vontade, pois fiz a guerra na Guiné, vivi momentos bem difíceis e até dramáticos, mas tive a sorte de não me envolver em nenhuma acção de que mais tarde me viesse a envergonhar.
Há que clarificar, contudo, que distingo bem os exageros que a própria dinâmica da guerra provoca e os exageros que nenhuma guerra deveria provocar.
Partindo do princípio de que os objectivos não podem justificar todos os meios – nem mesmo nas guerras –, esses exageros só acontecem devido ao mau carácter dos seus autores. A sua má formação ética e moral não resiste ao ambiente da guerra e faz surgir os seus instintos assassinos...
Foi pelo facto de nessa altura os crimes de guerra não serem tão condenados como posteriormente o vieram a ser, que muitos dos actos praticados na Guerra Colonial aqui tratada viriam a ser escondidos através de condecorações por bravura e heroicidade.
Tivemos, é certo, os massacres de Wiriamu em Moçambique, que criaram fortes engulhos ao regime de Salazar/Caetano, mas a censura, por um lado, e os tempos de então, por outro, mantiveram os crimes cometidos num quase anonimato total.
Como teria sido, por exemplo, se o ataque a Conacri se verificasse hoje, com a prática de crimes que os portugueses invasores perpetraram na capital da Guiné-Conacri? A que condenações públicas internacionais assistiríamos, suportadas em enormes campanhas “publicitárias”!
O 25 de Abril de 1974 veio permitir a resolução do problema colonial, adaptando-se a posição portuguesa ao comum entendimento internacional, levando Portugal a reconhecer o direito de todos os povos à autodeterminação e independência.
Isso permitiu o acordo de cessar-fogo, o fim das hostilidades, o reconhecimento do nascimento de novos países e a transmissão do poder, de forma pacífica, para os responsáveis desses novos países de língua portuguesa. Portugal dignificou-se no seio da comunidade internacional, a guerra foi esconjurada, considerada ilegítima e maldita. E os heróis de ontem passaram a estar na sombra, procurando todos esquecer...
O sentimento de que os combatentes haviam cumprido o dever que o seu país, através do que os que detinham o poder (mesmo que ilegítimo e contestado) lhe impunham – naturalmente, “apoiado”, pelo facto dos autores da libertação (os Capitães de Abril) também terem feito a guerra, também serem combatentes –, permitiu uma transição pacífica da ditadura para a democracia e colocou entre parêntesis o próprio fenómeno da guerra.
E assim temos vivido, com a inserção dos combatentes, nomeadamente dos deficientes, na sociedade. Apesar de, de vez em quando, os saudosos da “outra senhora” deitarem as garras de fora, tentando instrumentalizar os combatentes para atitudes menos pacíficas.
O facto é que a sociedade portuguesa democratizou-se, adaptou-se às novas regras e a convivência entre todos tem sido um facto.
Por isso, não posso aceitar, e contesto veementemente, as sucessivas tentativas saudosistas do passado, dos ressabiados pela construção da democracia, dos que não aceitam a liberdade de todos e a igualdade de direitos dos antigos colonizadores e antigos colonizados, em trazerem à luz do dia fenómenos de todo em todo desactualizados, inoportunos e inaceitáveis.
Temos assistido a condecorações, passados mais de 40 anos, por actos que, em termos de guerra absoluta, até merecerão ser reconhecidos, mas que – hoje, passados todos estes anos – deveriam enterrar-se de vez. Continua, de facto, a haver quem não queira esquecer, nem permitir que os outros esqueçam, a Guerra Colonial.
Não vou desenterrar outros lamentáveis episódios de promoções e condecorações a que já assistimos. Venho é manifestar-me totalmente contrário, aqui acentuando o meu profundo protesto, contra a hipotética promoção, por distinção, do militar Marcelino da Mata – oriundo da Guiné-Bissau, com nacionalidade portuguesa, já promovido por distinção a capitão, graduado em tenente-coronel – a major.
Porquê?, pergunto. Para o graduarem em coronel ou, quem sabe, general? Para quê?
Porque acredito nos princípios de quem fez a proposta, creio que o senhor general Chefe de Estado-Maior do Exército não sabe dos crimes de guerra que o então sargento Marcelino da Mata praticou na Guiné, com especial relevo no referido ataque a Conacri (e não só, como afirmo na página 44 do meu livro Do Interior da Revolução).
Não quero acreditar, como não acredito, que os diversos responsáveis – ministro da Defesa Nacional, primeiro-ministro, Presidente da República – aprovem a decisão de o promover, se souberem bem o que aconteceu.
Como então, quando foram cometidos esses crimes de guerra (resultado da acção de autênticos assassinos) envergonharam muitos dos militares que deles tomaram conhecimento, esta promoção, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril!
Por mim, para além de estar disponível para quaisquer esclarecimentos, faço sinceros votos para que se não façam mais quaisquer tentativas para justificar e legitimar uma guerra que, por mais anos que passem, se mostra cada vez mais inútil, ilegítima e injustificável.
Como, aliás, acontece com todas as guerras...!