quarta-feira, 28 de maio de 2014

DEMOCRACIA SEM POVO


Opinião
Como é que se faz reset a esta democracia?
27/05/2014 - 00:50
António José Seguro continua a ser o melhor amigo de Pedro Passos Coelho.
1. A nota mais relevante para o nosso presente e para o nosso futuro, de Portugal e da Europa, para o futuro da democracia. Nas eleições europeias de domingo tivemos em Portugal a mais elevada abstenção de sempre: mais de 66%. E isto num momento histórico em que a importância da Europa no quotidiano de todos nós era evidente e gritante. Não é uma novidade e a maior parte dos países onde o voto não é obrigatório tem níveis de abstenção semelhantes, mas isso não torna o problema menos importante. Pelo contrário, torna-o mais importante.
Apesar dos ocasionais lamentos de circunstância, a maior parte dos políticos olha para este problema com indiferença: “As pessoas podiam ir votar se quisessem. Não foram porque não quiseram. Estão no seu direito. Não votar é uma forma tão aceitável de participar como votar.” É a mesma atitude que tem a direita quando olha para os bairros de lata: “As pessoas vivem neste bairros porque não se esforçam, porque não se preocuparam em estudar e em adquirir as competências que lhes garantam um emprego, porque não se esforçam em encontrar emprego ou em criar o seu próprio emprego, porque não têm ambição.” Trata-se, nos dois casos, do mesmo discurso de exclusão, de justificação da exclusão.
Só que a democracia é o governo do povo. Do povo todo, não apenas dos que votam. E os abstencionistas não abdicam da sua soberania. Escolhem não a exercer neste momento, ou não a exercer desta forma ou são impelidos de alguma forma a não a exercer. E esta soberania por usar é um golpe no flanco da democracia por onde a sua vida se esvai.
Os abstencionistas ou escolhem ficar de fora da democracia, ou escolhem ficar de fora desta democracia, ou são empurrados para ficar de fora desta democracia. Qualquer uma das hipóteses representa uma bomba-relógio no coração da democracia.
Uma das justificações benignas da abstenção é que ela representa “um voto de protesto” contra o sistema, contra os partidos, contra a União Europeia. É uma explicação benigna, porque pressupõe que os abstencionistas se estão a exprimir e que o seu protesto tem consequência. Simula que também eles participam. Só que um protesto que não tem voz não é um protesto, porque nem sequer conseguimos saber contra o que se manifesta.
Esta abstenção é apenas distanciamento, alheamento em relação a esta forma de fazer política e de se fazer ouvir – ainda que não seja indiferença. Este alheamento da democracia por parte da maioria esmagadora do povo não é um pormenor, porque não há democracia sem o povo. A democracia não é uma formalidade. A realização de eleições não chega para definir uma democracia. Uma democracia em que a maior parte do povo não participa nas escolhas não é uma democracia e não há peneira que consiga tapar esta evidência.
Muita desta abstenção vem de pessoas que já foram há muito excluídas do sistema e que não têm razões para confiar na democracia. Pessoas desempregadas, desmotivadas, desesperadas, pobres, abandonadas, sem voz. Ou de pessoas que, simplesmente, não acreditam que seja possível escolher outra coisa, que é outra forma de descrer da democracia.
Não há nenhum projecto mais urgente para a democracia do que recuperar para o exercício da sua soberania as pessoas que não fazem ouvir a sua voz.
2. O PSD-CDS perdeu as eleições, mas não perdeu como merecia. Nem como se esperaria de um governo empenhado no aumento da pobreza, na destruição do Estado social, na pilhagem do património do Estado, na submissão ao capital financeiro e na traição de todas as suas promessas e deveres. A sua suave derrota faz pensar. O que seria preciso para que os portugueses castigassem duramente um governo vende-pátrias?
3. A suave derrota do PSD-CDS é a grande derrota do PS. Se num contexto como o actual o PS não consegue melhor, é porque... não consegue melhor. Isto é o máximo que Seguro consegue, numa descida íngreme, com os apparatchiki a empurrar e com o prego a fundo. Não chega. Seguro continua a ser o melhor amigo de Passos Coelho.
4. A CDU teve uma vitória retumbante que não a levará a lado nenhum. A CDU fez uma boa campanha, discutiu Portugal e a Europa, conseguiu o máximo a que podia aspirar, ajudou a esvaziar o Bloco de Esquerda e está no seu labirinto, sem ninguém com quem falar. Resta-lhe esperar continuar a crescer até chegar um dia aos 40%. A história está do seu lado, diz. Nos seus sonhos mais ousados, onde pensará Jerónimo de Sousa que o PCP poderá estar daqui a dez anos?
4. Marinho e Pinto fez um discurso centrado na ausência de ideologia, no combate à corrupção e ao compadrio dos partidos e ganhou. Se alguma bandeira pareceu mobilizar os leitores nestas eleições, foi esta. Note-se.
5. O Bloco de Esquerda terá percebido que regressar à pureza ideológica da UDP não é a melhor estratégia?
6. O Livre provou que há espaço vazio à esquerda à espera de ser ocupado. Com meia dúzia de semanas de vida, o seu resultado, mesmo sem ter eleito nenhum deputado, é notável.
jvmalheiros@gmail.com


terça-feira, 27 de maio de 2014

AS URNAS POR VEZES RASTEIRAM A DEMOCRACIA!

Os maus políticos são eleitos com os abstencionistas. Esta frase dita muitas vezes só em parte é verdade. A soma da abstenção, mais os votos brancos e nulos dá 73,57 %, isto é, 73 portugueses em 100 não votaram ou não escolheram qualquer dos 16 partidos concorrentes.
O partido abstencionista ganha cada vez mais adeptos, o que é preocupante, esta ausência intencional da vida democrática tem muitas causas e culpados, e deixa nas mãos de poucos a decisão do que iremos ter como economia, trabalho, saúde, reforma etc.
Outra das "boutades" frequente é a afirmação de que a democracia é um mau sistema mas melhor do que todos os outros. Mas a democracia pode e deve ser aperfeiçoada, o que não está a acontecer. Pior, ela vem a ser piorada propositadamente há muitos anos e acentuam-se no horizonte nuvens negras que devemos temer. O avanço da extrema direita na UE é um aviso forte, ou a economia passa a ter as pessoas como centro da sua actividade ou uma economia que coloca as pessoas como serva dos mercados varrerá a democracia como aconteceu noutros períodos históricos. Quando nasci havia a Guerra Civil em Espanha, começava a II Guerra Mundial contra regimes nazis e fascistas, depois disso houve as guerras da Coreia, do Vietname, do Suez, as guerras coloniais e tantas outras.
Ontem escolhemos quem já tinha sido escolhido. Umas dezenas de pessoas, os grupos restritos que têm o poder dentro dos partidos, escolheram os candidatos, e apresentaram os mesmos a milhões de eleitores que só têm duas hipóteses: ou votam neles ou não votam, não há alternativa. Como democracia é pouco.
Os próprios militantes partidários não são chamados a intervir nessa escolha, não têm uma palavra a dizer sobre os candidatos, a alternativa é ou aceitam ou o melhor é saírem.
Em alguns países vários partidos começam timidamente a alterar comportamentos e a tornar mais democráticos os processos de escolha dos candidatos ou dos dirigentes, através de eleições internas, onde para além dos propostos outros se apresentam quer individualmente quer propostos por grupos de militantes. Mais, poucos ainda, até abrem essas eleições internas aos simpatizantes partidários. Como democracia já é um pouco mais, um passo importante na dinamização e democratização da vida interna.
Cá, o único partido que começou a fazer isto é o LIVRE, fazemos voto para que este exemplo seja contagiante.
Em vários países existe a possibilidade de votar num partido mas também em candidatos. Como funciona isto? Os eleitores recebem uma lista de voto com os partidos e colocam a cruz no seu partido, e recebem também uma lista com o nome dos candidatos e podem, por exemplo, votar em três que consideram ser os melhores. No final podem vir a ser eleitos os que estavam no fim da lista ou mesmo nos suplentes e não serem eleitos os que vinham nos primeiros lugares. É um processo mais democrático, possibilita aos eleitores maior campo de escolha.
Como se vê há sempre possibilidades de aperfeiçoar a democracia e tornar os eleitores em cidadãos mais conscientes, responsáveis e participativos.
Em relação às eleições de ontem, dia 25 para o Parlamento Europeu, constata-se que após 28 anos de CEE/UE, a maioria ainda desconhece ou não percebeu para que servem tais eleições. A culpa é de quem? Bom tema par um debate.
Sem entrar em grandes análises e olhando para os resultados eleitorais verificamos que os partidos de esquerda à esquerda do PS, em conjunto perdem um deputado, e dos 21,39% passaram para 17,24%. Afinal perderam, o que nas circunstâncias actuais é mais do que preocupante em relação à presença das esquerdas no PE. A soma de toda a esquerda dá, mais uma vez, mais de 50% de votos, confirmando que a esquerda sociológica e política é maior na sociedade do que a direita, mas por andar sempre dividida e nunca convergir minimamente deixa a direita governar pois inteligentemente se une na defesa dos seus interesses. Minimizou agora a derrota com a Aliança Portugal, o método de Hondt beneficia quem vai junto, como diz o povo na sua sabedoria secular, "a união faz a força".
As esquerdas à esquerda do PS continua com um problema por resolver, continua fraca onde sempre foi fraca e não consegue expandir-se para a maioria das regiões portuguesas. Em 6 dos 20 distritos eleitorais PCP+BE não conseguem obter em conjunto 10%, em mais 6 pouco passam juntos dos 10%. Restam 8, 4 dos quais têm pouca população. Concluindo, são partidos sem implantação nacional.
Finalmente, depois de uma nova vitória eleitoral sobre a direita, no seguimento da vitória autárquica, vão apresentar uma moção de censura a um governo que tem a maioria na AR? A derrota da moção é certa, e vai fazer esquecer a derrota eleitoral da direita. Para quê? Não percebo, como dizia o diácono dos Remédios, não havia necessidade.



quinta-feira, 15 de maio de 2014

MISÉRIA MORAL EM TEMPO ELEITORAL

Opinião
Miséria social, miséria moral: mais pobres, mais frágeis
06/05/2014 - 02:57
A grande herança do Governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo.
Voltaire dizia que “quase toda a História é uma sequência de atrocidades inúteis”. A frase adapta-se como uma luva ao “programa de ajustamento” a que Portugal foi submetido nos últimos anos pelo Governo de Passos Coelho, pelos seus “parceiros” europeus e pelo FMI. As atrocidades a que fomos submetidos não são os horrores da guerra que estavam na mente do filósofo francês, mas continuam a ser as velhas misérias sociais e um novo tipo de miséria moral de que Passos Coelho ou Paulo Portas são simultaneamente propagandistas e exemplos.
As misérias sociais estão à vista: desemprego, precariedade, subemprego, emigração forçada, salários mais baixos, pensões mais baixas, aumento da pobreza e da miséria extrema, mais pessoas sem qualquer rendimento e sem apoios sociais, mais crianças pobres, mais velhos pobres, mais crianças com fome, menos acesso à saúde, menos acesso à educação, mais abandono escolar, menos serviços públicos, mais depressão.
A miséria moral é aquela que foi sendo insidiosamente instilada na sociedade pela atitude do poder e pelo seu discurso, pelo seu recurso despudorado à mentira sistemática tornada banal, pelo seu uso da desconfiança como instrumentos de manipulação do público.
Não é surpreendente que, depois de Passos Coelho, de Paulo Portas, de Miguel Relvas, de Maria Luís Albuquerque, de Poiares Maduro tenhamos passado a considerar comum a falta de honorabilidade dos governantes, fazendo crescer o descrédito na democracia. Hoje vê-se como inevitável a promiscuidade entre políticos e negócios e aceitamos que a verdade, como antes acontecia na guerra, seja a primeira baixa da política.
O Governo conseguiu difundir uma cultura de desprezo pelos velhos e pelos doentes, apresentando-os como gastadores de recursos sem préstimo e como abusadores dos direitos sociais. Conseguiu impor um clima de confronto entre desempregados e trabalhadores, apresentando a estabilidade de emprego como pecaminosa e um obstáculo à competitividade. Conseguiu lançar uma guerra de gerações entre velhos “privilegiados” por terem pensões e jovens a quem foi dito que estavam em risco de nunca receber reformas devido aos “privilégios” dos seus pais e avós. O Governo conseguiu minar consensos sociais laboriosamente construídos ao longo de 40 anos de democracia, como o acordo sobre a necessidade de investir na escola inclusiva, na formação de alto nível e na investigação – que passou a ser referida na narrativa oficial como uma actividade “pouco produtiva” e longe da “economia real”. O Governo conseguiu apresentar sistematicamente a máquina do Estado como uma “gordura” improdutiva, um aparelho inútil e despesista, formado por burocratas preguiçosos e incompetentes, pondo trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos e destruindo uma filosofia de serviço público e uma ética de trabalho com séculos de consolidação, para melhor desmantelar o Estado social. E impôs por todos os meios possíveis a agenda neoliberal segundo a qual o trabalho é uma mera mercadoria sem dignidade particular, cujo valor deve ser tão reduzido quanto possível.
A miséria moral que este panorama evidencia pode ser menos visível do que os dramas da pobreza, mas é infinitamente mais grave, porque abre fracturas de hostilidade e desconfiança na sociedade que levam muitos anos a reparar.
O sucesso ímpar do Estado social após a Segunda Guerra Mundial não se deveu apenas aos serviços que o Estado fornecia, mas ao clima de estabilidade e de cooperação, de confiança nos outros e no futuro que esses serviços possibilitaram. O grande sucesso do Estado social foi a derrota da insegurança e do medo – do medo da doença, do desemprego, do futuro.
A grande herança do governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo e da insegurança como elemento central da vida social e como instrumento estatal de “regulação social”. E, com ele, a desconfiança e a desesperança. Dividir para reinar é uma receita eficaz, como todos sabemos.
E a grande herança do Governo PSD-CDS na prática política é a crescente banalização da mentira e a glorificação do despudor. O sofrimento não nos deixou melhor do que antes. As atrocidades só serviram os saqueadores.
A “saída limpa” que o Governo anunciou este fim-de-semana não é nem uma saída nem limpa, como qualquer pessoa com um mínimo de honestidade admite – porque a fragilidade da nossa situação financeira é igual ou pior do que era, porque permanecemos submetidos a uma tutela externa com direito de veto de facto das políticas nacionais. Mudámos apenas de suserano: antes eram os nossos “parceiros” europeus, amanhã serão os “mercados”. A diferença entre um “programa cautelar” e uma “saída limpa” é a que existe entre o lume e a frigideira. A chantagem é a mesma, apenas muda o agente. E a instabilidade é maior.
Quando a UE refere os “progressos impressionantes” que Portugal realizou, faz um exercício de hipocrisia. Estamos economicamente mais pobres e socialmente mais frágeis. Mais temerosos e mais divididos. Só pode achar que isto é um sucesso quem tivesse este objectivo.
jvmalheiros@gmail.com



A ECONOMIA IMORAL


Opinião
Da Economia como ciência pragmática
Por Fernando Belo
12/05/2014 - 01:22
As crises são as sociedades a tornarem-se laboratórios exibindo o que falta às ciências.
1. Um velho texto de António J. Esteves, sociólogo da Universidade do Porto, que evoca as engenharias como “ciências de projecto” de Herbert Simon para incluir nelas a Economia, trouxe-me algo que procurava há vários anos.
Segundo ele, “a determinação de ‘como as coisas podem ser’ e de ‘como devem ser’ para a realização de determinados objectivos delimita um conjunto de saberes que não se resumem às disciplinas científicas nem à sua ‘aplicação’”, diz Esteves, o projecto da Economia devendo ser “uma nova politica de bem estar social para um Estado” (H. Simon) (1). Ciência de acção e portanto de mudança, pragmática assim, a sua verdade consistirá na transformação que ela consiga operar nas estruturas sociais sobre que incide, implicando a definição de objectivos.
2. Era esta descrição que me escapava, modesto fenomenólogo praticante de filosofia com ciências. Sendo uma ciência dos mercados, a economia é apenas uma ciência social entre outras que a ausência duma ciência global das sociedades capitalistas levou a ocupar esse lugar, indevidamente por certo mas a apelo do vazio. O seu carácter sectorial implica que os ‘objectivos’ a reconhecer-lhe não dependem exclusivamente dela mas de algo que a ultrapassa: a dupla grande crise que atravessamos, económica - financeira e climática, orienta o nosso olhar para o mais largo objectivo da Economia, a perpetuação da espécie humana, posta em questão por duas questões dramáticas, o enorme desemprego jovem (que futuro daqui a 30 anos?) e as consequências da progressiva alteração dos climas (que futuro daqui a 100 anos?). Estas duas questões impõem à Economia a consideração da nossa condição biológica como axioma imperativo, se dizer se pode: qualquer animal tem como problemas principais comer e proteger-se de ser comido e a sociedade começa por ser uma forma cooperativa mais económica de enfrentar esses problemas. No que dependa da Economia, há que garantir a alimentação (o “bem estar social” de que falava Simon, a que chamamos na Europa o Estado social) e a protecção de todos os cidadãos, a nossa liberdade (o Estado de direito). O imperativo estende-se à salvaguarda do planeta que nos dá a vida: a este nível, de que não me ocuparei, o papel da Economia será nomeadamente o de remover obstáculos derivados da arbitrariedade da especulação financeira.
3. Ora, a Biologia oferece também uma espécie de modelo para delinear os objectivos da Economia, à maneira da Medicina. Sabemos hoje que há uma inter-relação entre a determinação genética que diz respeito à reprodução das moléculas de cada célula do organismo e a circulação do sangue (que as alimenta a todas elas), a qual, instável, deve ter uma estabilidade homeostática cujos limiares, máximo e mínimo, são o objectivo médico, a nossa saúde: tensão arterial, seus teores variados (análises de sangue), mormente os de nutrientes e oxigénio. Para o que nos interessa aqui, este imperativo da saúde cifra-se em não se comer nem de mais nem de menos. O que nos tem chocado a todos nesta crise é ver-se a maior parte da população ser despojada mais ou menos brutalmente do que tem para viver, muitos do emprego, outros de parte do salário ou da pensão, enquanto que os muito ricos enriquecem e põem os capitais a darem dividendos lá fora.
4. O escândalo é que, aos olhos da Economia, isto parece ser apenas algo de lamentável, nem sequer ‘imoral’: o argumento com que nos enchem os ouvidos é o da ‘credibilidade’ junto dos grandes capitais especulativos, ditos ‘mercados’ (como se fossem honestas mercearias). Ou seja, este baixar até à miséria de milhões de pessoas e a grande riqueza de poucos milhares não é nada que pareça dizer respeito à Economia enquanto ciência, algo que é deixado como preocupação aos políticos. Nela não haver respeito pelos limiares mínimos e máximos da Economia, faltar no seu arsenal axiomático o que define os seus objectivos enquanto ciência da ‘habitação’ (oikos, casa). No entanto, a crise ilustra como proceder na homeostasia social, na estabilidade instável (Prigogine) das conjunturas: garantir os mínimos (o Estado social) – que deverão ir até ao pleno emprego, diminuindo as horas de trabalho de todos para que todos o tenham – e corresponder a essas despesas com impostos (é a social-democracia) sobre a propriedade ‘privada’ (do social), a qual só vale por essa ‘privação’ que lhe dá contexto (ou seja, os impostos são devolução ao social duma parte do recebido dele). O nosso governo troikista, pelo contrário, forçou aquém dos mínimos sociais sem qualquer pudor, para garantir os máximos aos credores que vivem de especulação – jogam com títulos para lá, títulos para cá –, sem que a Economia enquanto ciência pareça ter algo a dizer a esse respeito, como se fosse apenas uma questão moral, ou o fatalismo de “as coisas serem como são”.
5. Não sou de economia nem de qualquer outra área social e percebo a dificuldade imensa de uma ciência económica global e que pretenda domesticar os capitais internacionais. Mas as crises são as sociedades a tornarem-se laboratórios exibindo o que falta às ciências, pedindo para as reformular, se ainda for a tempo. Ou para o que sobrar de espécie humana.
Filósofo 


Um artigo para nos fazer pensar.

quarta-feira, 7 de maio de 2014


Nestes tempos tão complicados e incertos que geram tanta perplexidade e confusão, juntamos dois artigos que certamente ajudarão a compreender o que se passa.

Opinião
Miséria social, miséria moral: mais pobres, mais frágeis
06/05/2014 - 02:57
A grande herança do Governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo.
Voltaire dizia que “quase toda a História é uma sequência de atrocidades inúteis”. A frase adapta-se como uma luva ao “programa de ajustamento” a que Portugal foi submetido nos últimos anos pelo Governo de Passos Coelho, pelos seus “parceiros” europeus e pelo FMI. As atrocidades a que fomos submetidos não são os horrores da guerra que estavam na mente do filósofo francês, mas continuam a ser as velhas misérias sociais e um novo tipo de miséria moral de que Passos Coelho ou Paulo Portas são simultaneamente propagandistas e exemplos.
As misérias sociais estão à vista: desemprego, precariedade, subemprego, emigração forçada, salários mais baixos, pensões mais baixas, aumento da pobreza e da miséria extrema, mais pessoas sem qualquer rendimento e sem apoios sociais, mais crianças pobres, mais velhos pobres, mais crianças com fome, menos acesso à saúde, menos acesso à educação, mais abandono escolar, menos serviços públicos, mais depressão.
A miséria moral é aquela que foi sendo insidiosamente instilada na sociedade pela atitude do poder e pelo seu discurso, pelo seu recurso despudorado à mentira sistemática tornada banal, pelo seu uso da desconfiança como instrumentos de manipulação do público.
Não é surpreendente que, depois de Passos Coelho, de Paulo Portas, de Miguel Relvas, de Maria Luís Albuquerque, de Poiares Maduro tenhamos passado a considerar comum a falta de honorabilidade dos governantes, fazendo crescer o descrédito na democracia. Hoje vê-se como inevitável a promiscuidade entre políticos e negócios e aceitamos que a verdade, como antes acontecia na guerra, seja a primeira baixa da política.
O Governo conseguiu difundir uma cultura de desprezo pelos velhos e pelos doentes, apresentando-os como gastadores de recursos sem préstimo e como abusadores dos direitos sociais. Conseguiu impor um clima de confronto entre desempregados e trabalhadores, apresentando a estabilidade de emprego como pecaminosa e um obstáculo à competitividade. Conseguiu lançar uma guerra de gerações entre velhos “privilegiados” por terem pensões e jovens a quem foi dito que estavam em risco de nunca receber reformas devido aos “privilégios” dos seus pais e avós. O Governo conseguiu minar consensos sociais laboriosamente construídos ao longo de 40 anos de democracia, como o acordo sobre a necessidade de investir na escola inclusiva, na formação de alto nível e na investigação – que passou a ser referida na narrativa oficial como uma actividade “pouco produtiva” e longe da “economia real”. O Governo conseguiu apresentar sistematicamente a máquina do Estado como uma “gordura” improdutiva, um aparelho inútil e despesista, formado por burocratas preguiçosos e incompetentes, pondo trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos e destruindo uma filosofia de serviço público e uma ética de trabalho com séculos de consolidação, para melhor desmantelar o Estado social. E impôs por todos os meios possíveis a agenda neoliberal segundo a qual o trabalho é uma mera mercadoria sem dignidade particular, cujo valor deve ser tão reduzido quanto possível.
A miséria moral que este panorama evidencia pode ser menos visível do que os dramas da pobreza, mas é infinitamente mais grave, porque abre fracturas de hostilidade e desconfiança na sociedade que levam muitos anos a reparar.
O sucesso ímpar do Estado social após a Segunda Guerra Mundial não se deveu apenas aos serviços que o Estado fornecia, mas ao clima de estabilidade e de cooperação, de confiança nos outros e no futuro que esses serviços possibilitaram. O grande sucesso do Estado social foi a derrota da insegurança e do medo – do medo da doença, do desemprego, do futuro.
A grande herança do governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo e da insegurança como elemento central da vida social e como instrumento estatal de “regulação social”. E, com ele, a desconfiança e a desesperança. Dividir para reinar é uma receita eficaz, como todos sabemos.
E a grande herança do Governo PSD-CDS na prática política é a crescente banalização da mentira e a glorificação do despudor. O sofrimento não nos deixou melhor do que antes. As atrocidades só serviram os saqueadores.
A “saída limpa” que o Governo anunciou este fim-de-semana não é nem uma saída nem limpa, como qualquer pessoa com um mínimo de honestidade admite – porque a fragilidade da nossa situação financeira é igual ou pior do que era, porque permanecemos submetidos a uma tutela externa com direito de veto de facto das políticas nacionais. Mudámos apenas de suserano: antes eram os nossos “parceiros” europeus, amanhã serão os “mercados”. A diferença entre um “programa cautelar” e uma “saída limpa” é a que existe entre o lume e a frigideira. A chantagem é a mesma, apenas muda o agente. E a instabilidade é maior.
Quando a UE refere os “progressos impressionantes” que Portugal realizou, faz um exercício de hipocrisia. Estamos economicamente mais pobres e socialmente mais frágeis. Mais temerosos e mais divididos. Só pode achar que isto é um sucesso quem tivesse este objectivo.
jvmalheiros@gmail.com


 Opinião
Missão cumprida
03/05/2014 - 02:03
Quanto à reforma do Estado, ficou claro que o Governo se limitou a reduzir o valor do trabalho.
No momento em que se aproxima a chamada “saída da troika”, ou seja, o fim do programa de governação ditado pelas instituições que tutelaram a obtenção por Portugal, em 2011, de um empréstimo de 78 mil milhões de euros – Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional –, parece não restarem dúvidas de que foi cumprida com sucesso a missão a que se destinava a intervenção tutelada pelas três instituições internacionais.
O objectivo era claro: tentar transformar o modelo de organização socioeconómica de Portugal, procurando desestruturar um modelo assente numa hierarquia que privilegiava o sector público, organizado em função da prestação de serviços pelo Estado a todos, para passar a privilegiar os interesses privados e a lógica do lucro do mercado. E esse objectivo é concretizado através da redução do valor do trabalho e do rendimento dos trabalhadores no activo ou reformados.
Nesse sentido, era cristalino que a diminuição na despesa pública e o emagrecimento do Estado seriam feitos à custa de baixar o nível de vida, o poder de compra dos trabalhadores portugueses. Dois anos e meio e terminado o programa de actuação governativa incluso no memorando de entendimento, o objectivo foi conseguido e o Governo assumiu esta semana que a redução nas pensões de reforma e de sobrevivência é definitiva, ainda que menor do que foram nestes últimos anos. Quanto aos salários dos funcionários públicos, fica transparente também que a verba financeira total destinada a remunerações no Estado diminuiu e não vai aumentar.
Mais uma vez, em Portugal parece funcionar a máxima de que o provisório é definitivo. E os cortes nas pensões e nos salários que foram anunciados como temporários são agora assumidamente para ficar. Esta semana tornou-se oficial no Documento de Estratégia Orçamental que os cortes sobre as pensões serão permanentes nas prestações sociais acima de 1000 euros por mês, variando gradualmente entre 2% e 3,5%.
Se o Documento de Estratégia Orçamental não traz nada de novo sobre as intenções de cortes nos salários do Estado e nas pensões em geral, a surpresa vem dos novos aumentos de impostos agora anunciados. Por um lado, de impostos sobre o consumo, com uma subida do IVA de 23% para 23,25% – o que dirão Pires de Lima e Paulo Portas depois da propalada promessa da descida do IVA e do IRS feita pela direcção do CDS eleita no congresso de Oliveira do Bairro?
Além da subida do IVA, foi anunciada uma subida da taxa social única (TSU) paga pelos trabalhadores, que passa assim de 11% para 11,25%. Depois da ameaça de disparar a TSU dos trabalhadores, que foi o rastilho para a manifestação que a 15 de Setembro de 2012 trouxe às ruas de Portugal meio milhão de pessoas, o Governo não desiste de aumentar a contribuição dos trabalhadores para a Segurança Social e não toca na contribuição que é paga pelos empregadores.
A taxação do trabalho mantém-se, aliás, na estratégia orçamental que agora é oficializada e que serve de padrão e regra para os próximos Orçamentos do Estado. O corte salarial dos funcionários públicos, que atinge actualmente uma margem de variação entre 2,5% e 12% nos salários mensais a partir de 675 euros, é reposto apenas numa parcela de 20% no vencimento de cada trabalhador.
Mas esta reposição de 20%, explicava o PÚBLICO, só parece estar garantida para 2015, já que de futuro ela dependerá “da capacidade de o Estado manter o valor da massa salarial na administração pública, nomeadamente através da diminuição de efectivos” (PÚBLICO online 01/05/2012).
Assim, há uma garantia de que um quinto dos cortes salariais dos funcionários públicos são repostos, mas, a partir daí, a repetição deste patamar durante mais quatro anos depende da diminuição do número de efectivos na administração pública. Introduz assim uma lógica segundo a qual quem quer ver o seu salário reposto dentro de cinco anos passa a desejar ardentemente que o colega do lado seja despedido.
Explicando melhor: a massa salarial de que o Estado passa a dispor para garantir as remunerações dos seus trabalhadores nos próximos anos é a que estará em vigor em 2015 e os ordenados só voltarão ao que eram antes dos cortes em função do sucesso da diminuição do número de funcionários públicos.
Por conhecer – ou melhor por fazer – está a mais que prometida reforma do Estado, bem como a anunciada reforma da Segurança Social. Sobre isto o Governo e os seus documentos mantêm o silêncio. Em relação à Segurança Social, a dita “reforma” é clara: mudam as fontes de financiamento, recaindo este num aumento da TSU dos trabalhadores e do IVA, para além da manutenção da diminuição das pensões. Quanto à reforma do Estado, também ficou claro que o Governo se limitou a reduzir o valor do trabalho.
Jornalista

sexta-feira, 2 de maio de 2014

VIVA O 1º DE MAIO !


Fotos do 1º de Maio de 1974 em VRSA

Em 1974 comemorou-se o 1º de Maio em VRSA, hoje nada. Muito comércio aberto, muita gente na praia. Hoje, 1º de Maio, reuniu-se o governo com a Troyka. Ontem, véspera do 1º de Maio o governo PPD/CDS, avançou com mais um pacote de impostos e a punição do provisório em definitivo. SERIA INGENUIDADE PARA NÃO PERCEBER A PROVOCAÇÃO, INTENCIONAL NESTA DATA, E CLARA, O GOVERNO ESTÁ AO SERVIÇO DOS MERCADOS E NÃO DOS TRABALHADORES E DO POVO PORTUGUÊS, TOMEM LÁ MAIS ESTE MERECIDO CASTIGO E AMOCHEM, QUEM MANDA SOMOS NÓS, QUE FIQUE CLARO.
Foi o POVO que ao sair à rua por todo o país, em 1974, ajudou o MFA a consolidar a vitória, e a construir uma democracia avançada para o tempo.
Hoje, ao não saírem à rua nem comemorarem o 1º de Maio ajudam a perpetuar um governo injusto e reaccionário, a consentirem que lhes mintam e os sobrecarreguem com impostos e atirem para o desemprego, a emigração e a miséria milhões de portugueses. Quem não se mexe acaba sempre por ser atropelado. E, quando forem votar no fim do mês, não se esqueçam de votar nos mesmos de sempre e depois, quando lhes caírem em cima mais impostos ou cortes nas pensões não venham com a cantiga que não votaram neles.
Junto um relato da Helena Pato de um 1º de Maio de outros tempos e um link para verem como foi em 1974.
Seguíamos num Volkswagen – eu acompanhava-os, até ver. O Alfredo, com quem já casara, tinha recebido do chefe de redacção do República a incumbência de fazer a reportagem. Para a censura cortar, inevitavelmente, de alto a baixo, é claro. Ao seu lado, um amigo, um camarada nosso, que estava ali por ser um dos organizadores. No banco de trás seguia eu, impaciente e receosa.
Nas vésperas tinham sido lançados panfletos por toda a cidade, chamando o povo a comemorar o 1.º de Maio, a manifestar-se. Se a ditadura proibia toda e qualquer manifestação, o «1.º de Maio» era assunto subversivo cuja referência pública, escrita ou em voz alta, só por si, podia valer prisão. Nos últimos meses, reuniões e mais reuniões na nossa casa, em Campo de Ourique – tudo muito discutido, muito preparado, à porta fechada, mas nada passara por mim. Apenas sabia que algumas dezenas de brigadas clandestinas, furtivamente e durante noites e noites, iriam cobrir de propaganda a cidade de Lisboa e os arredores. Papéis, aos milhares, por todos os sítios: apelos à manifestação contra o regime e abundante informação acerca das greves que nos últimos meses despontavam, umas a seguir às outras, nas empresas dos arredores de Lisboa.
Chegámos à Praça do Comércio uns dez minutos antes das 6 da tarde. 1.º de Maio de 1962. Uma data histórica – que persiste em sobrar-me, em ficar-me para trás, sempre que quero escrever sobre a resistência ou sobre a repressão fascista. Talvez por ter sido a única vez que, em idênticas circunstâncias, passei mesmo ao lado da morte. Depois foram décadas a gritar: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» Não se tratava de um grito demagógico, eles eram realmente assassinos.
O nosso carro ia devagar. As ruas estavam praticamente desertas e, ao olharmos para as lojas e para os cafés, a calma e a óbvia normalidade assustaram-nos. Estaríamos à beira de um fracasso? Seria aquele o resultado de tanto trabalho de organização tantos meses a fio? «Tem calma, Lena, ainda não são 6 horas!» Tanta reunião, tanta agitação, e um ambiente que parecia explosivo, no crescendo das greves, iria dar, assim, em nada? Seria que o povo não tinha coragem de assumir nas ruas o descontentamento que vinha manifestando à boca calada e que já revelara de forma tão convicta, tão expressiva, nas eleições do Delgado? Afinal, onde estava esse povo? «Tem calma, Lena, ele vai aparecer!» Amedrontara-se? Não se atrevia a enfrentar as forças policiais que os estudantes haviam defrontado por mais do que uma vez durante esse mesmo ano? 1500 jovens presos num só dia, em Março, na Cidade Universitária, e agora ninguém se mexia?
«Esta manifestação é política, amiga, não é associativa… hoje é mais complicado arriscar!», lembrava o camarada ciente de uma experiência que eu admirava.
De uma coisa eu tinha a certeza: a tarde estava mais quieta do que o habitual à mesma hora. A Baixa parecia adormecida. Dava-me a impressão de que a acção prevista teria sido prematura ou as expectativas demasiado grandes, que o medo trancara os lisboetas em casa e que os empregados e os lojistas – comércio, moda, capelistas, pastelarias, cafés – estariam a abandonar os estabelecimentos, aos poucos, para fugirem da confusão. Por onde parariam os bancários, que tinham prometido uma boa adesão? Continuávamos ansiosos, a rodar, rua abaixo, rua acima, repetitivamente, devagarinho, varrendo metodicamente um espaço cruzado por artérias quase vazias.
Emudecêramos. Somente meia dúzia de estudantes nossos conhecidos passou por nós. Que era feito do pessoal da outra banda? Então os operários da Siderurgia? E os da Lisnave? «Espera e verás, camarada… Hão-de vir, virão em peso… Sabemos que vão estar em força.» Qual quê! Algum comércio ia-se fechando ao nosso lado, e eu desanimada. Havia quem, à porta, se metesse para dentro e quem saísse para os passeios – caminhavam imperturbáveis, eles de chapéu na cabeça, elas de malinha no braço. «São donos das lojas e caixeiros, já se sabia, Lena… Pouco se contava com eles…»

Começámos por ver a guarda nacional republicana a cavalo, em grupos – três agora, quatro depois –, a avançar pela Rua Augusta, vinda do Terreiro do Paço. Postura sobranceira, a exibir a força. Quando se cruzou connosco, o Alfredo apressou-se a colocar no vidro do automóvel, em posição de boa visibilidade, uma pequena cartolina branca com os dizeres IMPRENSA – JORNAL DIÁRIO, desenhados na véspera, omitindo tratar-se do República para não chamar a atenção. Não queria dar-lhes qualquer pretexto para detenção, pois referir o jornal República era falar de oposição ao regime.
Percorríamos as ruas lentamente, circulando, da Praça do Comércio até ao Rossio; aí dávamos a volta e regressávamos à Rua do Ouro, num movimento cada vez mais desesperançado. O silêncio vindo de fora tinha-nos contagiado.
Às 6 em ponto, o espanto:
– Olhem, olhem! Extraordinário! – exclamei.

O milagre nesse Maio de luta contra o fascismo. Em poucos segundos, a Baixa ficara repleta de gente. Pareciam nascidos do chão. Surgiam de todos os cantos e do interior das lojas. Bem-postos, sim, bem-postos, de chapéu, eles, com malinha no braço ou na mão, elas. Vinham, em passo acelerado, das ruas transversais – a Rua da Conceição, a da Vitória, a do Crucifixo, abarrotavam. Santa Justa em clamor. Muitos corriam em bandos, vindos dos lados do Tejo, outros desciam o Chiado aos magotes ou afluíam dos Restauradores. A Rua da Madalena, a dos Fanqueiros e todas as ruas que desembocavam na Praça da Figueira encheram-se, num ápice, de gente que se dirigia para o Rossio. 6 da tarde. Nessa altura, a multidão bradava uma palavra de ordem qualquer, não sei o quê, não me lembro.
– Pára, Alfredo, vou sair! – gritei, na Rua da Prata, a saltar do carro ainda em andamento, sem levar carteira, nada, a não ser uma algibeira atulhada de pimenta.
Que me lembre, não havia carros de água nem bombas lacrimogéneas. A polícia era treinada para obedecer às ordens superiores e, desta vez, as ordens superiores resumiam-se, por certo, a duas frases:
«Dêem cabo deles! Acabem-lhes com a raça!» Os polícias invadiram o Rossio: pareciam drogados, saindo como animais das camionetas, bruscamente estacionadas, empunhando cassetetes, com olhares de ódio, espumando de fúria. Não me esqueço de que vi um deles junto de mim, fardado, com pistola. Largaram em corrida, mais aguerridos do que nunca, piores do que em concentrações anteriores. Juntei-me à multidão. De repente, a repressão abateu-se com tal violência que nos levou a reagir imediatamente com um só grito: «A-ssa--ssi-nos! A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» (E eram.) Caíram sobre todos os que agarraram, malhando a torto e a direito. Missão cumprida: homens novos e velhos caídos no chão, alguns cheios de sangue. Prisões aqui e ali. A pancada brutal assustava.
Na expressão vincada na face de muitos populares via-se raiva, mas também medo: gente lívida a escapar-se para dentro do Café Nicola e do Café Gelo. Constou que a Pastelaria Suíça tinha fechado as portas de imediato para que a polícia não lhe destruísse o interior, mas também para não acolher ninguém. Houve quem, a custo, conseguisse fugir para as margens da refrega e ficasse a descansar. Gente que por momentos se juntou àqueles lisboetas que desde o princípio se mantinham encostados às montras, nas esquinas do Rossio e perto do Arco Bandeira – uma Lisboa do reviralho, do fado e da ginjinha, solidária, mas, até Abril, temerosa.
Eu, ali parada, ao lado do Teatro D. Maria, quase em pânico, com as pernas a tremer, mas revoltada com tudo o que via – numa ira crescente –, procurava ganhar terreno e coragem para atirar com a pimenta aos cavalos que a GNR lançava sobre as pessoas. Assustei-me com eles a relinchar, patas ao alto, avançando sobre nós, enquanto clamávamos: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» A 2 metros de mim, em poucos segundos, uns quantos animais tombaram. Estavam agora de joelhos, os guardas a procurarem levantá-los, e nós: «A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!».
Começou o tiroteio. A multidão resistia, sem conseguir perceber donde vinham os tiros.
Dois amigos puxaram-me e quase me arrastaram em direcção à estação de comboios. Depois subimos as Escadinhas do Duque e corremos rua acima, numa subida cansada, violenta e dramática. Os tiros sucediam-se nas nossas costas: aquele som ainda nos perseguia e nós, ofegantes, já íamos junto ao Quartel do Carmo. Lembro-me de, lá em cima, ter um ataque de choro. Raiva ou medo? Nem sei.
«A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos! A-ssa-ssi-nos!» é uma forte memória que guardo do eco da resistência no coração da cidade.

– Há montes de feridos, prenderam muita gente… – gritava-me uma amiga ali a dois passos.
– Parece que mataram um gajo, um operário, um rapaz dos nossos… – disse eu, em pranto.
Ao princípio da noite sentei-me na Cervejaria Trindade com o Alfredo, uns amigos e a certeza de que, a partir dali, a efeméride que, de futuro, comemoraríamos com verdadeira emoção não voltaria a ser o 5 de Outubro. Aquele tinha sido o primeiro «1.º de Maio» de luta para muitos milhares de pessoas em todo o país, um passo importante no combate político contra a ditadura.

Meses depois, o Alfredo foi para o exílio, fugindo à prisão que o ameaçava. Chegava brutal a vaga de repressão da PIDE sobre os principais organizadores da sequência de greves e lutas desse histórico ano – e ele havia sido um deles.

Em 1974, centenas de milhares de portugueses desfilaram no dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador. Comemorava-se a liberdade: era dia de festa, mas poucos saberiam a história dos anteriores.




https://www.youtube.com/watch?v=cIN37JB6JMw