terça-feira, 26 de dezembro de 2017

PÓS-DEMOCRACIA






Pós-democracia

Os constrangimentos democráticos precisam de ser “descartados” para que o capitalismo prossiga o seu avanço e dominação global.

26 de Dezembro de 2017, 7:47


José Pereira da Costa

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O conceito de pós-democracia, tal como o vamos desenvolver adiante, parece ter partido do sociólogo Colin Crouch, (n. 1944), professor em Inglaterra na Universidade de Warwick, no seu livro Coping with Post-Democracy, publicado em 2000.

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Trata-se da constatação de que, com a globalização, muitas das decisões tomadas, na política como na economia, são-no a nível global, nos foros internacionais, de que a maior parte das pessoas estão arredadas. Daí uma clara falta de interesse pela política e consequente abandono da participação nos actos eleitorais, principalmente nos países desenvolvidos, onde raramente as abstenções são abaixo dos 50%.

Aqui, apontar-se-ia de imediato a União Europeia como uma das causas para o alheamento referido. Mas o mesmo acontece noutras regiões como nos Estados Unidos e Japão, onde as instituições políticas são de outro tipo. Porém, o que Colin Crouch esclareceu foi que nessas sociedades as instituições democráticas existem, mas são meramente formais, uma vez que as decisões são tomadas por uma elite que detém o poder político e económico. E isto é evidente desde que o neoliberalismo se tornou teoria e prática depois da implosão da União Soviética e dos outros países socialistas.

A financeirização da vida política e económica, onde tudo é considerado mercadoria, desde os humanos à arte, é aceite por todos os “especialistas” destas questões, que aparecem com os seus comentários e alertas sempre a invocar o imperativo do lucro das grandes empresas. Dois casos recentes em Portugal são elucidativos. Quando o governo de Passos Coelho ficou na posse de 85 quadros de Miró, que pertenciam ao BPN, logo se disponibilizou para os leiloar a um preço avaliado em 36 milhões de euros, seguramente para agradar à troika e às instituições que tinham o governo sob tutela. Muito se devem ter impressionado alguns elementos dessas instituições pelo menosprezo demonstrado por uma colecção de arte ímpar, a troco da redução de uma parcela ínfima da dívida portuguesa.

Outro caso da actualidade é o da Autoeuropa, cujo contexto conheço relativamente bem, não só porque trabalhei na indústria automóvel durante 18 anos, repartidos pela General Motors e a Renault Portuguesa, antes de ir para Bruxelas, como tenho uma filha que pertenceu aos quadros da empresa durante dez anos, dois dos quais na sede da VW, em Wolfsburg, que tive ocasião de visitar. A facilidade com que se acusam os dois partidos de esquerda, que apoiam o Governo, de destabilização é só uma prova de ignorância sobre o que é a vida social e laboral numa grande empresa. Como dizia alguém recentemente, todos os que têm menos de 50 anos são uns ignorantes. Não queria ir tão longe porque é preciso notar que mesmo muitos que não sofreram da desmemorização em curso, no que toca à história política e económica dos últimos 200 anos, aproveitam-se para propalar e aumentar, de má-fé, essa ignorância.

Mas voltando a Colin Crouch e às suas conclusões de que vivemos numa era de pós-democracia, em que as elites políticas, económicas e financeiras estão combinadas para, sob a palavra de ordem de competitividade das empresas e dos países, tomarem as decisões que só a elas beneficiam, deixando aqueles que são os verdadeiros produtores incapazes de reagir, verifica-se que, quando há uma reacção, como aquela que aconteceu dos trabalhadores da Autoeuropa, aparecem logo as ameaças e os tais “especialistas” a propor o acatamento das decisões da direcção da empresa. Neste caso, injustas e atentatórias dos direitos mais básicos de quem trabalha. Esquecendo-se dos milhares de conflitos como este que aconteceram ao longo de muitas décadas na indústria automóvel, para já não falar da raridade de situações como esta na maior parte das fábricas da Volkswagen, onde as remunerações, as regalias e as condições de trabalho são muito superiores às que existem em Palmela.

Um outro “esquecimento” dos direitos humanos, que estão sempre a ser exigidos aos países que não pertencem ao bloco ocidental, diz respeito ao tratamento da crise dos refugiados, resultante das guerras que este mesmo bloco ocidental desencadeou em regiões onde outrora foi rei e senhor e pretende continuar a mandar. Uma verdadeira “trapalhada”, mas onde estão a morrer milhares de seres humanos. Que se assemelha ao tratamento da crise financeira e social iniciada há dez anos em que os gregos (e muitos portugueses) foram deixados a pão e água, em contraste com os biliões utilizados para salvar os interesses financeiros dos accionistas dos bancos.

Outro exemplo recente é o da “caça ao negro” nos Estados Unidos, principalmente durante o segundo mandato de Obama, poupado a um expectável atentado dos racistas e defensores da supremacia branca, mas compensado com o tiro ao alvo indiscriminado da polícia, não só nos Estados do sul, sobre qualquer cidadão negro considerado “suspeito”, sendo que o direito a transporte de uma arma, concedido pela Constituição a todos os americanos, não inclui estes cidadãos.

Por fim, enquanto pesquisava sobre o tema da pós-democracia, encontrei onde menos esperava, no Brasil, um artigo muito bem elaborado e uma entrevista do juiz de direito do Rio de Janeiro Rubens Casara, incidindo numa perspectiva diferente de Crouch, a de um jurista. Nomeadamente na revista Justificando, Casara complementa a definição daquele, de que o funcionamento das instituições democráticas é uma mera formalidade, afirmando que o Estado, do “ponto de vista político apresenta-se como um mero instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e manutenção ou ampliação das condições de acumulação de capital e geração de lucros”. Num contexto muito diferente da Europa, Estados Unidos ou Japão, a situação social no Brasil, de milhões e milhões de sub-cidadãos a viverem nas favelas das grandes cidades, implica a manutenção de uma força da ordem militarizada para impedir qualquer acto de rebelião contra essa injustiça flagrante que resulta directamente da escravidão. (Que, como Casara refere, conviveu com o Estado “liberal”). É o que se passou também nos sistemas coloniais como o português, bem demonstrado nos programas que Fernando Rosas fez para a RTP2, no apartheid da África do Sul ou na ocupação de Israel na Palestina, no pouco que resta de território deixado aos palestinianos, só para dar três exemplos.

Rubens Casara acrescenta que no Brasil hoje existe um Estado pós-democrático “sem qualquer compromisso com a concretização dos direitos fundamentais, com o resultado das eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a participação popular na tomada de decisões”. Referindo-se, embora não o mencionando directamente, ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, à perseguição e prisão para interrogatório de Lula da Silva, às escutas telefónicas e ao condicionamento da liberdade de expressão e de manifestação de todos aqueles que se opõem ao poder económico, identificado sem pudor com o poder político, termina dizendo que se trata de uma “justiça moldada ao gosto da opinião pública”, que como se sabe é controlada pelo poder económico. Depois, numa entrevista à revista CULT, Casara afirma que a democracia se tornou um obstáculo ao projecto neoliberal. Os constrangimentos democráticos precisam de ser “descartados” para que o capitalismo, concretizado nos interesses das grandes corporações, prossiga o seu avanço e dominação global. A isto se chama pós-democracia.

Como dizia um colega mais velho, quando entrei para a General Motors, em Dezembro de 1970, acabado de chegar de uma comissão militar em Moçambique, “pergunta a minha curiosidade”: e a que distância estamos do fascismo?

Investigador em Relações Internacionais; antigo funcionário da Comissão Europeia

domingo, 24 de dezembro de 2017


A bofetada

As eleições catalãs são uma lição contundente sobre os limites da capacidade condicionadora do Estado.

23 de Dezembro de 2017

Manuel Loff    Em muitos anos não se assistia a um ato de resistência democrática como o de anteontem na Catalunha. Quem assegurava que "metade da Catalunha" seguira "o canto das sereias" e "aceitara sem críticas as mais descaradas falsificações" independentistas (Jorge Almeida Fernandes, PÚBLICO, 05.11.2017), quem duvidava da representatividade da vontade catalã de autodeterminação e a descreveu como uma "impressionante vontade de auto-engano", tem aqui a resposta.As eleições catalãs, mais participadas (82%) que qualquer outra eleição espanhola em toda a história do sufrágio universal, são uma lição contundente sobre os limites da capacidade condicionadora do Estado (executivo, legislativo e judicial), o espanhol e os dos seus aliados, bem como da chantagem dos mandantes dos interesses económicos privados articulados com os anteriores. Estas, recordemo-nos, foram as eleições pedidas pelos partidos unionistas (Cidadãos, PSOE e PP), convocadas por um Governo central a quem a Constituição não reconhece o direito de as convocar, depois de o Senado ter decretado a suspensão da autonomia da Catalunha e os tribunais espanhóis terem ordenado a prisão dos membros do Governo e da Mesa do Parlamento da Catalunha e processado mais de um milhar de deputados, autarcas, ativistas, e até mesmo de comandantes da polícia autónoma, um mês depois da repressão violenta de milhares de cidadãos que pretendiam votar no referendo convocado para o dia 1 de outubro. Juncker e os governos da UE, advertidos por Madrid, repetiram que havia que "respeitar a legalidade e a Constituição" espanholas e calaram-se perante as mesmas ações que levaram o Conselho da Europa ou o Comité Contra a Tortura da ONU a criticar Madrid. Num caso, Rajoy superou-se a si mesmo: como o governo letão se mostrara favorável à realização de um referendo na Catalunha, a Espanha mandou tropas para a fronteira entre a Letónia e a Rússia para comprar o apoio dos letões, como confirmou o ex-ministro García Margallo (Publico.es, 18.11.2017). Diga-se, aliás, que a decisão foi tomada pela ministra espanhola da Defesa que há semanas se deixou enganar por um comediante russo que, fazendo-se passar por ministro letão, lhe alimentara o mito da ingerência russa no caso catalão. Governantes sensatos, estes.Na Catalunha aplicou-se o que se tem tornado o novo padrão neoliberal da velha política do medo: uma nova vitória independentista seria a catástrofe económica (quebra de 20% do PIB catalão, desemprego, fuga de capitais e fim do investimento), a mesma que se profetizou, por exemplo, com a possibilidade de acordo entre PSOE e Podemos ou, entre nós, com os acordos de Costa à esquerda. Tudo previsões económicas de grande objetividade. Repetiu-se vezes sem fim a velha lengalenga das famílias divididas e dos amigos desavindos, numa curiosa nostalgia dos bons tempos, como os do Franquismo, em que se não falava de política para evitar problemas, como se de discussão política se não fizesse toda a democracia. O mais amnésico desta tese é que ela finge ignorar que foi a polícia espanhola e os ultras que saíram à rua nas manifestações pela "unidade de Espanha" que trouxeram a violência à Catalunha, e não os partidários da independência.Estas eleições foram convocadas para ratificar a "normalidade" constitucional, toda ela feita de excecionalidade (a primeira vez que um regime autonómico é suspenso pelo Governo central; eleições realizadas com candidatos na prisão ou no exílio por motivos políticos, oito dos quais acabaram por ser eleitos deputados). Contra esta lei de exceção pronunciaram-se não só os independentistas (47,7% dos votos), mas também os Comuns (a que o Podemos se aliou) (7,5%); a favor dela uma minoria consistente de unionistas (43,7%), mas que, ao contrário dos que garantiam haver uma "maioria silenciosa" a favor de manter tudo como está, continua a não ser maioria alguma.O que vai fazer Rajoy? O que vão fazer aquele rei, os tribunais, a polícia espanhola? Puigdemont, que, como tudo indica, voltará a ser eleito presidente da Generalitat, retomou a única estratégia possível: a da negociação. Quando ele voltar para tomar posse do cargo, o que fará Rajoy: mandar prendê-lo? Tudo indica que sim: aproveitando o final do processo eleitoral, o Supremo Tribunal acaba de processar por "rebelião e sedição" mais seis dirigentes dos três partidos independentistas. A "normalidade" constitucional parece que continuará a ser esta. A democracia, essa, é que fica à espera.

Historiador


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

PARTIDOS E ÉTICA


Algumas observações sobre o tema.
MC


Partidos têm dado pouca relevância à ética

Acusações ao ex-primeiro-ministro podem ser uma oportunidade para afirmar novos critérios de vigilância e apertar as malhas das incompatibilidades.


3 de Dezembro de 2017

O despacho de acusação da Operação Marquês levanta interrogações sobre a prevenção da sociedade à forma como os representantes eleitos pelo povo exercem as suas funções. Não é só o escrutínio das suas acções que está em causa. Em jogo está a forma e existência, ou não, de filtros no recrutamento partidário. Três especialistas analisam a questão e apontam caminhos.

“Os partidos têm dado pouco relevância à ética”, considera Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS), doutorado por Florença com uma tese sobre políticas públicas de combate à corrupção e antigo presidente da TIAC – Transparência e Integridade, Associação Cívica. “Os partidos falam de ética mas não a praticam nem têm trabalhado nos mecanismos de controlo, apesar de terem um melhor processo de selecção e comissões jurisdicionais”, comenta.

“Na política, devemos falar de uma ética pública que é um ponto de encontro entre as normas mais gerais e as obrigações do cidadão”, pontualiza Viriato Soromenho-Marques, catedrático de Filosofia Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Deste modo, Soromenho-Marques baliza a questão: “A ética pública insere-se na capacidade de verificar se os titulares de cargos públicos cumprem os seus deveres e exercem os seus poderes, pois a omissão do poder pode ser tão trágica como o abuso do poder.”

Carlos Jalali, doutorado por Oxford e professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro, insiste na responsabilidade dos partidos. “Os próprios partidos políticos têm de ter mecanismos de filtragem no acesso que permita que cheguem ao topo pessoas com ética”, refere.

“A partir do século XIX há uma mudança de atitude no mundo ocidental, a política com Auguste Comte passou a ser encarada como uma espécie de física que tinha pouco a ver com a ética, com um comportamento prudencial dos actores políticos”, recorda Soromenho-Marques. A combinação do positivismo com o determinismo histórico marxista, afirma o catedrático, colocou a política na superestrutura, numa foto fixa que viria a ser baralhada pelo desenvolvimento económico. “A visão da política passa a não ser crítica, abrandou a vigilância sobre os decisores e uma análise política que põe fora o factor humano não é séria”, enumera. “Passámos de uma legitimação constitucional, do bom comportamento constitucional e ético dos dirigentes, a uma legitimação dos resultados das políticas económicas”, sintetiza.

Período de nojo insuficiente

Uma dessas políticas, em crescendo de afirmação num tempo de crise, é a diplomacia económica. “É uma área muito porosa, na qual interagem interesses públicos e privados, pode haver promiscuidade e há a possibilidade de se obterem rendas mediando os interesses das empresas com as autoridades dos países de acolhimento, o decisor político pode então passar à qualidade de broker, obtendo comissões ilícitas ”, observa Luís de Sousa. “Estes riscos devem ser mitigados pela forma como são estruturadas as missões da diplomacia económica com a chancela do primeiro-ministro ou do Presidente da República”, recomenda o investigador do ICS.

“A diplomacia económica tem ganho relevância nas acções do Governo, na afirmação externa das empresas portuguesas, que é algo que a cidadania reclama, mas há fronteiras muito ténues entre políticas a favor do país e a favor de interesses particulares ou de grupos”, admite Carlos Jalali. “Se o governante X faz acções a favor do grupo Y, dizendo que é a favor do interesse nacional, pode haver a sua captura que leva a favorecer o grupo Y e não o grupo Z”, alerta.

“Por que é que as empresas recrutam ex-governantes?”, interroga o professor da Universidade de Aveiro. “Um factor é porque esses ex-governantes são presumivelmente competentes e chegaram ao poder através de vários filtros, mas há também o seu conhecimento dos interlocutores e mecanismos das decisões políticas internas e externas que lhes permite facilidade de contactos”, argumenta. É o encadeado de competência, conhecimento e rede. “Os cidadãos não avaliam muito a competência, observam essa contratação pelo conhecimento e pela rede, o que reforça a narrativa da suspeita quando a predisposição da cidadania já é a suspeita”, assinala Jalali.

“A esfera pública tende mais para os rituais, perdemos a capacidade de escrutinar os nossos representantes, os que vão para a esfera pública vão, certamente, com as melhores intenções, mas vão-se sentir mais livres, menos vigiados, e a possibilidade de abusos de poder começa a ser maior”, enuncia Viriato Soromenho-Marques. “Na esfera privada há grandes grupos de poder económico que capturam os nossos representantes, que os passam a servir”, descreve.

“Temos uma prática de recrutamento de ministros que vêm do sector privado e que são convidados pela competência profissional e conhecimento do sector”, recorda Luís de Sousa: “Se a conflitualidade de interesses não existe no momento do recrutamento, porque tem de existir depois?”, questiona. Para o antigo presidente da TIAC, os mecanismos de dissuasão existentes não são suficientes. “O período de nojo de três anos para os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos para empresas de um sector por ele tuteladas não é suficiente na duração nem na forma”, assinala. “Há decisões tomadas e que afectaram um determinado sector económico que se prolongam no tempo, como as PPP [Parcerias Público-Privadas], algumas das quais até 20 anos”, explica. “O impedimento ou período de nojo só se verifica, apenas, nas privatizações, nos casos em que tenham sido beneficiárias de incentivo financeiro ou fiscal contratualizado, o que é insuficiente”, refere.

Do exterior vêm exemplos de outro modus operandi. “No Reino Unido há alguma fiscalização post-employment, uma verificação a posteriori do trajecto profissional dos cargos políticos”, invoca o investigador do ICS. “Na Europa, as comissões de ética criadas no âmbito parlamentar deviam controlar estas questões e terem um papel com recriminações públicas”, assegura. Contudo, há dificuldades: “Os grandes partidos não enveredam por este caminho, quem levanta estas questões são os partidos-tribuna, minoritários, as associações da sociedade civil e os líderes de opinião.”

“O PS falhou”

Mais comuns são as vias seguidas na fiscalização. “Basicamente é criar obstáculos, em todos os países tem-se seguido por duas linhas”, explica Luís de Sousa. “Períodos de nojo à saída do Governo, a que há também de ponderar períodos de nojo à entrada, tal como para os reguladores”, destaca. “A segunda linha é que não basta o impedimento, tem de haver um organismo com legitimidade política que faça a monitorização destas situações e as divulgue, como acontece com a nomeação dos comissários europeus que são escrutinados pelo Parlamento Europeu”, recomenda. “O mesmo devia existir em relação aos ministros e secretários de Estado de cada país”, insiste.

“Hoje em dia, a venalidade dos representantes é uma doença inserida na prática do sistema democrático, é o seu calcanhar de Aquiles”, observa Viriato Soromenho-Marques. “A necessidade de vigilância está na génese do sistema democrático no domínio constitucional, através da separação clara de poderes e a criação de mecanismos de interacção, transformando o corpo legislativo num tribunal como acontece nos Estados Unidos, que leva à remoção de uma pessoa do seu cargo político através de um processo político”, analisa. De que o expoente máximo é o impeachment.

Da Operação Marquês, o catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa anota vários falhanços no crivo democrático. “O Parlamento tem de criar uma comissão de análise do curriculum dos deputados, é uma questão de segurança dos cidadãos que, quando votam em alguém, votam, por definição, numa pessoa de bem”, anota.

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“A Constituição dá aos partidos o monopólio de representação para o Parlamento. O PS falhou redondamente, não foi capaz de analisar o perfil e a informação objectiva de quem foi seu secretário-geral e candidato à direcção do Governo”, prossegue Soromenho-Marques. “Falhou quem com ele colaborou, há um colapso moral perante uma personalidade dominante”, sustenta. “Houve, também, um desarme da sociedade pela forma como a elite económica colaborou no bloco central dos interesses”, sublinha. “Quando as instituições funcionam no espirito constitucional, com o Parlamento a funcionar rigorosamente, não consideram que quem foi eleito está à margem do escrutínio”, repara.

Contudo, Viriato Soromenho-Marques refere que há um antes e depois das acusações ao ex-primeiro-ministro. “O grau de visibilidade deste assunto deixa-nos numa situação de alarme e prevenção, não é uma garantia mas uma oportunidade”, assegura. “Isto não pode ser esquecido, é o espelho da nossa sociedade”, sentencia.

“Hoje, o cidadão é mais exigente”, corrobora Carlos Jalali. “Temos uma opinião pública mais qualificada na forma como interpreta estas situações, há sinais de mais exigência da sociedade civil, de menos âncora nos partidos políticos, para colocar estas questões na agenda política”, conclui.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

SECAS QUE TRANSFORMARAM CIVILIZAÇÕES


Filipe Duarte Santos



Secas que transformaram civilizações e a seca em Portugal

Há muitos exemplos de secas que provocaram colapsos e transições civilizacionais.

16 de Novembro de 2017

No Egipto, o ciclo exterior mais importante, para além do movimento aparente diurno do Sol, era a cheia anual do Nilo que inundava e fertilizava os campos preparando-os naturalmente para as culturas agrícolas essenciais à vida das populações. As três estações do ano correspondiam às três fases fundamentais daquele ciclo. A primeira, chamada Akhet ou inundação, começava com a inundação cíclica do vale do Nilo no princípio do Verão provocada pelas chuvas das monções na região da Etiópia e do alto Nilo e durava de Junho a Setembro. A segunda, chamada Peret ou crescimento, era o período das sementeiras, do ressurgimento da vida vegetal e animal e coincidia com os meses de Outubro a Janeiro. Finalmente, Shemu ou águas baixas era a fase das colheitas de Fevereiro a Maio.

Embora o início da cheia anual do Nilo fosse previsível, a altura máxima que as águas atingiam era muito variável e imprevisível. Cheias muito altas eram destrutivas e podiam devastar povoações e infraestruturas ribeirinhas. Em contrapartida, as cheias fracas diminuíam a produção agrícola e podiam causar a fome generalizada. O progresso da cheia era essencial para planear o novo ano e provavelmente para calcular o valor dos impostos nesse ano.

Os sacerdotes dos templos alimentavam a fama de predizerem a altura das cheias anuais e mediam a altura das águas do Nilo por meio de nilómetros. Alguns deles perduraram até à atualidade, tais como os de Elephantine, Edfu, Esna, Kom Ombo, Dendera e Thmuis. São formados por corredores com escadarias que conduzem ao rio e cujos degraus vão ficando submersos com o avanço da cheia ou poços ligados por um túnel ao rio e acessíveis também por uma escadaria. Os nilómetros foram usados durante mais de 5000 anos e existem registos escritos do nível das águas do Nilo durante grande parte desse período, especialmente nos últimos 14 séculos. A análise destes dados permitiu concluir que a variabilidade das cheias no Nilo está correlacionada com o fenómeno da Oscilação Sul – El Niño.

A monção da África Oriental é a principal origem da precipitação que alimenta o Nilo através das águas do Nilo Azul. Na situação de El Niño, as águas do Pacífico equatorial leste estão anormalmente quentes, o que gera movimentos ascensionais na atmosfera e chuvas intensas, enquanto na região ocidental, incluindo o Índico, geram-se movimentos descendentes anómalos que enfraquecem a monção e provocam secas no planalto da Etiópia, onde nasce o Nilo Azul, e caudais muito baixos no Nilo Azul e no Nilo. Com a construção de barragens, o nível das águas do Nilo deixou de estar correlacionado com o El Niño, mas a análise dos registos históricos das cheias desde o ano de 622 permite concluir que a maior frequência de eventos de El Niño observada desde os finais da década de 1970, durante cerca de quatro décadas consecutivas, relativamente aos períodos anteriores, é provavelmente uma anomalia provocada pelas alterações climáticas antropogénicas (Trenberth, 1996). Projeções baseadas em cenários climáticos indicam que os eventos extremos de El Niño e de La Niña se vão tornar progressivamente mais frequentes com as alterações climáticas (Wang, 2017).

Após o final do Império Antigo, cerca do ano de 2150 a.C. e durante duas ou três décadas, as cheias do Nilo diminuíram drasticamente, as areias invadiram parte do vale do rio, o lago de Faiyum secou, os solos do delta degradaram-se, a fome estendeu-se por todo o Egipto e paralisou as instituições políticas, semeando o caos. Na parte biográfica das inscrições do túmulo de Ankhtifi, governador de Edfu e Hierakonpolis na IX dinastia, lê-se que “todo o país ficou como se fossem gafanhotos à procura de comida”. As pessoas eram levadas a praticar atrocidades tremendas devido à fome, incluindo, muito provavelmente, o canibalismo. Houve templos vandalizados e saqueados e estátuas destruídas. A governação centralizada do faraó colapsou e os governadores das várias regiões passaram a assumir o poder a nível local e a guerrear-se. Iniciou-se o chamado Primeiro Período Intermediário da história do Egipto. Porém, passados cerca de 100 anos, a governação centralizada ressurgiu com a reunificação do Egipto realizada pelo faraó Mentuhotep II, cujo reinado iniciou o Império do Meio e durou de 2055 a 1650 a. C.

A profunda crise que afetou o Egipto gerou um novo quadro político caracterizado por uma maior sensibilidade para as questões sociais, a misericórdia e a compaixão. Esta terá sido provavelmente a primeira vez na história das civilizações que um governo, baseado numa hierarquia forte e centralizadora, adotou, embora sob uma forma embrionária, conceitos sociais de equidade que impunham ao faraó proteger os mais fracos e pobres na sociedade, especialmente em períodos de adversidade. Mais tarde, estes conceitos e práticas floresceram sob diversas formas com o cristianismo e o islamismo. Uma das manifestações mais claras da transição para novas formas de igualdade foi tornar a imortalidade acessível a todos e não apenas ao faraó e às elites dos dirigentes e sacerdotes. A fórmula encontrada foi considerar todos iguais assumindo que, para efeitos de acesso à imortalidade, cada um é um faraó. Os detalhes práticos sobre como aceder à imortalidade estavam escritos no interior dos sarcófagos.

Dados paleoclimáticos revelam que entre 2350 e 1850 a.C. houve períodos de secas severas em várias regiões do mundo, uma das quais originou os níveis muito baixos do Nilo no Egipto a partir de 2200 a.C. Outras regiões afetadas foram a América do Norte, o Mediterrâneo, o Médio Oriente, África Oriental, Índia e a China. É muito provável que essas secas tenham sido a causa principal do colapso do Império Acádio na Mesopotâmia e da cultura Liangzhu, a última do jade no delta do rio Iangtzé, na China, na região onde hoje está Xangai. A mudança climática para um clima mais seco há cerca de 4200 anos deu-se também na Península Ibérica na Idade do Bronze e está na origem de umas construções intrigantes em pedra que se encontram na região de Castilla La Mancha, em Espanha, próximo de Ciudad Real, chamadas Motillas. Investigações arqueológicas nos últimos anos levaram à conclusão que as Motillas eram edificações destinadas a aproveitar as águas subterrâneas e a armazenar água e cereais numa época de grande aridez. Na Motilla de Azuer encontrou-se um poço com cerca de 4000 anos, provavelmente o mais antigo da Península, que permitia ir buscar água a um nível freático profundo. A construção dos poços na cultura das Motillas foi uma solução de sucesso para fazer face à seca, que contribuiu para impulsionar a transição para uma sociedade mais complexa e estruturada. Quanto à origem do evento climático de seca de há 4200 anos sabe-se ainda muito pouco. Poderá estar relacionado com variações da temperatura superficial no Oeste do Pacífico, Índico e no Atlântico Norte. 

Há muitos outros exemplos de secas que provocaram colapsos e transições civilizacionais. No período de 750 a 900 d.C. deu-se o colapso da civilização Maia Clássica que resultou em parte de períodos de seca prolongados. Situação análoga deu-se com o Império Tiwanaku entre 1000 e 1100 d.C. e com o Império Khmer baseado em Angkor, no Camboja, nos séculos XIV e XV.

Recentemente houve uma seca na região da Síria que durou 15 anos, de 1998 a 2012, tendo sido a mais intensa dos últimos 500 anos (Cook, 2016). As suas consequências contribuíram para criar as condições que levaram à guerra civil iniciada em março de 2011, que matou entre 331 e 475 milhares de pessoas e levou cerca de 5,1 milhões de refugiados a abandonarem a Síria.

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Devido às alterações climáticas antropogénicas, a média decadal da precipitação anual tem estado a diminuir no Mediterrâneo, especialmente na Península Ibérica, Península Balcânica e região do Médio Oriente, onde se encontra Israel, Jordânia, Palestina e Síria. As secas estão a tornar-se mais frequentes e prolongadas e a seca na Síria insere-se nesta tendência, que tende a agravar-se. A severidade da seca que afeta atualmente grande parte da Península Ibérica é muito provavelmente mais uma manifestação das alterações climáticas.

Nos últimos 13 meses, desde outubro de 2016 a outubro de 2017, não houve um único mês em que uma parte de Portugal Continental não estivesse na situação de seca. O melhor mês foi março de 2017, em que apenas algumas regiões tinham seca fraca. Em Portugal, a seca é já gravíssima e não sabemos quando irá terminar. Pode chover abundantemente este inverno ou haver apenas chuva fraca. As consequências desta última hipótese são preocupantes e urge estar preparados para as enfrentar. Aquilo que sabemos com bastante segurança é que se o Acordo de Paris não for cumprido, o centro e sul da Península Ibérica irão tornar-se perigosamente áridos. É necessário adaptar-nos às alterações climáticas e termos planos de contingência de médio e longo prazo adequados para diversos cenários futuros.





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Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa


sábado, 11 de novembro de 2017

NÃO CULTIVAMOS A MEMÓRIA


Hoje, 11 de Novembro, indignam-se muitos pelo facto de se ter permitido um jantar de negócios no Panteão Nacional.
Sim, para mim é chocante.
Mas hoje também faz anos que terminou a I Guerra Mundial. Portugal nela participou e nela morreram mais de 10.000 militares. Não vi qualquer referência nas tv´s a esta data.
Os nossos mortos morrem várias vezes, mas a que mais dói é o esquecimento e a indiferença a que são votados. Como vivi vários anos fora do país assisti anualmente lá fora às cerimónias evocativas do horror que foi esta guerra.
Quando era jovem recordo que havia um sobrevivente da IGM, o "cabo 18", que tinha sido gazeado pelos alemães e sofria de  perturbações por esse facto.

Em VRSA a História também não tem memória. Os seus mortos nas guerras mundiais, na Guerra Civil de Espanha ou nas Guerras Coloniais não existem, evaporaram-se, nem direito a uma simples placa ou nome de rua tiveram. O mesmo em relação aos democratas que lutaram contra a ditadura.

Será que algum dia a autarquia ou algum eleito se lembrarão de, ainda que tarde, remediar tal ingratidão?

Junta-se umas notas sobre a IGM.


Dia do Armistício é o aniversário do fim simbólico da Primeira Guerra Mundial em 11 de novembro de 1918. A data comemora o Armistício de Compiègne, assinado entre os Aliados e o Império Alemão em Compiègne, na França, pelo fim das hostilidades na Frente Ocidental, o qual teve efeito às 11 horas da manhã — a "undécima hora do undécimo dia do undécimo mês". Apesar de esta data oficial ter marcado o fim da guerra, refletindo no cessar-fogo na Frente Ocidental, as hostilidades continuaram em outras regiões, especialmente por entre o Império Russoe partes do antigo Império Otomano.

No total, mais de 70 milhões de militares, incluindo 60 milhões de europeus, foram mobilizados. A guerra causou quase 10 milhões de mortos e deixou 20 milhões de mutilados.

O armistício de 11 de novembro de 1918 marcou para sempre a rendição da Alemanha e o fim da Primeira Guerra Mundial. 

Portugal, que não se envolveu na Segunda Guerra Mundial, esteve na Primeira, em duas frentes: em África, em 1915, defendendo Angola e Moçambique dos “apetites” dos alemães, e em França, a partir de Fevereiro de 1916, depois de um decreto do governo português, a pedido da Inglaterra, ter apresado 70 navios germânicos e dois austro-húngaros que estavam em águas territoriais portuguesas. Como consequência, Guilherme II apresentou a declaração de guerra ao governo português, em 9 de Março de 1916.

Iniciava-se assim a participação formal de Portugal na Primeira Guerra Mundial que, muito em breve, arrastaria o Corpo Expedicionário Português para as trincheiras da Flandres. Estiveram mobilizados neste conflito cerca de 200 mil homens e o número de mortos foi superior a 10 mil, para lá dos milhares de feridos e de soldados que ficaram mutilados, com incapacidades permanentes ou foram vítimas dos gases utilizados na frente de combate, que causavam danos psicológicos e intelectuais perenes. O esforço de guerra, a nível interno, foi o começo do fim do regime da I República, não conseguindo a unidade nacional e levando, pelas consequências económicas, a uma situação de quase bancarrota, instabilidade política e ao golpe militar de 1926, com o fim da democracia. 


terça-feira, 17 de outubro de 2017

Passadas as eleições municipais têm saído alguns artigos de reflexão sobre os partidos políticos e a sua relação com a Democracia.
Divulgo dois que são pertinentes a meu ver.

 “Neste momento os partidos têm todo o poder e os cidadãos nenhum”
A politóloga Marina Costa Lobo é uma das organizadoras de um seminário hoje em Lisboa onde se debaterá a reforma do sistema eleitoral português. Será o voto preferencial a solução para aproximar eleitores e eleitos?
9 de Outubro de 2017
Marina Costa Lobo: “A proposta que fazemos obriga os partidos a ouvirem mais os cidadãos”

Marina Costa Lobo é uma das organizadoras do seminário Sistema Eleitoral Português: Problemas e Soluções, organizado pelo Institute of Public Policy – Thomas Jefferson-Correia da Serra e que acontece hoje em Lisboa. Com alguns constrangimentos por estar no estrangeiro no dia em que esta entrevista foi feita, a politóloga disse ao PÚBLICO, por email, que gostava que, no fim da discussão, se tivesse dado mais um passo no sentido da reforma de um sistema eleitoral a que reconhece virtudes mas que está longe de favorecer a relação dos cidadãos com a política.
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No seminário de que é uma das organizadoras vai debater-se o sistema eleitoral português. Que problemas identifica?
O sistema eleitoral português tem virtudes: é suficientemente proporcional para permitir a representação alargada de diversos partidos no Parlamento. Ao mesmo tempo que consegue reproduzir bastante bem a diversidade ideológica dos portugueses, não produz uma representação tão fragmentada que impeça o aparecimento de governos estáveis. Dito isto, embora o sistema cumpra estes objectivos fundamentais, também é verdade que o sistema eleitoral falha na criação de uma relação mais directa entre eleitores e eleitos, na medida em que votamos em listas, em vez de candidatos. De facto, Portugal é um dos poucos países europeus que não permite um voto nos candidatos a deputados pelos cidadãos. Na maior parte dos países da União Europeia é permitida alguma expressão das preferências dos eleitores. Isso não acontece em Portugal — aqui, os partidos têm o monopólio da escolha dos candidatos a deputados. Penso que isso tem de mudar, e propusemos [através do voto preferencial] uma forma de o fazer sem colocar em causa nem a proporcionalidade da representação parlamentar, nem a estabilidade do governo.

Quais as possíveis soluções?
A solução mais vezes proposta para aumentar a proximidade entre cidadãos e eleitos tem sido a introdução de um modelo que combine deputados eleitos de forma proporcional com outros eleitos de forma uninominal (isto é, em círculos onde se elege apenas um deputado). Assim, a parte proporcional garante a representação diversificada parlamentar e a parte uninominal garante a relação de proximidade entre eleitor e eleito. Acontece que, em Portugal, a fórmula d'Hondt utilizada no nosso sistema eleitoral está inscrita na Constituição. Não se pode alterar o sistema eleitoral de forma aprofundada — no sentido acima proposto — sem uma revisão constitucional aprovada por uma maioria dos deputados, e esse consenso não existe. Na proposta que elaborámos para o Institute of Public Policy – Thomas Jefferson-Correia da Serra propomos a introdução do voto preferencial, o que significaria que os cidadãos votariam num candidato da lista ordenada pelos partidos. Através de uma sondagem à boca das urnas verificámos que, mesmo em círculos como Lisboa, os cidadãos são capazes de votar em candidatos. Esta solução mantém a fórmula d'Hondt e, por isso, não implica uma revisão constitucional, e quebra o monopólio dos partidos na escolha dos deputados à Assembleia da República. Pensamos que isto é salutar do ponto de vista da relação entre cidadãos e partidos — neste momento os partidos têm todo o poder, e os cidadãos nenhum. Embora não creia que esta medida seja naturalmente suficiente para acabar com a abstenção para Portugal, estou convencida que, dando responsabilidade aos cidadãos, contribuímos para diminuir a distância entre eleitores e eleitos, o que pode aumentar a opinião sobre a democracia.
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Devia haver uma reforma do sistema eleitoral?
Sim. Em grande medida, a insatisfação dos cidadãos com a política tem razões económicas, mas também é explicada pela forma como os cidadãos vêm as nossas instituições. A falta de convergência com a Europa e a austeridade recente explicam muito do descontentamento, mas a forma como os partidos se têm blindado nas instituições também é uma fonte de ressentimento. A proposta que fazemos obriga os partidos a ouvirem mais os cidadãos na hora de escolher os deputados.
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Algum descontentamento dos cidadãos em relação à política terá a ver com esses problemas do sistema eleitoral?
A reforma do sistema eleitoral não será uma panaceia para resolver a insatisfação com a democracia, nem a abstenção. Mas seria sem dúvida uma forma de demonstrar a maturidade da relação do poder político com a sociedade, reconhecendo um papel maior aos cidadãos para escolherem os candidatos.
Por que razão é difícil chegar a um consenso? Nem na política, nem na academia...
Julgo, apesar de tudo, que existe um consenso maior na academia do que na política. Penso que os académicos convergem para um modelo misto, do tipo alemão, embora possam divergir nos detalhes. Os políticos não fazem uma reforma do sistema eleitoral, pois foram eleitos com este sistema, e temem alterar as regras do jogo e perder com isso. No entanto, julgo que também se converge para a ideia de que o afastamento dos cidadãos em relação à política é um dos grandes falhanços do sistema político português.
Que nomes destacaria entre os que vão marcar presença no seminário e contribuir para a reflexão?
Carmen Ortega, a maior especialista do voto preferencial na Europa, virá ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa apresentar as vantagens e desvantagens de dar aos cidadãos a possibilidade de escolher os candidatos nas listas partidárias. Pedro Riera, professor de Ciência Política na Universidad Carlos III de Madrid, especialista em sistemas eleitorais, irá apresentar o estado do debate sobre a reforma do sistema eleitoral em Espanha. Teremos 
André Freire, Conceição Pequito e eu a apresentar propostas sobre reforma do sistema eleitoral e as melhores soluções para a reforma do sistema eleitoral em Portugal. De seguida, convidámos um conjunto de políticos que se interessam pelo tema e que são representativos da diversidade ideológica em Portugal para nos darem a sua perspectiva sobre problemas e soluções para a reforma do sistema eleitoral em Portugal.


João Pedro Castro Mendes

Em defesa do pluralismo
A diabolização dos partidos políticos em nada ajuda a saúde da nossa democracia.
16 de Outubro de 2017

Deparamo-nos, com elevada frequência, com ataques à “ideologia”. “Ideológico” tornou-se um insulto, uma forma de desqualificar posições contrárias. As posições dos outros são “ideológicas”. As nossas são verdades insofismáveis. As “ideologias” seriam coisa do passado. Interessariam os debates técnicos, sobre como implementar as únicas boas ideias: as nossas.

Mas a política é feita de ideologias. E todos temos uma ideologia. Todos temos uma hierarquia de valores e princípios que se traduzem, de uma forma mais ou menos pensada e estruturada, numa conceção acerca de como deve ser organizada a comunidade e de qual a relação que deve ser estabelecida entre esta e os seus membros. Num debate político, as posições em confronto têm subjacente uma ideologia, quer esta seja assumida, quer não. E ao discutir as políticas públicas, o debate político é necessário, não basta o debate técnico.
A diabolização das “ideologias” é um ataque frontal ao pluralismo. As “tecnocracias” não são mais do que tentativas de afirmar que certas opiniões (subjectivas), subjacentes a uma determinada política pública, são verdades (objetivas). Confundir opções políticas com necessidades técnicas faz deteriorar o confronto de ideias necessário para o regular e saudável funcionamento de uma democracia liberal, assente na liberdade de pensamento, de expressão e de associação.

Da mesma forma, a diabolização dos partidos políticos em nada ajuda a saúde da nossa democracia. Os indivíduos são a base da comunidade, mas não existem de forma atomística, mas sim estabelecendo relações uns com os outros, em torno de interesses (e ideologias) comuns ou similares. Os partidos políticos mais não são do que associações organizadas para facilitar que os seus membros ou aliados obtenham e mantenham posições de poder. Neste sentido, a oposição dos “partidos políticos” aos “cidadãos”, por vezes feita, é perniciosa, e em nada ajuda a resolver os problemas dos “aparelhos partidários” e do carreirismo político.
Os “partidos políticos” não se opõem aos “cidadãos”, são uma forma de os cidadãos se organizarem politicamente (os “movimentos independentes” mais não são do que partidos locais, com outro nome e sem as benesses dos partidos nacionais). E aqueles que, sendo membros dos partidos, fazem da política profissão, são tão cidadãos como os outros.
Importa promover maior adesão aos partidos e facilitar a criação de novos partidos, que façam concorrência efetiva e possam constituir um verdadeiro desafio aos partidos já existentes. Importa promover uma concorrência efetiva entre diferentes projetos para o país, corporizados em diferentes partidos políticos (algo a ter em conta no contexto da atual disputa pela liderança do PSD), mantendo sempre a possibilidade de cooperação, quando necessário (em coligação ou através de acordos parlamentares).
O problema não está na existência de partidos políticos, que emergem naturalmente, com esse ou com outro nome, formal ou informalmente, em qualquer democracia. O problema está na forma como estão regulamentados em Portugal, do ponto de vista da sua criação e do seu financiamento, que criam importantes barreiras à entrada de novos partidos e à sua sobrevivência.
A criação e manutenção de um novo partido não é fácil. Primeiro, é necessário recolher 7500 assinaturas. Este requisito, na prática, não é mais do que um primeiro entrave burocrático, sem substrato material relevante. Implica passar meses a recolher e organizar assinaturas e dados pessoais dos signatários, para as entregar ao Tribunal Constitucional, juntamente com os estatutos, uma declaração de princípios ou programa, e outros elementos. Para quê pedir 7500 assinaturas? Por que não pedir apenas os estatutos, o programa e os nomes e dados pessoais dos fundadores? Constituir um partido, devia ser simples. Quase devia ser possível existir um “partido na hora”, como existe uma “empresa na hora”.
Depois, sendo aceite o partido, por não ser considerado fascista ou racista ou por não utilizar símbolos religiosos, é necessário manter esse partido em funcionamento, o que implica recursos humanos e dinheiro. Seria importante estudar se o benefício conferido pela legislação sobre financiamento partidário aos partidos que já têm representação parlamentar e já existentes é excessiva e outros métodos de financiamento partidário.
Por outro lado, uma coima do Tribunal Constitucional derivada do incumprimento de regras relacionadas com a contabilidade partidária tem pouca relevância para partidos grandes, mas relevância significativa para partidos pequenos.
Na prática, com o atual enquadramento relativo ao financiamento dos partidos, torna-se crucial que o partido comece com um número relevante de pessoas já organizadas, e com capacidade para financiar o partido de forma estável, até este conseguir acesso a uma subvenção pública (veja-se a diferença entre o MEP e o PAN).
É necessário reabilitar as ideologias e os partidos políticos. Assumir que, subjacente a uma opção política, está uma opção ideológica, pelos diversos agentes políticos. Promover um debate político informado, mas não dominado, pela técnica. Diminuir as barreiras à entrada de novos partidos políticos e diminuir os custos de contexto relativos à sua manutenção.
Mas é preciso mais ainda: é preciso colocar na agenda política a reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República (como fez recentemente o IPP, num seminário), dado que, atualmente, dificulta desnecessariamente as candidaturas e, embora proporcional, beneficia os partidos com mais votos, e uma verdadeira educação cívica, que promova uma cultura de debate (e não de “respeitinho”) e promova a intervenção informada dos cidadãos, fora e dentro dos partidos.
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O pluralismo confere vigor a uma democracia. O confronto e o debate de ideias levam a um maior escrutínio e maior responsabilização dos agentes políticos e das políticas públicas propostas ou implementadas. Todos beneficiamos do pluralismo. E a todos nos compete defendê-lo e promovê-lo. 
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
O Institute of Public Policy (IPP) é um think tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não reflectem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa ou de qualquer outra instituição.
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Associado do IPP e vogal do Conselho Consultivo do IPCG (Instituto Português de Corporate Governance)

terça-feira, 26 de setembro de 2017

O PERIGO DE GUERRA É REAL






PPires Trump e as fragilidades da democracia

O confronto com o problema da Coreia do Norte revela-se como um exemplo lapidar do perigo público que Trump parece materializar.

26 de Setembro de 2017

Vivemos numa sociedade ocidental que acredita que sedimentou e aperfeiçoou definitivamente o conceito e o modelo de democracia. Não reconhece que o que hoje vemos é ainda uma fase da infância da plena democracia. Provavelmente dentro de um século a democracia terá sido bem mais amadurecida e aperfeiçoada e olhar-se-á esta presente fase como um embaraçoso exercício de arqueologia política. Não, a democracia é muito mais que uma frenética luta por votos lançados numa caixa, entre opções de sectárias máquinas de interesses que se enquistam por detrás de cada símbolo.

A genuína democracia tem que ser muito mais profunda, pura e assente nos cidadãos, que constituem a inalienável base deste conceito e da sociedade. Corruptos e medíocres proliferam nos bastidores da “democracia” atual (muitos são enaltecidos por telejornais e por parte da comunicação social) e apenas alguns países como os escandinavos têm uma cultura sistémica contrária a esta deficiente vivência que agora prevalece no Ocidente. Na história democrática contemporânea não faltam ditadores em diversos graus, eleitos.

Eleições e votos em máquinas partidárias frequentemente convencem estas de que democracia é uma atribuição de poderes ditatoriais aos vencedores, induzindo abusos, perversões e prepotências. Por exemplo, muitos “vencedores” tendem a supor que estão investidos do linear poder de, publicando leis que lhes interessam, “legalizar” o que é ilegítimo e mesmo imoral. É, de facto, uma mentalidade ditatorial assente em votos. Democracia é uma perceção diferente.

Olhando para o nosso país vizinho vejo algo que, sem me surpreender, me assusta. Se eu fosse catalão, há apenas alguns meses teria votado a favor da permanência dessa região em Espanha, embora sempre tenha respeitado a (totalmente legítima) vontade dos independentistas. Mas se eu fosse catalão, hoje votaria, sem hesitação, a favor da independência da Catalunha. Porque a inabilidade e o totalitário comportamento das autoridades centrais espanholas demonstraram, ainda melhor que os independentistas, que esse poder central é, afinal, impositivo, dominador e quase colonial. Temos assistido a um comportamento governamental verdadeiramente tenebroso e absolutamente desastrado. Decretar por leis que a democracia e a vontade de uma enorme comunidade são ilegais é uma perversão da democracia. O Ocidente tem, durante décadas, pregado ao mundo os valores da autodeterminação dos povos, desde que sejam os outros povos, não os seus. Mas na Catalunha e, em geral, no seio da União Europeia, vemos o oposto. Os cidadãos anestesiados não notam. A inconsciência coletiva é uma ameaça ainda maior às democracias.

Ao longo do tempo, os Estados Unidos geraram alguns dos mais vibrantes e intemporais conceitos e passos na formação da consciência democrática. Simultaneamente, foram-se transformando num país que, sucedendo ao predomínio britânico no mundo, se erigiram como principal potência global a partir da Segunda Guerra Mundial.

Quer com ela simpatizemos ou não, objetivamente a sociedade norte-americana atingiu, em muitos aspetos, impressionantes níveis. Trata-se de uma nação que, com apenas cerca de 4% da população mundial, ganhou cerca de 40% dos Prémios Nobel até hoje atribuídos, e é a fonte de grande parte do progresso científico e da criação tecnológica que transformou o planeta nos últimos dois séculos, como continua a fazer. Foi aqui que germinaram a eletricidade, as telecomunicações, o computador, o computador pessoal, a Internet ou a Google, e foi esta a nação que conduziu a Humanidade à Lua. Foi este país que criou o conceito dos parques naturais para preservar enormes áreas de natureza intocada. Esse país com uma população numericamente marginal tornou-se na maior economia do mundo, embora tenha já sido ultrapassada pela China (PIB ppp). O norte-americano é, em média, 45% mais rico que cada cidadão da União Europeia. Tornou-se na maior potência militar do planeta, a única potência literalmente global, com cerca de 800 bases militares em mais de 70 países. Podemos gostar ou antipatizar, mas a realidade norte-americana tem uma dimensão extraordinária que só é possível com um povo corajoso, inventivo e tenaz.

E é este povo que mudou o mundo que, nos seus boletins de votos democráticos, elegeu um presidente como Donald Trump. Após Obama, o contraste dificilmente poderia ser maior. A legitimidade formal desta eleição é incontornável. Como, em graus variáveis, se verifica em grande parte do Ocidente formalmente democrático, os votos “legalizam” mas não legitimam necessariamente.

O respeito pela história inovadora e realizadora dos Estados Unidos impõe alguma repulsa pela forma como Trump tem, de facto, ridicularizado, humilhado e destruído a imagem de liderança e (apesar de erros clamorosos) de referências morais que esse país afirmou no mundo ao longo de gerações. Trump exibe o seu lema “América Primeiro” mas o que eu vejo é a postura “Trump Primeiro, a América Depois”. É difícil imaginar um presidente mais narcisista e menos responsável. Contrariamente ao que muitos pensam, Trump é inteligente e tem uma qualidade que raros políticos possuem, a coragem de inovar ideias e de confrontar interesses instalados na política. Infelizmente, usa essas qualidades de um modo cuja disfuncionalidade seria difícil ultrapassar.

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Este contexto poderia ser apenas intranquilizador se não se tornasse também perigoso. Trump talvez tenha conseguido transformar-se numa ameaça para a paz e a segurança do mundo bem mais preocupante que o irritante líder norte-coreano. Na verdade, o confronto com o problema da Coreia do Norte revela-se como um exemplo lapidar do perigo público que Trump parece materializar. O Presidente norte-americano não perde qualquer oportunidade para provocar, para acirrar, para parecer induzir um real conflito militar, que seria inevitavelmente dantesco e nuclear, um desastre geracional para esses dois países, para toda a Ásia Oriental e para todo o mundo. É uma profunda irresponsabilidade e uma devastadora inabilidade.

Tal como muitos políticos ocidentais “democráticos” que foram eleitos por votos, Trump parece também não compreender que o que permite tornar aparentemente legal à sombra do poder (apenas delegado) dos votos não confere legitimidade à arrogância, ao autoritarismo e ao capricho pessoal. A democracia plena tem ainda imenso para aperfeiçoar antes de ser futuramente atingida.