quinta-feira, 30 de junho de 2016

BREXIT OUTRO OLHAR


"Brexit" e a culpa europeia

"Brexit" e a culpa europeia

Por André Barrinha

30/06/2016 -

É também por culpa de Bruxelas e de Berlim que o Reino Unido caminha para a saída da União Europeia. 

Entre o caos nos mercados financeiros, a possível independência da Escócia e as rebeliões que se avizinham nos dois principais partidos políticos britânicos, pouco se tem falado das razões externas que levaram ao desenlace de quinta-feira. Em particular, pouco se tem falado da culpa de Berlim e de Bruxelas em todo este processo.

A verdade é que muitas das razões que levaram os britânicos a votar out têm a sua origem nas desastrosas medidas adotadas pela União Europeia, em larga medida por pressão da Alemanha, para lidar com a crise financeira que tem vindo a afetar a Europa (sobretudo do Sul) desde 2010. Apesar de os britânicos nunca terem feito parte da zona euro, direta e indiretamente esta questão afetou profundamente o debate sobre o referendo, tendo dado munições ao movimento Leave e retirado argumentos aos que estavam a favor da manutenção do Reino Unido na União Europeia em cinco áreas fundamentais.

Imigração. Nos últimos anos, centenas de milhares de italianos, espanhóis, gregos, portugueses, irlandeses e cipriotas imigraram para o Reino Unido à procura de emprego e de uma vida melhor. Este movimento migratório deu uma visibilidade significativa aos fracassos do projeto europeu e reforçou o argumento do descontrolo dos fluxos migratórios para o Reino Unido. Para muitos britânicos, a União Europeia não só era incapaz de resolver os problemas da zona euro como se recusava a inserir qualquer mecanismo que prevenisse a chegada ilimitada de imigrantes europeus ao Reino Unido.

Democracia. Os britânicos sempre foram críticos da falta de legitimidade democrática da União Europeia. Nesse contexto, casos como a demissão forçada de Silvio Berlusconi em Itália ou a crise política grega e as consequentes chantagens feitas ao Governo grego do Syriza, juntamente com as reuniões à porta fechada do Eurogrupo, só "confirmaram" aquilo que os britânicos suspeitavam relativamente à União Europeia: que se tratava de uma entidade não democrática em larga escala ao serviço dos interesses da Alemanha.

Austeridade. Muitos dos problemas identificados por aqueles que pretendiam a saída do Reino Unido da União Europeia estavam ligados às políticas de austeridade dos governos de David Cameron, que contribuíram para prolongar a recessão económica no país para lá do necessário, cortaram subsídios fundamentais a milhões de pessoas (já de si no limiar da pobreza) e reduziram os custos com os serviços públicos da educação aos serviços locais. A austeridade brutal a que o Reino Unido tem sido sujeito contribuiu para a efetiva descida do nível de vida daqueles que já estavam numa situação frágil. A recuperação económica a que o país tem assistido nos últimos anos atenuou alguns desses impactos, nomeadamente em termos de desemprego, mas não a um nível necessário para colmatar a destruição provocada pelos cortes. Indiretamente, a União Europeia ajudou à consolidação desta agenda de austeridade, não só porque defendeu a mesma receita para os países da zona euro como providenciou ao partido conservador britânico um dos seus principais trunfos de campanha, tanto em 2010 como em 2015: a infindável crise grega. Esta posição dificultou, de forma significativa, a tarefa daqueles que queriam oferecer uma visão progressista do projeto europeu.

Conhecimento. Este foi, em boa medida, um debate marcado por um certo anti-intelectualismo. O atual ministro da Justiça e um dos líderes do movimento Leave, Michael Gove, chegou mesmo a dizer que o público estava farto de peritos. Isto num contexto em que a esmagadora maioria das instituições internacionais, economistas e líderes políticos fora e dentro do país chamavam a atenção para os enormes riscos económicos e financeiros de um "Brexit". Um dos argumentos mais frequentes em resposta aos avisos constantes de uma potencial recessão económica era o de que estes tinham sido os mesmos peritos que nos anos 1990 tinham defendido a entrada do Reino Unido para a zona euro (e, como tal, não havia razão nenhuma para ouvir os seus argumentos). Os sucessivos fracassos da zona euro ajudaram desta forma a reforçar o argumento de que os peritos não são de confiança.

Seria certamente injusto e analiticamente pouco sério reduzir a saída do Reino Unido à crise da zona euro. Outras causas, internas, contribuíram igualmente para isso (disputas internas do partido conservador, falta de rigor e seriedade por parte dos media, ignorância generalizada sobre o que é a União Europeia, nacionalismo). Mas, fundamentalmente, a União Europeia, na forma como lidou e tem lidado com a crise do euro, passou uma imagem negativa e sem visão de futuro, mais preocupada em punir os estados "não cumpridores" do que em oferecer um projeto de futuro.

É hoje consensual que David Cameron acabou por se revelar um primeiro-ministro desastroso para o seu próprio país, sempre mais preocupado com a sua própria sobrevivência política do que com o interesse nacional e muito menos europeu. O seu posicionamento relativamente à União Europeia foi sempre problemático (tal como o do líder da oposição, Jeremy Corbyn) e a sua campanha pela manutenção do Reino Unido pouco convincente. Mas não menos convincente tem sido a gestão da crise do euro por parte da União Europeia, alicerçada numa liderança alemã economicamente dogmática e politicamente sem rumo. É também por culpa de Bruxelas e de Berlim que o Reino Unido caminha para a saída da União Europeia.

Professor de Relações Internacionais na Universidade de Canterbury Christ Church (Reino Unido) e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra


quarta-feira, 22 de junho de 2016


O referendo britânico teve o mérito de abrir em toda a UE um debate sobre o seu futuro. Nada ficará igual quer a GB fique ou saia. Colocamos aqui várias opiniões sobre o assunto que ajudam a perceber melhor a importância do que está em jogo.


 “Brexit” e imigração

Por Francisco Bethencourt

21/06/2016

Será que o ressentimento da exclusão, aliado ao complexo político da perda de identidade, se vai sobrepor, no caso britânico, aos ganhos económicos trazidos pela imigração e pela integração europeia?

A campanha de saída do Reino Unido da União Europeia só ganhou ascendência quando colocou o problema da imigração no centro do debate. Até aí tinha perdido o argumento económico e até o argumento político, excepto no que diz respeito à recuperação da soberania, ligada ao controlo das fronteiras.

A livre circulação de cidadãos europeus é considerada pelos defensores do “Brexit” como uma violação da soberania britânica. Para eles, o “excesso de imigrantes” significa um peso incomportável para as estruturas do Estado, sobretudo hospitais, escolas e habitação social. As franjas mais radicais demonizam os imigrantes, acusados de viverem de benefícios sociais, aumentarem a criminalidade e favorecerem a prostituição. Estas acusações não são confirmadas pelas estatísticas oficiais. A noção de "pureza da raça", de memória infame, é o fantasma que assombra  o “Brexit”.

Os extremistas têm recorrido ao arsenal habitual de argumentos xenófobos que têm vindo a ganhar adeptos na Europa nos últimos anos. O recurso sistemático a imagens anti-imigrantes tem provocado repulsa, dada a mensagem racista subliminar. O assassinato de Jo Cox, jovem deputada parlamentar de enorme prestígio, uma das estrelas do Partido Trabalhista em campanha pela permanência na UE, foi perpetrado por um desqualificado social com ligações neonazis que a baleou e esfaqueou aos gritos “Britain First!”. A atmosfera de ódio que tem vindo a ser criada certamente contribuiu para este acto miserável, ao qual a misoginia não é alheia.  

A noção de soberania nacional tem sido historicamente manipulada pela extrema-direita para violar os mais elementares princípios democráticos e humanitários. Esta noção está ligada à identidade nacional, factor de conforto e orgulho das populações que não deve ser subestimado. O referendo britânico fornece uma boa oportunidade para avaliar como reagem as populações às mudanças de um mundo cada vez mais interligado, com diminuída capacidade dos governos nacionais e vastos movimentos de populações.

A população branca, inglesa, de camadas baixas e média-baixas, com reduzida educação e fracos rendimentos, vivendo fora dos centros urbanos mais dinâmicos, constitui o esteio do “Brexit”, embora as camadas médias e altas sejam igualmente atraídas, sobretudo aqueles com mais de 60 anos. A permanência na União Europeia é favorecida pela vasta maioria dos escoceses, a maioria dos galeses, parte dos irlandeses do Norte, camadas mais jovens cosmopolitas inglesas, populações mistas e de origem não inglesa. A população residente em Inglaterra representa 84% da população do Reino Unido. A população branca constitui 87% da população total do Reino Unido. A divisão política entre os conservadores e os trabalhistas está esbatida, embora o princípio internacionalista de solidariedade da classe trabalhadora do Labour ainda tenha alguma influência.

Os dados sobre a imigração no Reino Unido devem ser relacionados com a emigração. Estas duas realidades não estavam distantes uma da outra até ao início dos anos 90, quando cerca de 300 mil emigrantes britânicos equivaliam a cerca de 300 mil imigrantes. A partir do final dos anos 90, a divergência entre saídas e entradas aumentou exponencialmente, particularmente a partir de 2004, com o alargamento da UE aos países de Leste. Enquanto as saídas sofreram um ligeiro aumento que não ultrapassou os 400 mil anuais, excepto no ano de 2008, as entradas subiram para 600 mil, tendo ultrapassado esta marca nos últimos dois anos.

As últimas estimativas do Office for National Statistics para o ano de 2014 mostram 5,4 milhões de imigrantes numa população de 64,3 milhões (8,4% do total). Desses imigrantes, 3 milhões vieram da UE e 2,4 milhões do resto do mundo. No topo da lista dos países de origem dos imigrantes encontra-se a Polónia, com 853 mil, distante da Índia (365 mil), Irlanda (331 mil), Paquistão (210 mil), Roménia e Portugal (175 mil cada). A população de origem asiática com cidadania britânica não está incluída nestas estimativas. Os imigrantes estão relativamente bem distribuídos por várias regiões do Reino Unido, não se trata só de Londres.           

À luz destes dados, não parece que o sentimento anti-imigrante tenha uma origem religiosa decisiva. A islamofobia existe e está bem identificada, tal como a judeofobia, mas o aumento em flecha da imigração de origem europeia (e cristã) parece estar a ter um papel mais importante, com o seu trabalho qualificado, aliás partilhado por asiáticos. O ressentimento das camadas baixas brancas inglesas, excluídas do processo de globalização, é complementado pela angústia das camadas médias e altas brancas inglesas face ao aumento da precariedade do trabalho. Essa angústia é expressa através da ideia de perda da identidade colectiva, à qual está subjacente a perda da antiga superioridade imperial. Todas estas camadas estão expostas à competição dos imigrantes. O elemento de classe tem algum peso na orientação da população face ao referendo, enquanto a origem nacional e étnica (ou racial) assume um papel importante. Daí a difícil posição do Partido Trabalhista e a divisão do Partido Conservador.

Os imigrantes não só têm contribuído para a boa prestação inglesa no quadro do (fraco) crescimento europeu, como concorrem fortemente para as finanças do Estado: pagam muito mais impostos do que recebem de benefícios sociais. Contrariamente à campanha de rejeição a que são submetidos pela imprensa populista, recebem menos benefícios sociais do que a população britânica, em termos absolutos e relativos.  

Por outro lado, temos os dois milhões de cidadãos britânicos que vivem noutros países europeus. Na maior parte dos casos trata-se de reformados que não concorrem de forma produtiva para o desenvolvimento económico, mas contribuem para o reforço do consumo e da procura. Beneficiam naturalmente do acesso a hospitais e a escolas, no caso de terem crianças a seu cargo. Influenciam os preços, nomeadamente de casas, em zonas periféricas.

Este perfil dos emigrantes britânicos tem pontos de contacto com o perfil dos imigrantes no Reino Unido, que também desempenham um papel no desenvolvimento da procura, embora não tenham, por enquanto, a mesma necessidade de cuidados de saúde, dada a média etária. A diferença resulta de se tratar, no caso dos imigrantes, de mão-de-obra qualificada a vários níveis que participa no mercado de trabalho, com impacto no sistema escolar e na habitação social. Mas a qualificação dos imigrantes beneficia as estruturas hospitalares, dado o défice britânico na formação de médicos e enfermeiras. Mais, os imigrantes rejuvenescem a população residente no Reino Unido, enquanto o seu trabalho contribui para sustentar as pensões de reforma numa população com tendência para envelhecer, dada a redução da natalidade.

Chegamos assim ao nó central deste problema da imigração, particularmente sensível num país como Portugal, simultaneamente receptor e emissor de migrantes, conhecedor da enorme energia por eles investida. Será que o ressentimento da exclusão aliado ao complexo político da perda de identidade se vai sobrepor, no caso britânico, aos ganhos económicos trazidos pela imigração e pela integração europeia?

O problema é simultaneamente económico, ético e político. As vantagens da integração europeia são inegáveis, embora seja urgente a reforma profunda da União Europeia em processo de ancilosamento. Difícil é o problema do Estado num mundo globalizado, onde a capacidade de decisão é limitada e os recursos reduzidos face à complexidade crescente de funções e à tradição de submissão aos interesses das elites. Complicado é o problema das migrações, dependente de condições dos países emissores e dos países receptores, os factores push and pull decisivos para compreender os movimentos de populações.

Finalmente, como definir cidadania nos dias de hoje, com migrações maciças? É certo que ao fim de um certo período de tempo os imigrantes que decidem ficar adquirem a cidadania britânica, o que questiona a velha ideia de nação como comunidade colectiva supostamente autóctone, partilhando os mesmos valores e os mesmos direitos num determinado território. Do ponto de vista histórico, o caso britânico é dos mais abertos, com sucessivas migrações (e conquistas) de romanos, saxões, viquingues, normandos, huguenotes, holandeses, refugiados da Segunda Guerra Mundial, asiáticos, caraíbas e africanos do velho império, e cidadãos da UE que contradizem a ideia de autoctonia.

A identidade nacional, exposta, ou melhor, macerada por todas estas tensões entre o passado e o futuro, entre a memória e a recomposição étnica, vive um período de transição em carne viva expresso pelos antagonismos canalizados pelo referendo britânico. A identidade nacional resulta de um processo permanente de reprodução, acomodação e mudança, imposto por sangue novo e emoções novas, já expressas nas celebrações colectivas em torno do desporto, onde equipas nacionais exibem uma variedade de características físicas, incluindo cores da pele, aberta à noção de humanidade. É da aproximação entre estas duas noções fundamentais de identidade nacional e humanidade que depende o nosso futuro, bem como de uma melhor distribuição do rendimento.

Professor, Charles Boxer e King's College London

"Brexit" e egoísmo nacional
"Brexit" e egoísmo nacional
Por Paulo Pisco
21/06/2016 -
A União Europeia é demasiado importante para o mundo para estar nas mãos de apenas um Estado-membro.
Quando David Cameron anunciou em 23 de janeiro de 2013 um referendo à permanência do seu país na União Europeia, numa cedência ao populismo e ao egoísmo, certamente que nessa altura não tinha a noção de estar a soltar um monstro que agora ameaça causar elevados danos tanto ao Reino Unido como à União Europeia. E, como é óbvio, esta situação está a causar uma imensa inquietação na Europa e fora dela.
É verdade que os britânicos sempre olharam para a União Europeia com frieza e desconfiança. Mas o recurso ao referendo que se realizará no próximo dia 23 de junho foi essencialmente uma tentativa de sobrevivência política para responder ao enorme euroceticismo britânico nos partidos e na sociedade, acentuado pela aplicação das mais duras medidas de austeridade desde a II Guerra Mundial.
Como não podia deixar de ser, o populismo patente no discurso de janeiro gerou múltiplas reações de irritação. Houve quem dissesse que Cameron estava a brincar com o fogo e até quem afirmasse sem rodeios que o melhor era mesmo os britânicos deixarem a União Europeia, como fez o antigo primeiro-ministro francês Michel Rocard, num artigo contundente com o título “Amis anglais, sortez de l’union européenne, mais ne la faites pas mourir!”. Com a tensão e o dramatismo que tem existido na campanha e também com o assassinato insano da deputada trabalhista Jo Cox, comprova-se que, de facto, Cameron tomou uma decisão de alto risco.
A verdade é que, perante a chantagem de David Cameron, a União Europeia cedeu nas negociações, consentindo ficar mais frágil nos valores e princípios que fazem parte da sua identidade, particularmente aceitando a desvinculação do compromisso coletivo de trabalhar para “uma União mais estreita entre os Estados-membros” e ao aumentar para os cidadãos comunitários as dificuldades de acesso aos direitos sociais e às autorizações de residência. Questões que têm gerado inquietação entre a vasta comunidade portuguesa a residir no Reino Unido, que está preocupada com os eventuais resultados negativos do referendo.
Aquilo que Cameron fez foi sugar mais um bocadinho da alma ao projeto europeu, acentuando a sua dimensão de espaço liberal em que as empresas e os capitais têm sempre mais liberdade e as pessoas veem diminuídas a sua mobilidade e direitos sociais. O Reino Unido poderá ter ficado melhor, mas a União Europeia ficou mais frágil e vulnerável e soma mais uma angústia às muitas que já tem.
A verdade é que o Reino Unido, sem deixar de aproveitar sempre o melhor que a União tem para dar, tem sido um travão ao aprofundamento do projeto europeu, como é evidente pela sua opção de ficar fora de todas as políticas que moldam a identidade comunitária, da moeda única a Schengen, das políticas sociais à Carta dos Direitos Fundamentais.
Por outras palavras, o Reino Unido, o criador dos “opting outs”, está fora de todas as políticas comunitárias, mas condiciona permanentemente o processo de construção europeia, como infelizmente mais uma vez voltou a acontecer, com as infelizes concessões feitas pela União Europeia para consumo interno britânico.
Cameron pode agora defender desesperadamente a permanência na UE, até porque o pior que lhe poderá acontecer é ficar na História como o Primeiro-Ministro que tirou o seu país da União Europeia, acelerando assim também o processo de desintegração do Reino Unido. E também, seja qual for o resultado, não se livrará de ser visto como o que mais contribuiu para enfraquecer o projeto comunitário e alimentar o antieuropeísmo em muitos países, entre os quais em alguns membros fundadores, como é o caso da França e da Holanda, seguramente as situações mais preocupantes.
O Reino Unido precisa da Europa e a Europa precisa do Reino Unido. O mundo ficará mais equilibrado sem este bónus aos populismos e aos nacionalismos, que a médio prazo podem trazer consequências desastrosas e até mesmo dramáticas para todos.
Mas a Europa também não pode ficar refém do antieuropeísmo dos britânicos. É seu dever defender a identidade do projeto europeu, baseado nos valores humanistas, numa Europa sem fronteiras e na cidadania, nos direitos sociais e em mais igualdade, em mais democracia, transparência e solidariedade. A União Europeia é uma espécie de utopia tornada realidade, é um projeto demasiado importante para o mundo para estar nas mãos de apenas um Estado-membro…
Deputado do PS
 
A União Europeia transformou a Europa num bordel
21/06/2016
A saída do Reino Unido pode ser o toque a rebate democrático de que a UE precisa.
Era um dia de Primavera de 1995. Atravessei de carro a ponte sobre o rio Minho, ao pé de Valença, em direcção à cidade galega de Tuy, e não aconteceu absolutamente nada. Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida.
Eu estava habituado a entrar em Espanha depois de parar na fronteira, esperar numa bicha interminável de carros e camiões, mostrar o passaporte, responder a perguntas dos guardas e deixar o carro ser revistado antes de poder seguir caminho. E a travessia desta fronteira despertava sempre recordações de antes do 25 de Abril, onde a espera era ainda mais demorada, as perguntas mais agressivas, os polícias mais desagradáveis e as revistas mais rigorosas, principalmente para os jovens que tinham de apresentar os seus documentos militares em ordem e podiam estar a preparar-se para fugir à guerra colonial.
Foi por isso que atravessar a ponte e entrar em Espanha sem ver um único polícia, sem ver um posto de fronteira, sem mostrar um documento, foi uma experiência inesquecível.
Na altura eu era ainda um ingénuo adepto da União Europeia e aquilo era para mim a Europa. Não só a liberdade de circulação, mas a corporização da própria liberdade dos cidadãos, da confiança na sociedade, da cooperação e da solidariedade entre os estados.
Eu era então, como me considero ainda hoje, um europeu e um europeísta. Nascido entre dois países e duas línguas, educado entre quatro línguas, habituado a desconfiar de todos os nacionalismos, a ideia de uma Europa que transcende os seus países sempre me foi cara.
É por isso que, na próxima quinta-feira, quando conhecermos os resultados do referendo no Reino Unido, eu espero ardentemente que o resultado seja a vitória do “Brexit”.
Não porque penso que o Reino Unido vá ficar melhor fora da UE. Não porque pense que a UE vai ficar melhor sem o Reino Unido. Mas apenas porque espero que a saída do Reino Unido seja o choque que irá provocar o abalo político, o exame de consciência e o toque a rebate democrático de que a União Europeia precisa para se reformar de forma radical e para se reconstruir, num formato e com regras diferentes, sob o signo da decência. E não penso que isso seja possível sem uma vitória do “Brexit”.
O presidente do Parlamento Europeu, o socialista Martin Schulz, já disse: “Seja qual for o resultado [do referendo], teremos necessidade de uma reforma integral da União Europeia com regras claras.” Mas o problema é que já ouvimos dizer a mesma coisa noutras circunstâncias para tudo ficar na mesma. Ouvimo-lo dizer depois da guerra do Iraque, da crise financeira de 2008, da crise das dívidas soberanas, das políticas de austeridade, da crise dos refugiados. Mas sabemos que não podemos acreditar em nada do que sai da boca dos dirigentes da UE.
A questão é que a UE não é aquela associação entre iguais que nos venderam, empenhada no progresso de todos os países e no bem-estar de todos os cidadãos, no pleno emprego e na segurança dos trabalhadores, na paz mundial e na promoção da democracia.
A questão é que a UE é apenas uma máscara que disfarça o domínio de um grande grupo de países por um pequeno grupo de países, numa nova forma de ocupação que usa a finança como instrumento de submissão, como antes se usavam tanques.
A questão é que a UE é uma organização antidemocrática, que não só é governada por dirigentes não eleitos e não removíveis, da Comissão Europeia ao Banco Central Europeu, como construiu ardilosamente uma camisa de forças jurídica, sob a forma de tratados irreformáveis de facto, através da qual manieta e subjuga os Estados-membros e lhes impõe políticas que estes não escolheram, mas não podem recusar.
A questão é que a UE e as suas instituições se transformaram na tropa de choque do poder financeiro mundial e da ideologia neoliberal e, apesar das suas juras democráticas, impõem a agenda asfixiante da austeridade e proíbem de facto os países de prosseguir políticas nacionais progressistas mesmo quando elas são a escolha democrática dos seus povos.
A questão é que a UE, autoproclamado clube das democracias e dos direitos humanos, acolhe no seu seio sem um piscar de olhos países que desrespeitam os direitos mais básicos e adopta no plano internacional a Realpolitik de se submeter aos mais fortes, obedecer aos mais ricos e fechar os olhos aos desmandos dos mais agressivos.
A questão é que a UE perdeu o direito de reivindicar qualquer superioridade moral quando continuou a atirar refugiados para a morte mesmo depois de ter chorado lágrimas de crocodilo sobre a fotografia de uma criança afogada no Mediterrâneo. Hoje, tenho vergonha de pertencer a este clube e não gosto desse sentimento. Será isto isolacionismo? Pelo contrário. O que eu e muitos cidadãos europeus exigimos é a solidariedade entre países que a União se recusa a praticar.
Há pessoas pouco recomendáveis do lado do “Brexit”? Há. Mas do outro lado também. E na UE não faltam pessoas pouco recomendáveis, a começar pelo senhor Jean-Claude Juncker, símbolo da evasão fiscal e da imoralidade política.
A questão é que a União Europeia não é a Europa dos valores que sonhámos. A UE capturou essa Europa e transformou-a num bordel. O sonho transformou-se num pesadelo.
A questão é que a União Europeia se tornou o ninho da serpente e deve ser desmontada peça por peça. Espero que o referendo britânico possa ser o primeiro passo.


Este é um debate sobre a globalização. Os que ganharam com ela querem ficar"
21/06/2016
Damian Chalmers diz que a campanha para o referendo expôs fracturas criadas pela globalização. O professor de direito europeu avisa que se o "Brexit" vencer o país “fica numa posição negocial muito fraca”.
Professor da London School of Economics e investigador do think-tank The UK in a Changing Europe, Damian Chalmers explica que, contra todas as previsões, a imigração se sobrepôs à economia como o tema que vai decidir o resultado do referendo. Caso os eleitores votem pela saída, prevê que as negociações se arrastem durante anos, mas diz que Londres não pode esperar tanto tempo por um entendimento que lhe permita restringir a liberdade de circulação.
A União Europeia é uma instituição complexa. A campanha voltou a mostrar que é difícil explicá-la aos eleitores e que o debate emocional relegou para segundo plano os argumentos racionais…
Sim, mas esse é um argumento que pode ser usado contra todas as eleições. A UE produz entre um quarto a um terço de tudo o que nos rege e a cada quatro ou cinco anos decidimos sobre quem gere os restantes três quartos. O nível do debate político nesta campanha é o pior a que já assisti, por vezes chega a ser escandaloso, tanto de uma parte como da outra. Mas em termos mais gerais, gerou um debate muito mais enérgico sobre a UE – temos pessoas a discutir a UE em todos os locais e, nos quatro a cinco meses que este debate já leva, as pessoas ficaram muito mais informadas. Mas não creio que as pessoas estejam a debater esta ou aquela lei.
O que fica claro, à medida que nos aproximamos do referendo, é que este é um debate sobre a globalização. Tão simples quanto isso. Os que ganharam com ela querem ficar, os que estão a perder querem sair. Basta olhar para as sondagens: se você tiver mais de 55 anos quer claramente sair; se tiver menos de 40 quer ficar. Se tem um diploma universitário quer ficar, se só tem o ensino básico defende a saída. Para os mais velhos, que perderam o trabalho aos 50 anos e ainda não chegaram à idade da reforma, não é fácil sair e procurar emprego noutro país. Eles vêem as comunidades onde vivem a mudar e não só por causa da imigração. Os jovens que estão mais vulneráveis à globalização, os trabalhadores que não têm aumento de salário há dez ou 15 anos, são essas as pessoas que vão votar a favor da saída. Já em Londres, uma cidade cheia de gente nova, com estudos universitários, é claramente a região mais pró-europeia do país, com 80% das pessoas favoráveis à permanência. É uma clivagem que divide o país ao meio e esse debate vai continuar, quer fiquemos quer saiamos.
Uma questão que era inicialmente muito importante para os partidários da saída prendia-se com a necessidade de restaurar a soberania do Parlamento. Qual é a origem deste debate e por que é que é tão importante?
A questão arrasta-se praticamente desde a adesão à CEE. No Reino Unido não temos uma Constituição escrita como em Portugal e para os britânicos o Parlamento ocupa esse lugar. Para muitas pessoas sempre foi questionável estarmos numa instituição na qual o peso do Reino Unido é de apenas 9%, muito dominada pelos burocratas, cujas leis têm precedência sobre as leis do Parlamento. Mas este era um debate ao nível académico. O que a campanha a favor da saída fez, e foi bastante inteligente, foi escolher como slogan a frase: Take back control [Recupera o controlo]. A mensagem que querem passar é não só a de que é preciso reconquistar a supremacia do Parlamento, mas também reassumir o controlo das fronteiras para poder restringir a imigração. Juntaram-nas em torno desta ideia forte que é a palavra “Controlo”. Veremos se estão certos, se a saída permitirá controlar a imigração.
O debate sobre a imigração sobrepôs-se a todos os outros…
Sim, para quem quer sair, a imigração é claramente o tema mais importante. Para quem defende a permanência a economia é a principal preocupação. Os dois temas dominaram completamente o debate. Até há duas ou três semanas, o consenso era o de que as pessoas iriam votar [a pensar] com a carteira, de que seria a economia a moldar o debate. O que surpreendeu muita gente é que isso acabou por não acontecer. O debate sobre a imigração tem vindo a ganhar força nas sondagens. Em meu entender, isso não tem a ver com o facto de o argumento ter sido bem ou mal apresentado. Tem a ver com a globalização. A maioria dos britânicos não acredita nas previsões económicas que lhes foram apresentadas. É impressionante que apenas um quarto dos eleitores achem que a saída terá um efeito negativo na economia. Quando olhamos para o leque de previsões – nove em cada dez economistas acha que o efeito da saída será mau ou muito mau – isto é muito impressionante. O Governo não conseguiu apresentar de forma eficaz o seu argumento económico.
Outra coisa interessante é que o acordo que Cameron conseguiu [com os parceiros europeus], que se esperava ter um efeito positivo nas sondagens, acabou por ter o efeito contrário. Houve um aumento de 4% nas intenções de voto a favor da saída após o acordo. A razão para isso foi que ele nos prometeu “algo impressionante”, que nem ele próprio sabia exactamente o quê. Quem acompanha a política europeia sabe que há outros 27 Estados-membros e que era claro que ele não iria conseguir mais do que conseguiu. A imagem que passou foi que ele não conseguiu nada e isso foi um falhanço político.
O travão de emergência [que permite a Londres suspender a atribuição de prestações sociais aos imigrantes europeus] é difícil de explicar aos eleitores…
Não, creio que a ideia ficou clara para os eleitores – os cidadãos da EU não vão receber apoios nos quatro primeiros anos…
Mas a aplicação será faseada…
Sim, faseada e quando começar a ser aplicada haverá isenções. Mas em termos gerais creio que esta é uma iniciativa política popular, os eleitores percebem que vai poupar dinheiro ao Estado. Mas a maioria dos estudos mostra que não terá efeitos na imigração e os factos indicam que para a população, e não apenas a do Reino Unido, aquilo que pesa são as mudanças a que estão a assistir nas suas comunidades – o acesso à habitação piorou, as crianças não conseguem lugar nas escolas, este tipo de percepções.
O que muita gente diz é que estamos perante uma tempestade perfeita. Muitas destas coisas [a dificuldade em arrendar casa, a sobrelotação das escolas] já aconteciam e a imigração teve pouco impacto. É uma situação que resulta da crise das dívidas soberanas e dos cortes na despesa pública. Mas o sentimento no terreno é que há uma escassez de oferta e que os britânicos estão a ser prejudicados [pelos imigrantes]. E este sentimento é uma das coisas que está a fazer aumentar as intenções de voto na saída.
Muitas vezes também se diz que o Reino Unido atravessou a crise mais depressa do que outros países e em termos de emprego e isso é verdade – nunca tivemos uma taxa de desemprego muito alta – mas o emprego ganho é de baixos salários. Os salários não têm subido desde 2009 e muita gente empregada não tem dinheiro para viver e tem de recorrer à solidariedade. E esse sentimento de quem trabalha no duro e não tem perspectivas de melhoria tem sido central na política britânica dos últimos anos.
No caso de vitória do “Brexit” prevê-se que o país demore vários anos até conseguir sair da UE. Quais serão os maiores desafios do Governo?
Sim, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, falou num prazo de sete anos. Em termos legais será muito difícil que as negociações possam durar todo esse tempo, porque o artigo 50 [do Tratado de Lisboa] estipula um prazo de dois anos e, se isso não acontecer, vai haver problemas. Cameron prometeu que na segunda-feira a seguir à saída vai accionar o processo. A campanha pela saída diz que nem pensar, mas quer que o Reino Unido saia antes [das legislativas] de Maio de 2020.
O que irá acontecer? Posso dizer-lhe o que acho que deveria acontecer, mas também o que acho que é provável que venha a acontecer. O Reino Unido está numa posição negocial muito fraca em relação aos outros Estados, vai ser muito difícil concluir as negociações antes de 2020, muito por causa das eleições em França e Alemanha e a situação em França é particularmente desafiante por causa da popularidade de Marine Le Pen. E não é provável que os outros Estados aceitem a estratégia negocial britânica e digam que não apresentam propostas a Londres até que Londres inicie as negociações. Isto para dizer que será muito difícil adiar o início do processo. Mas também vai haver muita turbulência política – é previsível que tenhamos um novo primeiro-ministro se o “Brexit” vencer – e não acredito que alguma coisa aconteça antes de Setembro.
Só em Setembro é que Londres vai formalizar a decisão de sair?
Sim, creio que só em Setembro. É claro que tudo depende do que acontecer com David Cameron. Se ele se mantiver no cargo, é provável que aconteça mais cedo. Se sair, acho que acontecerá em Setembro, embora a campanha pela saída tenha dito que a sua intenção era avançar apenas no início do próximo ano.
Depois temos dois anos para negociar. O problema é que se a saída acontecer sem um acordo [com os outros 27] toda a gente vai perder, mas o Reino Unido perde mais do que os outros. E por isso, o seu poder negocial diminui a cada dia que passa. Se eu estivesse na posição dos outros países, como Portugal, não faria qualquer negociação nos primeiros 18 meses. Para o Reino Unido, será também muito difícil conseguir acordos comerciais com países terceiros.
Será um período muito difícil e é preciso não esquecer que a imigração foi o principal tema da campanha pela saída. Até agora tem dito que os europeus que residem no país podem ficar, mas vai levantar-se a questão dos benefícios a que têm agora acesso, a situação dos familiares. E os outros Estados podem adoptar uma posição muito dura quando confrontados com as restrições que foram adoptadas por Londres. As negociações não serão fáceis. Isto é o que eu acredito que pode acontecer. Será muito mau para o Reino Unido, mas também será mau para o resto da UE.
Qual é a alternativa?
A minha preferência, e quase podemos adivinhar que é isso que Tusk está a pensar, seria a negociação de um acordo transitório, que vigorasse por cinco anos, em que nas áreas que são mais sensíveis para os britânicos – a imigração ou as pescas, por exemplo – chegaríamos a um special arrangment. Tudo o resto manter-se-ia em vigor, com excepção daquelas áreas. Poderia ser uma forma de manter todos os países contentes durante pelo menos cinco anos. Algumas pessoas, como [o líder do UKIP] Nigel Farage dirão que isso não é suficiente, mas temos de lhe lembrar que, até agora, a campanha pelo “Brexit” diz que a saída não acontecerá antes de 2020 e de uma forma que não é a melhor. Se a opção for ter cinco anos em que vigora um acordo transitório, negociado ao abrigo do Artigo 50 e tendo em vista um acordo final em 2020 ou 2021, isso pode ser a melhor opção para toda a gente. Os outros Estados, mesmo os que têm uma visão muito crítica do Reino Unido, percebem que haverá forte turbulência se a saída acontecer sem um acordo.
As pescas e a imigração deveriam ser a prioridade?
Acho que, no caso de saída, o Reino Unido ficará numa situação em que lhe será impossível continuar a aceitar a livre circulação de pessoas. Esse é a principal razão que leva os eleitores a optar pela saída. Nenhum político conseguiria dizer que ele deveria continuar a vigorar.
E acha que dois anos bastam para se chegar a esse entendimento?
Nessa matéria terá de haver um acordo político, mas não é uma questão que necessite de grande negociação. O que é preciso é chegar a um entendimento que seja politicamente aceitável. A posição de todos os partidos é que os europeus que já estão no Reino Unido podem ficar. É óbvio que querem o mesmo para os britânicos que vivem nos outros Estados. Depois é preciso discutir que acesso vão ter aos direitos que gozam actualmente e também sobre o direito dos outros cidadãos europeus a viajar para o Reino Unido. Não digo que não seja uma discussão politicamente sensível, mas acredito que não sejam precisos dois anos para chegar a um acordo. Novos acordos para cada um dos sectores da economia vão demorar mais do que dois anos ou mesmo mais do que sete.     
A questão, para os outros Estados-membros, é que não podem aceitar nenhum acordo que partidos como a Frente Nacional, em França, possam usar para dizer: “votem em nós para sairmos da UE e conseguirmos um acordo como este”. Será muito difícil, mas tem de haver um acordo nessas áreas, se não é pouco provável que haja qualquer acordo.
O Reino Unido terá também de substituir toda a legislação europeia. Como se separam duas legislações que coexistem há mais de 40 anos?
Os serviços do Governo admitem que vai demorar dez anos a fazê-lo e não há uma solução fácil. Sem grande surpresa, os empresários dizem que aprovam a grande maioria das leis europeias e, de repente, até a campanha pela saída vem dizer que gosta das leis europeias do trabalho, que até há pouco tempo queria mudar. Tendo em conta que estão em causa 11 mil leis e o Parlamento britânico aprova em média 25 leis por ano, isso quer dizer que se este trabalho passar apenas pelos deputados vai demorar 50 anos [a concluí-lo] e por essa altura já a UE terá mudado as suas leis. Terão de ser criados mecanismos especiais que serão parte de um processo complicado.
A campanha pela saída diz que o processo vai ser difícil, mas a vantagem é que há a possibilidade de escolha. A minha opinião é que se o “Brexit” vencer, vamos continuar a aplicar a maior parte da lei europeia num futuro próximo.

Nevoeiro no canal
Por João Caraça
20/06/2016
A função histórica do Reino Unido acabou e os britânicos podem abandonar a Europa sem pesos na consciência, quando lhes aprouver.
 “Nevoeiro no Canal. O Continente está isolado.” foi um pretenso título de um jornal britânico nos anos 1930, mas que retratava com perfeição o estado de espírito dos súbditos de Sua Majestade no que tocava às relações com as nações continentais da Europa. A frase acima referida tem sido periodicamente retomada pois esse estado de espírito, aparentemente, não se alterou.
Talvez porque desde Henrique VIII e da época da Reforma a Inglaterra tenha entendido que devia prescindir definitivamente de qualquer dependência do velho continente que pudesse beliscar a sua autonomia e identidade. O reverso da medalha foi o de ter de desenvolver um olhar muito atento e observador sobre o que se passava na Europa continental de modo a poder intervir, diplomatica ou militarmente, para impedir uma eventual união política e territorial da Europa.
Esta possível união foi sempre encarada como a ameaça maior ao modo inglês de estar no mundo. Estavam certos de que, no confronto directo, a Inglaterra perderia a face e, quiçá, o corpo todo.
Não nos podemos esquecer de que o Reino Unido aderiu à CEE em 1973, nos alvores da grande crise “do petróleo” dos anos 1970, embora nunca tenha feito parte do espaço de livre circulação (Schengen) nem da zona euro. A razão histórica para a entrada do Reino Unido para a “Europa” foi a de impedir a sua união política, anátema que desagradava sobremaneira à própria Inglaterra, mas principalmente aos Estados Unidos, que se encontravam no início do seu declínio como nação hegemónica. Era o desastre anunciado do Vietnam, a flutuação do dólar, a entrada da China na cena internacional.
Interessava pois aos Estados Unidos, ainda em guerra fria com os soviéticos, que emergisse apenas um grande mercado europeu para poder ser explorado pelas suas multinacionais, isto é, uma espécie de união económica sem união política.
Evidentemente, o projecto de federação das nações europeias (ou de confederação) sonhado pelos pais fundadores da CEE foi preterido, tendo as energias das instituições europeias sido centradas na criação de um mercado único (e de uma moeda única). O pretexto para tal, que os europeus engoliram, foi o de que a união económica (e monetária) defendia muito melhor os seus membros, em situações de crise. Viu-se.
Entrou pois o Reino Unido na Europa, dando a garantia de que jamais haveria união política enquanto lá se mantivesse. Uma vantagem adicional seria a de servir de poderoso agente da globalização financeira da Europa com que se ansiava já, acompanhando a introdução das novas tecnologias da informação (o que também foi conseguido com sucesso – lembremo-nos do “big-bang” da City no tempo da senhora Thatcher).
Em resultado das crises em que vivemos desde 2008 tornou-se porém óbvio que não há a mínima possibilidade de, na actual configuração da União Europeia, se evoluir para uma qualquer integração política. Tudo se fragmentou. A função histórica do Reino Unido acabou e, portanto, os britânicos podem abandonar a Europa sem pesos na consciência, quando lhes aprouver.
Por este motivo, mentalmente, a velha Albion já está fora do nosso continente. Qualquer que seja o resultado do referendo no próximo dia 23. A partir de agora, é apenas uma questão de procedimento.
Professor universitário, Físico  


 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

GUERRA CONTRA OS POBRES


A guerra da direita contra os pobres e o dever de memória


14/06/2016

A direita tenta reescrever a história do seu governo, seleccionando as estatísticas e os indicadores-

Um dos exemplos da novílíngua neoliberal que incautamente todos temos vindo a usar nas últimas décadas e que mais me arrepia é a expressão, adoptada oficialmente pela União Europeia e pela OCDE, de “risco de pobreza”. A expressão é lamentável porque é uma expressão tecnocrática, que retira a carga dramática a uma situação de enorme sofrimento físico e moral, que constitui com frequência uma condenação de famílias inteiras a uma pena por várias gerações - porque a pobreza gera ignorância e doença que geram pobreza. Mas, para além disso, é lamentável principalmente porque constitui um manto que cobre e esconde a própria coisa que deveria nomear.

“Risco de pobreza” não só não é pobreza como parece ser o contrário da pobreza. Quem é pobre está dentro da “pobreza”, mas quem está em “risco de pobreza” parece estar ainda fora, talvez à porta da pobreza mas ainda do lado de fora.

Durante os últimos anos ouvi várias vezes lídimos representantes da direita corrigir interlocutores que falavam da “pobreza” em Portugal para recordar que apenas se podia falar de “risco de pobreza”, como se não houvesse pobres. A diferença é tão abissal como sabermos que corremos um risco de ter cancro ou ouvir o médico dizer-nos que temos um cancro. O que acontece na realidade é que as pessoas que consideramos estar em risco de pobreza são de facto pobres, sem eufemismos, verdadeiramente pobres. Todas estas pessoas oficialmente em “risco de pobreza”, vivem de facto na pobreza 24 horas por dia, sete dias por semana, frequentemente com os seus filhos, para quem não vislumbram outra vida que não a mesma pobreza. Todas elas? Sem excepção? Claro que não. A estatística inclui provavelmente dois ou três dirigentes de clubes de futebol que declaram património zero e rendimento zero e que não são realmente pobres. Mas estes casos individuais e isolados, que existem, não desmentem a verdade da estatística - apesar de ser devido à sua possibilidade que se fala de “risco de pobreza” em vez de “pobreza” tout court.

É importante falar de pobreza e daqueles a quem os mais de quatro anos de governo PSD-CDS condenaram à pobreza, enquanto o ministro Pedro Mota Soares batia hipocritamente com a mão no peito, porque a direita continua a não desarmar e a tentar reescrever a história do seu governo, seleccionando as estatísticas e citando os indicadores da forma que mais lhe convém. É importante fazer esse exercício agora, quando o pesadelo PSD-CDS acabou, porque é agora que começamos a ter a leitura completa desses anos de chumbo. Recentemente, o investigador Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão e investigador no domínio da pobreza e exclusão, publicou uma análise relativa aos anos de austeridade onde mostrava que enquanto o rendimento dos 10% mais ricos tinha descido 13%, o rendimento dos 10% mais pobres tinha descido 25%. Esse verdadeiro ataque aos mais pobres deveu-se não apenas ao desemprego mas, principalmente, à redução das prestações sociais. Lembram-se de ouvir Mota Soares, Paulo Portas e Passos Coelho garantir e jurar que as suas políticas podiam estar a ser penalizadoras para a classe média mas protegiam os mais pobres? Era mentira. Sabemo-lo agora sem a mínima margem para dúvidas. Uma mentira à conta da qual os banqueiros continuaram a ser protegidos à custa do envio para a pobreza (e não para o “risco de pobreza”) de milhares de famílias portuguesas. É interessante ver o gráfico das perdas dos vários grupos sociais: quando mais pobres, mais perdem. A classe média perdeu? Sim, mas os pobres perdem muito mais. A luta de classes em todo o seu esplendor. Nada que possa fazer Mota Soares perder o sono, antes ou agora.

É igualmente interessante ver as estatísticas de emprego relativas aos anos de austeridade e ver, segundo explica o economista José Reis, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, como o governo da direita destruiu 200.000 postos de trabalho e empurrou 400.000 portugueses para a emigração e como os “programas ocupacionais” do IEFP disfarçaram 170.000 desempregados, colocando-os em trabalhos precários no Estado pagos pela Segurança Social, de forma a matar vários coelhos de uma só cajadada: dar a impressão de que foi reduzido o número de funcionários públicos quando não foi (porque os “ocupados” não contam como funcionários), dar a impressão de que foi reduzido o desemprego quando não foi (porque os “ocupados” não contam como desempregados), dar a impressão de que a Segurança Social tem mais problemas financeiros do que tem (porque os “ocupados” que trabalham para departamentos do estado são ilegitimamente pagos pela Segurança Social) e fazer crer que o desemprego está a aumentar com o actual governo (porque os falsos empregados chamados “ocupados” terminam os seus trabalhos precários e muitos continuam desempregados).

A direita PSD-CDS continua empenhada em reescrever a história do seu governo, para fazer o seu branqueamento e para tentar o actual governo fazer má figura. É importante fazer a história destes anos negros para não repetirmos a experiência.






Desigualdades em saúde pioraram em dez anos. Pobres são mais doentes


14/06/2016

Observatório de Saúde diz que desigualdades aumentaram entre 2005 e 2014. Risco de adoecer cresce devido aos baixos rendimentos e pouca escolaridade. “Continuam a ser os mais pobres os mais doentes”.

Risco de diabetes é mais de quatro vezes superior nas pessoas sem formação secundária e superior MANUEL ROBERTO

As desigualdades sociais em saúde agravaram-se nos últimos anos em Portugal. “Seja qual for a doença, a desigualdade aumentou claramente entre 2005 e 2014, independentemente do sexo e da idade”, concluem os investigadores do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) no relatório de Primavera que esta terça-feira é apresentado em Lisboa. Os riscos de adoecer aumentam exponencialmente com a ausência de escolaridade, com os baixos rendimentos ou nos idosos, sublinham. “Continuam a ser os mais pobres os mais doentes e os mais doentes os mais pobres”, sintetiza José Aranda da Silva, um dos coordenadores do observatório.

A problemática das desigualdades em saúde é um principais temas em foco no relatório de Primavera deste ano do OPSS - que não se pronuncia sobre as políticas deste Governo por terem passado “apenas sete meses entre a posse” do executivo e a conclusão do documento. O fenómeno das desigualdades é determinante, até porque tem um impacto significativo na esperança de vida, como provou um recente estudo publicado no Journal of American Medical Association - que demonstrou que, entre 2001 e 2014, “os homens mais ricos dos Estados Unidos da América viveram em média mais 14,6 anos do que os homens mais pobres”.




domingo, 5 de junho de 2016

CUNHAS & FAVORES



  O retrato está bem feito, duvido que a solução proposta seja a melhor. 
MC                                                                                                                                                                Cunhas, favores e soluções
Por Dantas Rodrigues
04/06/2016
Filhos do povo como são, não admira que os nossos políticos tenham feito da “cunha” “negociação”, dando desse modo legitimidade às suas inconfessáveis manobras
O ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, é mais um político a contas com crimes no exercício de funções públicas. Suspeita-se que tenha usado o seu cargo político para decidir em benefício de determinada entidade (crime de prevaricação), e tenha aceitado determinada oferta para influenciar decisões junto de certas entidades públicas (crime tráfico de influências).
Dito em duas palavras: cumplicidades de “favores” e ”cunhas” que permitem lucrar com as prerrogativas que oferecem os cargos públicos. Em linguagem bem portuguesa quer isto dizer: “eu dou-te uma coisa a ti, se tu me deres uma coisa a mim…”
Os portugueses sempre tiveram uma habilidade muito especial para a meter a sua “cunha” na esfera pública, seja para conseguirem uma consulta médica, seja para o inspector fechar os olhos aos seus negócios quando empregam trabalhadores ilegais. Aquele inegável jeitinho para a pedinchice, aquela arte única para a conversa fiada, é-lhes transversal e ninguém parece ficar incomodado com isso. Ou não fosse tão genuinamente nosso aquele velho manhoso e popular aforismo que “quem não chora não mama.”
Filhos do povo como são, não admira, pois, que os nossos políticos tenham feito da “cunha” “negociação”, dando desse modo legitimidade às suas inconfessáveis manobras, transformando tudo ou quase tudo em legalidade, como seja, por exemplo, convidar amigos para negociar em nome do Estado. Acham-se imunes, crendo que são pessoas respeitáveis, vêem-se acima do comum dos mortais e, como tal, julgam-se senhores de tudo, não se preocupando minimamente se transgridem a lei ou se se entregam a vulgares práticas desonestas de poder.
Já sei, dir-me-ão, que a política, com os ordenados que paga, não dá para enriquecer. Claro que não dá, toda a gente sabe. Mas o que nem toda a gente imagina é o que dá o status, o poder de estar ligado a ela, à dita política. Aos que não têm paciência para esperar, gera dinheiro que até pode ser ocultado na conta offshore de um qualquer amigo, e aos que tiverem paciência (até nem é preciso muita), podem vir a ter o mundo a seus pés. Pense-se em percursos que começaram em simples ministérios, passaram pelas altíssimas instâncias da União Europeia, já vão agora nas influentes universidades privadas dos EUA e que, amanhã, só terão o céu como limite.
Senhores do poder, os políticos fazem amigos facilmente, de preferência amigos empresários, amigos a quem não se pode negar um favor. Afinal é um pedido de amigo, não é verdade? De “cunha” em “cunha” o barco vai navegando, fazendo com que os parcos recursos do País sejam utilizados para incrementar o clientelismo, promover acordos e ganhar concursos, outrora públicos, hoje muitos dos quais decididos por ajuste direto. No fim de contas, pergunta-se, mas que mal existe em ser um amigo a ganhar uma empreitada de obras públicas? Não estará essa empreitada, pelo facto de ter sido entregue a um bom amigo, em boas mãos? Claro que está, dizem eles entre si!
No fundo, vistas bem as coisas, a corrupção até é vantajosa: ganha o empreiteiro, ganham os trabalhadores do empreiteiro e ganha o político. Ganham todos, pensam eles! Mas, como nunca podem ganhar todos, é uma utopia, quem perde é o pagador, que é sempre o dinheiro público, porque no preço do contrato até o suborno costuma ser incluído. Esta teia de vantagens é sempre tecida sobre regras de jogo que desviam os recursos das necessidades sociais básicas, cria desigualdades na distribuição de incentivos e no acesso aos mercados, interfere nos processos eleitorais e promove e oculta outros crimes, muitos dos quais até de natureza mais grave.
A ciência jurídica debate-se com um importante problema, que é também uma interrogação: como é que deve ser fiscalizado e controlado o exercício do poder público? Sempre defendi um processo penal garantista, que proíba a obtenção de provas ilícitas e a aplicação de penas excessivas e não ressocializantes. A realização da justiça reside num «direito penal mínimo», isto é, em penas adequadas à conduta criminosa, mas sujeitas a limites.
Dentro desse enquadramento fazem falta, no nosso processo penal, dois instrumentos fundamentais: o estatuto do arrependido e os acordos-sentença. O estatuto do arrependido consiste na atribuição de um prémio de pena ao cúmplice ou ao autor de crimes pela confissão e colaboração com a investigação judicial, permitindo desvendar teias criminosas. O que colaborar com a investigação policial na identificação dos demais autores ou cúmplices, desde que a informação seja realmente importante e relevante, beneficiará de redução de pena, de pena em regime aberto (RAVE) ou de perdão de pena.
Nos crimes económicos, ou vulgarmente conhecidos por crimes de colarinho branco, é indispensável a figura do arrependido.
Os acordos-sentença consistem numa suspensão do processo judicial para o agente do crime, através de um acordo quanto à pena a aplicar e ao montante da indemnização para ressarcir os lesados, à semelhança da Plea Bargain do direito norte-americano. Assim, o Ministério Público, ao encerrar o inquérito com a elaboração do despacho de acusação, notifica os arguidos para, num prazo de cinco dias, se pretenderem, iniciar a fase das negociações que se prolongaria pelo prazo de 15 dias, visando a aplicação de uma pena que suspenderia o processo judicial. Essa transação penal permitiria que as penas sugeridas pelo Ministério Público fossem negociadas com os arguidos e seus mandatários, face aos indícios probatórios carreados para os autos.
O acordo a que se chegasse preveria sempre uma confissão parcial ou total dos factos descritos no despacho de acusação: uma pena, suspensão da execução da prisão ou não, dependendo da gravidade dos factos praticados, e ainda a perda das coisas, direitos ou vantagens obtidas por via da prática dos factos ilícitos, ou o pagamento ao Estado de uma compensação. O mesmo procedimento seria utilizado para as empresas acusadas, aplicando-se-lhes penas de multa e compensações. O juiz aferiria da validade da confissão dos factos pelos arguidos e competir-lhe-ia homologar o acordo-sentença. Caso as negociações se iniciassem e, depois, saíssem frustradas, o processo seguiria diretacmente para julgamento, não se realizando a fase da instrução.
Eis como vejo que se deverá atacar um dos cancros mais letais da sociedade portuguesa, a “cunha”, o “favor”, “a mão que lava a outra”, que, em mãos de políticos e de seus amigos, se transformam sempre em tráfico de influências. Se, pelo contrário, nada se fizer, o que acontecerá é que a indiferença seguirá o seu pernicioso caminho e ninguém mais acreditará nas instituições de um regime pasto da gula dos mais improváveis apetites.
Advogado