sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

CIDADES PARA OS CIDADÃOS



Texto para ler e reflectir, mais a mais numa cidade e concelho em degradação acelerada fruto de políticas oportunistas, de penacho e indiferentes aos problemas da população.
MC


Cidades saudáveis
Mais do que cidades saudáveis, reclama-se o direito a uma vida urbana saudável.
28 de Dezembro de 2018 Gonçalo Canto Moniz
Mais do que inteligentes ou sustentáveis, hoje queremos cidades saudáveis.
O saudável esteve sempre mais associado ao campo do que à cidade e é no campo, na serra, no mar, que os urbanitas se refugiam para encontrar um ambiente que tenha um impacto positivo no seu bem-estar com benefícios para a sua saúde. O conceito de férias, criado no final do século XIX, tinha também esse pressuposto de reencontro com a natureza e estava muitas vezes associado à necessidade física e mental de recuperar dos malefícios da vida urbana, poluída e stressante. É neste sentido que se criam as estâncias termais, as estâncias de veraneio, as pousadas de montanha ou, mais recentemente, o turismo rural.
A cidade nunca se preocupou em ser saudável porque não era esse o seu desígnio nem fazia parte das preocupações dos políticos. A cidade começou por ser um refúgio militar para depois se afirmar como o lugar do trabalho e do habitar. Desde as ruas dos artesãos até à “baixa” comercial, aos centros comerciais ou às zonas industriais, a cidade valorizou sempre mais a construção do que o espaço público de lazer.
Só no século XX, principalmente na segunda metade, emerge um discurso moderno que procura trazer para dentro da cidade os espaços verdes, principalmente nas zonas residenciais, ou em parques urbanos. Infelizmente nem sempre este verde é usado porque não se integra na dinâmica urbana e social, funcionando a maioria das vezes como um elemento mais decorativo do que funcional.
De facto, toda a proposta ambientalista pró-verde não é suficiente para transformar as cidades, se não for pensada com e pelas pessoas. Ou seja, torna-se urgente colocar os cidadãos no centro do processo de transformação das cidades, porque são eles que as vão criar, usar e manter. Assim, o próprio processo de co-criação de espaços urbanos é já por si um promotor de bem-estar no sentido em que fortalece as pessoas que contribuem com as suas ideias, o seu conhecimento e as suas experiências para a construção de um futuro melhor. Garante-se também que a construção de novas áreas urbanas ou a regeneração urbana não vai apenas servir os interesses do Estado, dos municípios ou das grandes empresas, mas vai também estar ao serviço das pessoas, das suas necessidades e dos seus desejos.
Não se trata aqui de excluir do planeamento urbano e do desenho das cidades os habituais decisores políticos e técnicos, mas sim de incluir outros atores que podem trazer para esses processos contributos objetivos que garantam o sucesso efetivo do processo de transformação. Esse sucesso já não se mede hoje apenas em termos económicos ou ambientais, mas também em termos da saúde física e mental de quem vai habitar a cidade. Ou seja, temos de medir o sucesso através das pessoas, da melhoria da sua qualidade de vida, do seu nível de atividade física, do seu nível de integração na comunidade, da melhoria da sua acessibilidade, da melhoria do sentimento de segurança, do acesso a recursos económicos, assim como da redução das suas doenças ou da descriminação social. Ou seja, uma cidade saudável é também uma cidade mais inclusiva.
Este é um dos grandes desafios societais que a Comunidade Europeia lançou em 2014 no programa H2020 e que Portugal acompanhou com o P2020 através do financiamento à investigação e à ação, o que tem possibilitado a construção de ideias e negócios inovadores, principalmente quando cruzam a regeneração urbana com a cultura, a economia social e o ambiente. O projeto europeu URBiNAT (www.urbinat.eu), coordenado pelo Centro de Estudos Sociais, enquadra-se exatamente neste contexto de atuação que emerge da identificação de um problema urbano e que possibilita o desenho de um outro modelo de atuação, integrando, de um modo inovador e inclusivo, as questões urbanas com soluções baseadas na natureza. Os 28 parceiros europeus, iranianos e chineses identificaram as áreas de habitação social das periferias das cidades como um dos problemas urbanos mais exigentes e permanentemente abandonados pelo planeamento, pela falta de qualidade das habitações, pela falta de espaço público e pela falta de integração na estrutura urbana e social.
Este é um problema não só europeu, mas também mundial, que decorre de um processo de crescimento urbano em extensão, onde as pessoas mais carenciadas foram alojadas nas novas periferias, sem direito à cidade. Ainda que o problema esteja identificado desde as reivindicações de 1968, as soluções não foram encontradas ou devidamente implementadas. De facto, já não se acredita no poder redentor dos grandes planos de urbanização e, pelo contrário, aposta-se hoje em estratégias mais pontuais, de escala intermédia, que tenham a capacidade de envolver efetivamente as pessoas no processo de planeamento.
O projeto propõe-se investigar e implementar com as pessoas o conceito de Corredor Saudável. Corredor porque liga áreas urbanas através de um percurso pedonal e ciclável; saudável porque esta infraestrutura deverá contribuir para o bem-estar e a saúde dos cidadãos que o percorrem e que o habitam, como prolongamento dos seus espaços de habitação e de trabalho. Assim, o corredor criado por cada comunidade poderá ser mais do que um percurso, integrando espaços que qualifiquem o ambiente natural, urbano e humano para que o cidadão desenvolva atividades lúdicas, culturais, sociais ou económicas, partilhando a vida em comunidade, de forma inclusiva e saudável.
Deste modo, mais do que cidades saudáveis, reclama-se o direito a uma vida urbana saudável.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Investigador do Centro de Estudos Sociais e professor do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

DIREITOS E DEVERES


Comemorou-se hoje os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das  Nações Unidas no dia 10 de Dezembro de 1948 no rescaldo da  II Guerra Mundial e dos seus horrores que ceifaram dezenas de milhões de vidas por todo o Mundo.
O caminho aberto pela DUDH foi aprofundado pela Convenção dos Direitos Humanos de 1950, pelo Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais nas Nações Unidas em 1966.
A Portugal tais progressos humanos e sociais só chegaram no dia 25 de Abril de 1974. Cá não existiam direitos dos cidadãos, os portugueses estavam excluídos desses direitos pelo fascismo salazarista.
É bom recordar que a luta pela humanização dos seres humanos dura há milénios, ainda hoje em dezenas de países são duramente punidos, presos e mesmo assassinados pessoas só pelo facto de terem uma opinião diferente do tirano do momento. O caso do assassinato de um jornalista dentro da Embaixada da Arábia saudita em Ancara é disso exemplo.
As duas profissões de risco mais perseguidas hoje no mundo e que regista anualmente muitas dezenas de elementos assassinados são os sindicalistas e os jornalistas, o que evidencia como incomodam os poderes corruptos e os negócios dos paraísos fiscais.

Segundo Moisés o Deus que lhe falou admitia os escravos. Visível que tal divindade está fora dos DUDH. O Homem foi mais longe no progresso das ideias e sentimentos que o divino.
"(1) E Deus falou todas estas palavras: (2) Eu Sou Javé, o SENHOR, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão! (3) Não terás outros deuses além de mim. (4) Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem esculpida, nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou mesmo nas águas que estão debaixo da terra. (5) Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porquanto Eu, o SENHOR teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, (6) mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos. (7) Não pronunciarás em vão o Nome de Javé, o SENHOR teu Deus, porque Javé não deixará impune qualquer pessoa que pronunciar em vão o seu Nome. (8) Lembra-te do dia do shabbãth, sábado, para santificá-lo. (9) Trabalharás seis dias e neles realizarás todos os teus serviços. (10) Contudo, o sétimo dia da semana é o shabbãth, sábado, consagrado a Javé, teu Deus. Não farás nesse dia nenhum serviço, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que estiverem morando em tuas cidades. (11) Porquanto em seis dias Eu, o SENHOR, fiz o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles, mas no sétimo dia descansei. Foi por esse motivo que Eu, o SENHOR, abençoei o shabbãth, sábado, e o separei para ser um dia santo. (12) Honra teu pai e tua mãe, a fim de que venhas a ter vida longa na terra que Javé, o teu Deus, te dá. (13) Não matarás. (14) Não adulterarás. (15) Não furtarás. (16) Não darás falso testemunho contra o teu próximo. (17) Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma.que lhe pertença'. 
Foi necessário avançar 17 séculos para haver uma revolução, a Revolução Francesa para se registar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, juntamente com os decretos de 4 e 11 de agosto de 1789 sobre a supressão dos direitos feudais, é um dos textos fundamentais voltados pela Assembléia Nacional Constituinte, formada em decorrência da reunião dos Estados Gerais.
Adotada em seu princípio antes de 14 de julho de 1789, ela ocasiona a elaboração de inúmeros projetos. Após exaustivos debates, os deputados votam o texto final em 26 de agosto de 1789.


Nesta lenta caminhada evolutiva das mulheres e dos homens sobre a Terra já deveria ter sido proclamada uma Declaração sobre os Deveres do Homem quer para com os outros seres humanos, quer em relação à defesa do próprio planeta. As alterações climáticas estão aí e apontam o dedo a todos nós e à nossa irresponsabilidade.
MC

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

PACHECO PEREIRA E VRSA


ORA DIGAM LÁ SE NÃO SE APLICA A VRSA A MAIOR PARTE DESTE TEXTO?



A entrada dos drones na vida política nacional
A excepção é as coisas funcionarem bem – ou seja, dito à bruta e sem rodriguinhos, Portugal é um dos países mais atrasados da Europa.
JPPereira
24 de Novembro de 2018
Está toda a gente indignada com o “falhanço do Estado” no caso da estrada que ruiu matando pelo menos cinco pessoas. E devem estar não tanto pelo “falhanço do Estado”, porque, para além de ser um falhanço, o falhanço é a regra. A excepção é as coisas funcionarem bem — ou seja, dito à bruta e sem rodriguinhos, Portugal é um dos países mais atrasados da Europa.
Repito: Portugal é um dos países mais atrasados da Europa, em que as infra-estruturas estão envelhecidas ou nunca foram modernizadas, não existem onde deviam existir, em que faltam serviços essenciais por todo o país, com mão-de-obra muito pouco qualificada, com patrões muito mal preparados, com baixa produtividade, com uma administração burocrática que não promove o mérito, e é corrupta e clientelar, com instituições de regulação que não regulam nada, com inspectores que não inspeccionam nada, com um território que não tem qualquer policiamento fora das cidades, com escassez de meios para tudo e abundância de desperdício por todo o lado. Podia encher o jornal todo e ainda dava para muita edição.
Comparem estatística a estatística e, de novo, salvo raras excepções, Portugal fica num mau lugar. Um país com tanto atraso estrutural gera inevitavelmente má governação a nível local e nacional, porque falta massa crítica para fazer melhor. E falta pressão para que tal aconteça. Por isso temos o Estado que temos e somos, por regra, tão mal governados. As desigualdades são talvez a melhor marca desse atraso.
Mudou muita coisa nos últimos 40 anos? Mudou, claro, e muita para melhor, mas o atraso era enorme e hoje continua grande. Como dizem os saudosistas do salazarismo, havia muito ouro no Banco de Portugal, mas o preço desse ouro entesourado era uma elevada mortalidade infantil e analfabetismo, a exploração dos mais pobres, uma guerra e uma ditadura. O 25 de Abril fez muito para retirar o país do seu atraso, através desse valor intangível da democracia, mas está longe de ter conseguido dar a volta a muito do atraso atávico do país. É como com as chuvas de 1967, que mataram em Loures, mas apenas molharam em Cascais. 
Mas não se iludam: a maioria dos portugueses pode protestar muito, nos cafés antigos, e nos cafés modernos que são as redes sociais, mas, com excepção dos seus imediatos interesses, não quer saber muito disto é até colabora participando na pequena corrupção, na fuga aos impostos, nos pequenos truques quotidianos com o ambiente, a qualidade dos alimentos, as obras na casa, etc., etc. Só se preocupa com a pátria pelo futebol e de resto manifesta uma indiferença cívica total.
Porque os portugueses são maus ou um caso perdido? Não, nada disso, são como todos os povos, só que pagam o preço do atraso do seu país, tornando-se, pelas suas atitudes, parte desse atraso. O que é que se espera de pessoas pobres, sem grande educação formal, vivendo uma vida dura, acantonadas num diálogo cívico miserável, que é o que se passa nas redes sociais, sem poder e com muitas dependências para exercer o pouco poder que tem, sem conhecer os seus direitos, numa sociedade e com uma política que faz tudo para os embrutecer?
Mas foram eles que permitiram a negligência criminosa daquela estrada? Não, não foram. É sempre em primeiro lugar o governo. Mas, a sua quota-parte de responsabilidades está na sistemática falta de protesto cívico, de punição pelo voto de autarcas e governantes que tão mal gerem os dinheiros públicos, e por muitas vezes fecharem os olhos ao facto de a gestão ser tão má que deixa cair pontes e estradas, como é má gestão fazer um pavilhão gimnodesportivo que custou milhões e depois deixam estar fechado a degradar-se, mas que queriam muito para a sua terra. Ou quando nem querem ouvir falar do encerramento de pedreiras ilegais ou fábricas pirotécnicas, porque dão emprego onde não existem alternativas. Por todo o país fora, até um dia em que as coisas correm mal.
E também não tenham ilusões: este caso só teve a cobertura mediática que teve porque os cenários eram espectaculares para a televisão, e os drones tornaram muito barata a filmagem aérea. Se as mesmas cinco pessoas morressem numa curva de uma estrada contra uma árvore, mesmo que a curva devesse estar há muito sinalizada e houvesse quem tivesse chamado a atenção para a incúria face ao perigo, as notícias não duravam um dia, nem havia debates, nem ia lá o Presidente, nada. Era um não-caso. Só que, aqui, aqueles gigantescos buracos eram magnífica e dramática televisão, e é por isso que temos um “caso”. Os drones entraram definitivamente na vida política portuguesa.
Colunista

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A EUROPA ESTÁ SURDA E MUDA


Uma Europa Sustentável – o grande desafio das próximas eleições europeias
É hora de os líderes políticos europeus perceberem que um futuro sustentável para todos só é possível num planeta onde a natureza prospera.
22 de Novembro de 2018 Ângela Morgado
 Os resultados das próximas eleições para a União Europeia (UE) irão afetar o modo de vida dos cidadãos europeus, e de todos os portugueses, nos próximos anos.
Os candidatos e futuros líderes da UE devem colocar o bem-estar das pessoas no centro das suas reflexões e das suas ações. Um pacto político assente num conjunto de objetivos e ações sobre alterações climáticas, proteção da natureza e desenvolvimento sustentável, a ser levado a cabo nos próximos cinco anos, é o que se impõe para preservar o bem-estar das pessoas na Europa.
Tais objetivos e ações representariam um reforço da segurança, melhorias na saúde e mais empregos para os europeus e aumentariam a competitividade económica, contribuindo para uma Europa globalmente forte e respeitada.
Amplos setores da comunidade europeia estão preocupados com a segurança e o desemprego, mas não podem esquecer que os cidadãos estão apreensivos com o impacto crescente das alterações climáticas e da degradação ambiental – desafios que estão intimamente relacionados com a estabilidade e segurança futura das nossas sociedades.
Os últimos dados disponíveis sobre o estado de saúde do Planeta (edição 2018 do Relatório Planeta Vivo da WWF) revelam que a vida selvagem diminuiu drasticamente desde 1970. As estatísticas são assustadoras e mostram que as populações globais de peixes, aves, mamíferos, anfíbios e répteis diminuíram em média 60% entre 1970 e 2014. As principais ameaças às espécies estão diretamente ligadas às atividades humanas, incluindo perda e degradação de habitats e sobreexploração da vida selvagem. A humanidade, em geral, continua a exercer uma pressão sem precedentes sobre a natureza contribuindo para a sua perda acelerada.
É hora de os líderes políticos europeus perceberem que um futuro saudável e sustentável para todos só é possível num planeta onde a natureza prospera e florestas, oceanos e rios estão cheios de biodiversidade e vida.
Combater as alterações climáticas e conter a degradação ambiental são requisitos base para se construir uma Europa verdadeiramente estável, mais segura, mais competitiva e com mais influência no panorama global. Só protegendo a natureza, que é a base da vida humana, poderemos ter uma Europa criadora de empregos a longo prazo e economicamente próspera e que defende o bem-estar dos seus cidadãos.
Para conduzir esta transição sustentável da Europa, os cidadãos precisam de líderes políticos com visão e determinação, capazes de romper com o pensamento, a forma de agir e com as respostas políticas habituais. Caso contrário, a Europa arrisca-se a perder a sua relevância num mundo cada vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo que se debate com as ameaças impostas pelas alterações climáticas, pela degradação ambiental e pelas perdas naturais.
de lançar o seu Manifesto para a Sustentabilidade na Europa, propondo aos políticos que se empenhem numa transição sustentável que deve ser feita agora, sem hesitações, para salvaguardar rios livres e água de qualidade, florestas e ecossistemas saudáveis e paisagens naturais inspiradoras. Precisamos de criar um novo caminho que nos permita coexistir de forma sustentável com a natureza, da qual dependemos, e esse deve ser o grande desafio e a grande responsabilidade dos líderes políticos nacionais e europeus.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Directora executiva da Associação Natureza Portugal, em associação com a WWF

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

OPOSIÇÃO A MEDO


O estatuto do direito de oposição nas autarquias locais: “o medo de existir”?
Em Portugal, os direitos da oposição são reiteradamente desrespeitados pelos executivos municipais.
22 de Outubro de 2018 Luís Filipe Mota Almeida
A ordem jurídica portuguesa é uma das poucas no mundo que, no plano das Autarquias Locais, adota um modelo em que o direito de oposição está consagrado na Constituição e é desenvolvido, também, por via de uma lei especificamente dedicada a esta matéria (a Lei n.º 24/98, de 26 de Maio). Esta foi uma lei que surgiu, por proposta do PS, num contexto de reforma e forte modernização das Autarquias Locais. Antes desta lei importa referir que a consagração constitucional de um direito geral de oposição no atual art. 114.º/2 da Constituição se ficou a dever, não a nenhum dos projetos de constituição dos partidos, mas ao trabalho de redação levado a cabo por Jorge Miranda no quadro da 5.ª Comissão da Assembleia Constituinte e que o seu alargamento ao plano autárquico só ocorreu, por proposta do PS, na revisão constitucional de 1989. Por seu turno, a opção pelo desenvolvimento complementar do direito de oposição por via de lei surgiu, circunscrita ao plano estadual e regional, na I Legislatura por proposta de Freitas do Amaral e do CDS.
A Lei n.º 24/98, de uma forma mais garantística que a Constituição, reconheceu a titularidade do direito de oposição (e de todos os direitos que o compõem) aos partidos políticos e aos grupos de cidadãos eleitores (em diante designados como GCE) que apenas estejam representados nos órgãos deliberativos das autarquias ou, no plano municipal, que, independentemente dessa representação, integrem o órgão executivo do município sem assumir qualquer pelouro (o que se justifica já que, nos executivos com maioria absoluta, as oposições sem pelouros acabam por ser tratadas pelo edil e pela sua vereação como meros “jarrões decorativos” aos quais, com frequência, são negados os mais básicos meios de ação e de controlo da força maioritária no executivo).
Esta lei confere aos titulares do direito de oposição o direito à informação (independentemente de qualquer requerimento) sobre o desenvolvimento dos principais assuntos de interesse público, o direito de consulta prévia relativamente às propostas dos respetivos orçamentos e grandes opções do plano, o direito de participação e o direito de depor. Prevê, ainda, a necessidade de apresentação obrigatória e publicação, pelo executivo, de um relatório anual de avaliação do grau de observância desta lei e dos direitos nela consagrados.

Todavia, apesar de todo este enquadramento ter trazido alguns avanços, na prática têm-se, também, verificado inúmeros casos de verdadeiro desprezo e descuido na aplicação desta lei, que fazem com que os direitos da oposição sejam reiteradamente desrespeitados pelos executivos. São exemplos desta situação os casos de ocultação de informações sobre matérias estruturantes (mesmo quando requeridas pela oposição), a negação do direito de consulta prévia aos GCE e a inexistência dos relatórios anuais ou a sua existência com um conteúdo sem qualquer espírito crítico.
Tal situação, aliada ao processo de descentralização em curso, exige que os partidos políticos representados na Assembleia da República aproveitem o contexto de reforma do poder local e apresentem (e discutam) propostas de reforma da Lei 24/98 que assegurem um maior respeito pelo seu conteúdo e um reforço da democracia local no nosso país, acabando de vez com um certo medo de existir que tem marcado a vigência desta lei. De resto, esta necessidade já foi assinalada por Albino Almeida, presidente da ANAM, em audição na Assembleia da República no âmbito da alteração da Lei das Finanças Locais.
Em meu entender são necessárias mudanças em três níveis. Primeiro, existem as mudanças clarificadoras, tais como a necessidade de assegurar que os GCE e os eleitos independentes tenham a titularidade plena de todos os direitos consagrados nesta lei. Segundo, existem mudanças que assegurariam uma consolidação, onde se inserem, por exemplo, a fixação de um prazo concreto para a prestação das informações no âmbito do direito à informação, o alargamento do direito de consulta prévia a outros assuntos estruturantes (tais como o exercício dos poderes tributários do município ou a revisão dos instrumentos de gestão territorial) e a consagração da obrigatoriedade de votação dos relatórios de avaliação nos órgãos deliberativos. Terceiro, existem mudanças que trariam um aprofundamento da democracia local e um maior pluralismo, onde se inserem a consagração de um princípio de representação proporcional quanto à composição das mesas dos órgãos deliberativos, a consagração da obrigatoriedade de as publicações periódicas e sítios das Autarquias Locais reservarem espaços à oposição, a criação de sanções para a violação desta lei, a criação de uma entidade administrativa independente que centralize as competências de interpretação e monotorização do cumprimento desta lei e a consagração de um direito de a oposição deter as condições adequadas para o exercício das suas funções (o que incluirá os meios básicos – como e-mail institucional –, mas também a garantia de gabinetes próprios e de assessoria técnica – que deveria seguir o modelo da UTAO, para se evitar uma lógica de jobs for the boys e de custos exorbitantes).
Note-se, porém, que todas estas mudanças exigem uma mudança de postura que assegure que os executivos autárquicos abandonam uma postura despótica e percebem a importância de se assegurar a participação da oposição na execução do consenso e que as forças da oposição conhecem os seus direitos e exigem perante os executivos, numa lógica de positivismo de combate, o seu cumprimento.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

CÂMARA E SGU E O MAR MINISTERIAL


Esta trabalho jornalístico de António Cerejo, o nosso melhor jornalista de investigação, vem comprovar, se tal fosse preciso, as denúncias que temos vindo a fazer há anos quer nesta página que criámos propositadamente para isso, quer a AMA no seu blogue.
Tem sido uma luta persistente, teimosa, contra um muro de indiferença e silêncio muitas vezes cúmplice. Mas era necessária, sem intenções políticas, mas por uma questão de higiene democrática, de decência cidadã, contra a trafulhice, a mentira sistemática, a publicidade enganosa, a utilização indevida do património público.
Esperemos que as forças políticas que estiveram adormecidas anos e parecem agora despertar influenciadas pelas denúncias feitas saibam aproveitar o momento para darem conteúdo sério e democrático, não eleitoralista, a propostas para o  desenvolvimento do Concelho.




Negócios da ministra do Mar levantam dúvidas em Vila Real de Santo António
Empresa de Ana Paula Vitorino foi contratada duas vezes pelo município do Sotavento algarvio. A necessidade dessas contratações, o cumprimento dos contratos e as relações da ministra com o edil social-democrata levantam dúvidas. A ministra diz que foi contratada porque é competente e que se afastou da empresa logo a seguir.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO 
28 de Setembro de 2018
A Transnetwork, empresa criada em 2011 pela então deputada Ana Paula Vitorino, celebrou dois contratos por ajuste directo, em 2015 e 2017, com a Câmara de Vila Real de Santo António (VRSA). O primeiro só foi parcialmente cumprido e parcialmente pago. O segundo deu origem a três documentos, um dos quais se limita a reproduzir o relatório entregue dois anos antes. No total, a empresa da ministra facturou 55.820 euros ao município e à sua sociedade de gestão urbana (VRSA-SGU).
Luís Gomes, o anterior presidente da câmara e ex-líder do PSD Algarve, foi aluno de Ana Paula Vitorino no Instituto Superior Técnico, nos anos 90, e foi ele quem convidou a Transnetwork a trabalhar para a autarquia no final de 2014. Antes disso, explica o ex-autarca, a sua antiga professora já tinha prestado alguns serviços ao município por volta de 2010.
No portal dos contratos públicos (base.gov), todavia, nada consta sobre essa colaboração que Luís Gomes explica do mesmo modo que explica as posteriores contratações da Transnetwork: “A engenheira Ana Paula Vitorino é uma pessoa respeitada em todo o país na área dos transportes.” No entanto, a empresa não teve qualquer outro contrato com entidades públicas desde a sua constituição. Quanto aos 55.820 euros facturados em VRSA em 2015 e 2017, esse montante não está totalmente repercutido nas contas da empresa. As vendas e prestações de serviços declaradas nesses anos ficam-se pelos 35.799 euros.
PS E CDU contra
A três de Março de 2015, a polémica rebentou numa reunião do executivo camarário. Luís Gomes agendara para votação um ajuste directo que pretendia celebrar com a Transnetwork, com vista à elaboração de um “estudo geral de ordenamento da circulação e do estacionamento no concelho”, por 52.750 euros. Para a mesma reunião, agendou também a concessão a privados da exploração do estacionamento pago em VRSA e em Monte Gordo.
De acordo com a acta da reunião, o vereador socialista David Murta defendeu que deviam ter sido consultadas outras empresas para fazer o estudo de circulação, além da Transnetwork. Mais do que isso, declarou não compreender que “em período de ajustamento financeiro, e com o Fundo de Apoio Municipal às costas” se gastassem quase 53 mil euros, mais IVA, com um estudo que podia ser feito pelos técnicos da câmara e da VRSA – SGU. O eleito do PS “mencionou igualmente a sua estranheza” pelo facto de no mesmo dia ser submetida à câmara a concessão do estacionamento e ser adjudicada a elaboração de um estudo sobre circulação e estacionamento.
Por seu lado, José Cruz, vereador da CDU, questionou directamente o facto de a câmara pretender fazer “um ajuste directo a uma empresa unipessoal da engenheira Ana Paula Vitorino”. Em resposta, Luís Gomes defendeu que “o estudo dará pistas para que a câmara dialogue com os privados para se perceber se há bolsas privadas para se criar estacionamento alternativo ao tarifado”. Segundo a acta, o autarca do PSD acrescentou que se trata de “um estudo de tráfego não tendo a câmara técnicos adequados para o redigir”. O que ele não disse foi que a proposta da Transnetwork ainda nem sequer tinha sido entregue ao município. O documento, assinado pela actual ministra, tem data de 6 de Fevereiro.
Ana Paula Vitorino recuou
Apesar dos votos contra do PS e da CDU, as adjudicações do estacionamento e do estudo foram aprovadas, mas nem tudo ficou na mesma. Vinte e dois dias depois, a 25 de Fevereiro de 2015, Ana Paula Vitorino renunciou à gerência da sua empresa e transformou-a numa sociedade por quotas. O capital, de mil euros, passou a ser maioritariamente detido (90%) por José Eduardo Magalhães, um engenheiro sem carreira pública ou profissional conhecida. Os restantes 10% ficaram nas mãos da actual ministra e de Lídia Sequeira, uma gestora portuária que Ana Paula Vitorino nomeou para a presidência da Administração dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra em 2016.
Com esta mexida, Lídia Sequeira assumiu a gerência e foi ela quem, duas semanas depois, a 10 de Março de 2015, assinou o contrato com Luís Gomes. No clausulado ficou expresso que o estudo deveria ser entregue no prazo de seis meses e que o seu custo seria de 52.750 euros mais IVA. De acordo com o portal base.gov, porém, “apenas foi concluída uma parte do trabalho”, tendo sido pago o valor de 16.220 euros.
Segundo a actual presidente da câmara, Conceição Cabrita, que à época do contrato era vice-presidente da autarquia, este valor corresponde à primeira fase do estudo. O trabalho não foi finalizado “por acordo entre as partes”, acrescenta, tendo sido pago um quarto do valor “nos termos da proposta adjudicada”. Segundo a autarca, a empresa entregou um relatório de 58 páginas, em Agosto de 2015 [três meses depois do prazo parcelar contratado], com o resultado da primeira fase do estudo.
O documento, que a câmara facultou ao PÚBLICO, não tem data e não identifica os seus autores. Intitulado “Caracterização e Diagnóstico”, fica-se pela descrição do sistema de acessibilidades e transportes do concelho, tendo por base a informação fornecida pela câmara, “tal como previsto contratualmente”. Na introdução, o relatório nota que “poderão vir a ser efectuadas análises mais aprofundadas, nomeadamente sobre a oferta e procura de transportes públicos, bem como sobre a logística urbana, caso o município venha a disponibilizar informação mais pormenorizada”.
Estudo inacabado
Os autores explicam ainda que na “Fase 2”, que não chegou a ser concretizada, será feita “a identificação de medidas de minimização dos problemas e dificuldades de funcionamento identificados [na “Fase 1”], nomeadamente a localização e dimensionamento de parques dissuasores e medidas de melhoria global do funcionamento seguro da rede viária”.
Quase em simultâneo, mas provavelmente ainda antes da entrega do relatório da “Fase 1”, a maioria camarária aprovou, a quatro de Agosto de 2015, o Regulamento Geral de Trânsito do concelho de VRSA. Nessa altura já se verificava alguma contestação à recente entrada em vigor da concessão do estacionamento tarifado, tendo o vereador José Barão (CDU) afirmado: “O processo está todo invertido, uma vez que primeiro foram colocados os parquímetros, depois é aprovado o regulamento e só no fim é que será elaborado um estudo de trânsito.”
Em todo o caso, o trabalho da Transnetwork ficou por ali e em Novembro Ana Paula Vitorina ascendeu ao lugar de ministra do Mar. Passados seis meses, quando Lídia Sequeira assumiu a direcção dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra - conforme o programa Sexta às Nove, da RTP, revelou na semana passada –, a gerência da Transnetwork passou para o sócio maioritário, José Eduardo Magalhães.
Pelo que se depreende das contas da sociedade, a sua actividade tornou-se então ainda mais escassa, com vendas de apenas 10.550 euros em 2016 e sem qualquer contrato com entidades públicas. Já em Julho do ano passado, porém, VRSA voltou ao radar da empresa, desta vez com um ajuste directo com a VRSA-SGU, presidida pela sucessora de Luís Gomes e detida a 100% pelo município. Objecto: elaboração do “estudo geral de ordenamento da circulação e do estacionamento no centro histórico de VRSA”. Enquanto o contrato de 2015 visava o concelho inteiro, este ficava-se pelo centro histórico da cidade.
Talvez por isso o preço caía para 39.600 euros e o prazo de execução para 30 dias. Segundo Conceição Cabrita, o estudo foi entregue a 11 de Agosto e contém três relatórios que foram igualmente disponibilizados ao PÚBLICO: um de 58 páginas, correspondente à primeira fase do estudo; outro de 42, relativo à segunda fase; e um terceiro de 41, com a apresentação do trabalho, “perfazendo todo o estudo um total de 141 páginas”.
Um relatório para dois contratos
O primeiro faz-se notar por ter o mesmo número de páginas do relatório da “Fase 1” do contrato de 2015. Vendo de perto, constata-se que os dois são um único. O de 2017 é apenas a reprodução integral do de 2015, substituindo-se apenas as referências ao “concelho de VRSA” pela expressão “centro histórico de VRSA”.
O segundo, relativo à “Fase 2”, é um documento generalista, sem qualquer trabalho de campo, e relativo, quase em exclusivo, a estacionamento e transportes públicos. Inclui “propostas de melhoria” da situação existente, mas é praticamente omisso em relação aos problemas da circulação automóvel, fluidez do trânsito, semaforização e sinalização rodoviária. Por fim, o terceiro documento é um power point com 41 diapositivos que sintetizam as 42 páginas do segundo relatório.
Questionada sobre o resultado prático dos trabalhos efectuados pela empresa, Conceição Cabrita responde assim: “O município e a VRSA - SGU aplicaram várias medidas que vão de encontro ao proposto no estudo (…) nomeadamente, levaram a cabo diversas reuniões quer com comerciantes quer com comissões de comerciantes com vista à apresentação de propostas de alteração do contrato de concessão do estacionamento.” Por outro lado, afirma, “foram também mantidas reuniões com a empresa de transportes públicos que opera no concelho (EVA Transportes) no sentido de alterar trajectos e implementar melhorias no autocarro social”. Por fim, explica, “foram rebaixados diversos passeios, foi cortado o trânsito na zona pedonal do centro histórico e está em curso uma proposta de alteração do regulamento de trânsito municipal”. Refira-se que o estudo nada diz sobre o rebaixamento de passeios, nem sobre o trânsito na zona pedonal.
As explicações da ministra
Contactada pelo PÚBLICO, Ana Paula Vitorino respondeu detalhadamente, afirmando que no final de 2014 a sua empresa foi convidada pela câmara a apresentar uma proposta para fazer um estudo e que a mesma foi por si subscrita “em 5 de Novembro de 2014” – embora a proposta facultada pela autarquia e assinada pela então empresária tenha a data de 6 de Fevereiro de 2015.
A 26 de Fevereiro, acrescenta, decidiu ceder as suas quotas, ficando apenas com 5% e renunciando à gerência. Desde a constituição, em 2011, até essa data, “a actividade da empresa foi quase exclusivamente dedicada à edição e publicação da revista Cluster do Mar, tendo publicado oito números entre 2012 e 2014, não tendo existido nenhum contrato de consultoria com o Estado ou com municípios.”
Ana Paula Vitorino afirma que depois de Fevereiro de 2015 deixou de acompanhar a Transnetwork, não tomou “qualquer decisão”, nem coordenou ou participou em qualquer estudo ou projecto da empresa e não recebeu honorários. “A partir daí não tive conhecimento do desenvolvimento dos trabalhos, data de entrega dos relatórios e conteúdo dos mesmos.” Depois de se referir ao seu currículo académico e profissional, a ministra diz ter a convicção de que o convite que lhe foi feito pela câmara de VRSA “se deveu à [sua] competência e experiência na área dos transportes, reconhecida internacionalmente”.
Ao contrário da imagem que agora apresenta da empresa que criou - como sendo quase exclusivamente dedicada à publicação de uma revista de dois em dois meses -, Ana Paula Vitorino descreve a Transnetwork como uma empresa dinâmica e multifacetada na sua biografia oficial, disponível no Portal do Governo. Referindo-se a si própria, diz aí que “foi partner e responsável técnica da Transnetwork, empresa de consultoria, formação, planeamento, estudos e projectos nas áreas de transportes, portos, logística, infra-estruturas, gestão, economia, engenharia, arquitectura, construção e planeamento, com trabalhos desenvolvidos em Portugal, África e América Latina desde 2011”.
A acreditar nesta caracterização da empresa e nas contas por ela apresentadas ao fisco nos últimos anos terá de se concluir que a maior parte da sua actividade foi exercida probono, em regime de voluntariado. Isto porque a sua facturação foi sempre residual, ficando-se no conjunto dos anos 2015, 2016 e 2017, os únicos cujas contas estão acessíveis, pelos 46.329 euros - ainda assim abaixo dos 55.820 que facturou em dois daqueles anos em Vila Real de Santo António.
A professora e o aluno
Datam de há onze anos as notícias da proximidade entre a então secretária de Estado dos Transportes, com competências na área dos portos e das zonas ribeirinhas, e o então autarca de VRSA. Em Setembro de 2007, durante uma visita de Ana Paula Vitorino, foi assinado um protocolo entre o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, por ela tutelado, e a câmara dirigida pelo seu ex-aluno. O objectivo prendia-se com o lançamento de um novo modelo de gestão das zonas ribeirinhas, a partilhar entre a administração central e os municípios. VRSA seria uma espécie de balão de ensaio da nova política.
De concreto, pouco ou nada avançou nesse sentido, mas em Março de 2016, seis meses depois de tomar posse como ministra, Ana Paula Vitorino voltou ao Sotavento algarvio para relançar o projecto de 2007. Em VRSA anunciou mais um protocolo a celebrar com a câmara local, referindo que com ele o Governo pretende “dar o exemplo” para que os municípios assumam a co-gestão das suas zonas ribeirinhas.
No final de 2016, o seu gabinete divulgou um comunicado a dar conta dos contactos em curso com um grupo empresarial inglês para lhe serem concessionados sete hectares da frente ribeirinha de VRSA. A concessão, que viabilizaria um dos muitos projectos de grandes dimensões repetidamente anunciados por Luís Gomes, destinar-se-ia à construção de um complexo hoteleiro de luxo.
Depois disso, não houve mais notícias sobre o assunto, mas em Abril deste ano a ministra voltou à cidade para inaugurar um cais flutuante, em serviço há meses, e anunciou vários projectos para as margens do Guadiana. Mais recentemente, no início deste mês, esteve em Faro nas cerimónias do dia da cidade, onde assistiu à apresentação do projecto de reconversão do cais comercial. A apresentação foi feita por Luís Gomes, actual consultor da Câmara de Faro para a requalificação da frente ribeirinha. No discurso que então proferiu, a ministra afirmou que tinha “muito orgulho” no ex-autarca porque foi sua professora e porque “é sempre bom ver que os alunos seguem os mestres”.
Sobre os contratos da Transnetwork com o município que dirigiu, Luís Gomes disse ao PÚBLICO que tudo foi feito “nos termos da lei” e sem quaisquer favorecimentos. “Os trabalhos foram entregues à autarquia e enquadram-se no objecto dos contratos. No caso do segundo, o trabalho foi mesmo muito além do que foi contratado.”

A revolta do PS local contra a "cobertura" ao PSD

 
28 de Setembro de 2018
Num email enviado no passado dia 18 à secretária-geral adjunta do PS, aos deputados socialistas do Algarve, ao líder distrital do partido e ao secretário de Estado das Pescas, que já dirigiu o partido na região, um dirigente da secção local de Vila Real de Santo António (VRSA) e membro da comissão política distrital do partido insurge-se, violentamente, contra a alegada “cobertura” dada pela ministra do Mar ao ex-líder do PSD Algarve.
Rui Setúbal, que é também um dos representantes do PS na assembleia municipal de VRSA, não poupa nas palavras: “A cobertura pessoal e política que [a ministra do Mar] deu e continuar a dar a Luís Gomes que, para além de cantor (?) de ‘regaton’, é especialista em frentes ribeirinhas, é político, foi presidente de câmara em VRSA durante 12 anos, foi presidente do PSD Algarve e é putativo candidato a presidente de câmara, é execrável.”
Logo a seguir, escreve: “Bem sei que a senhora ministra do Mar através de empresas de que é sócia teve, e continua a ter, contratos com câmaras governadas pelo PSD (vejam-se os dois estudos contratados para VRSA e dos quais nunca foi visto qualquer trabalho), mas tal não pode servir para ser a testa de ferro da ‘lavagem’ pessoal e política do ex-presidente da CMVRSA.”
Rui Setúbal, referindo-se ao recente discurso de Ana Paulo Vitorino numa cerimónia do dia de cidade de Faro, diz mesmo que “estamos perante um acto de apoio a um político sem escrúpulos que é responsável por levar à falência o concelho de VRSA”. Falando depois de uma alegada “teia de relações e favorecimentos complexa” criada por Luís Gomes diz que “só um único escritório de advogados, PMLJ (Morais Sarmento) teve contratos de valor muito superior a dois milhões de euros” com o município local.
“Foi o resultado de uma gestão irresponsável e eleitoralista conduzida durante 12 anos por Luís Gomes que voltou a ser carimbada com um ‘certificado de qualidade” emitido por uma dirigente socialista”, acrescenta. Acerca da gestão do PSD em VRSA, o socialista diz que Luís Gomes deixou a câmara “com mais de 150 milhões de euros de dívida, hipotecada para os próximos 30 anos e sem que nenhum dos grandes projectos anunciados tenha sido concretizado”.
Ao PÚBLICO, Rui Setúbal diz que não recebeu ainda qualquer resposta ao seu protesto e que a sua posição é partilhada pelos responsáveis locais do partido. Quanto aos estudos feitos pela empresa de Ana Paula Vitorino para a câmara de VRSA diz que os pediu em vão no anterior mandato e que já este Verão um dos vereadores do PS os requereu por escrito à presidente da câmara, também sem sucesso.
Em todo o caso, garante que não houve qualquer alteração ao esquema de circulação e estacionamento no centro da cidade que possa ser consequência de tais estudos. “Não houve nenhuma alteração significativa no trânsito do centro histórico desde 2007”, conclui.
Contrariamente aos seus críticos, Luís Gomes, garante que o concelho está agora muito melhor do que estava quando o recebeu do PS em 2005. “No meu tempo a dívida passou de 12 milhões, que na realidade eram 30, para os cerca de 130 actuais, mas o património do município passou de 15 para 200 milhões.” O ex-autarca diz também que nos seus três mandatos o concelho foi integralmente coberto pelo saneamento básico e que foi feita a requalificação das praias de Monte Gordo e Manta Rota.
Quanto à não concretização dos grandes projectos turísticos e imobiliários frequentemente anunciados nos seus mandatos, defende-se, afirmando que sempre disse tratar-se de projectos a 20 anos. “Agora está tudo pronto para ser concretizado”, assegura. Sobre as contratações do escritório de advogados de Morais Sarmento, vice-presidente do PSD, que Rui Setúbal diz terem ultrapassado os dois milhões de euros, Luís Gomes afirma que o recurso aos seus serviços se deve à “confiança” que tem na qualidade do seu trabalho e à necessidade de defender o município é processos extremamente complexos.
Embora Rui Setúbal refira contratos com a PLMJ de “valor muito superior a dois milhões de euros”, o Portal Base apenas regista 596.692 euros em contratos celebrados entre aquele escritório e o município de VRSA, mais 535.750 euros em contratos com a VRSA-SGU, num total de 1 milhão 132 mil euros. À excepção de um contrato de 199.000 euros com a VRSA-SGU que data de 2010, todos os outros são posteriores a Dezembro de 2015 e somam, nestes dois anos e meio, 933.442 euros. O que pode acontecer, mas o PÚBLICO não conseguiu esclarecer até agora, é se há outros contratos, nomeadamente entre 2008 e o final de 2015 que não tenham sido publicados no portal, como a lei exige.

terça-feira, 31 de julho de 2018

SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE









Uma campanha travestida a respeito do SNS
É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita.
31 de Julho de 2018 Isabel do Carmo
No conjunto de títulos e de notícias que têm ocupado a comunicação social a respeito da Saúde, podemo-nos perguntar se se trata de um debate, de uma defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou de uma campanha de promoção dos serviços privados e de uma perspectiva política de facto anti-SNS.
Recentemente, um velho amigo meu francês, de passagem por Lisboa, telefonou-me num fim-de-semana a dizer que estava com uma dor no peito havia duas horas e não sabia se havia de esperar por segunda-feira e procurar um cardiologista. Disse-lhe para tomar um táxi o mais depressa possível e ir à urgência do Hospital de Santa Maria ou do Hospital de S. José. Assim fez e telefonou--me uns dias depois a explicar que tinha tido um infarto cardíaco e tinha posto um stent na coronária. E comentou-me na sua língua: “Cinco estrelas! Afinal, o que se passa com os hospitais não é nada do que vem nos jornais.” (Sabe ler português.)
Mais uma vez se me colocou a questão de a quem é que serve o actual debate sobre os serviços públicos de saúde e se aqueles que se situam à esquerda, tal como eu, não poderão, se não tiverem cuidado, estar a lançar achas para a fogueira dos outros. Percebo o dilema da esquerda parlamentar, que, tendo de defender no lugar certo o SNS, na sua identidade, na sua sustentabilidade e no seu futuro, não pode nem deve fazer coro com o ataque produzido pelo PSD e o CDS. Estes partidos, a comunicação social que os acompanha e alguns organismos profissionais que se integram na mesma narrativa não são defensores do SNS e nunca o foram.
O discurso cheio de menções em defesa do SNS é verdadeiramente hipócrita e repousa sobre a falta de memória da população em geral e da imprensa em particular. Quando, em 1979, a Lei 56, a do SNS, chamada “Lei Arnaut”, foi ao Parlamento, foi aprovada com os votos a favor do PS, do PCP, da UDP e do deputado independente Brás Pinto. Votaram contra o PSD, o CDS e os deputados independentes sociais-democratas. A posição contra este modelo de redistribuição de um SNS universal e gratuito a partir do Orçamento Geral do Estado, o qual é baseado em impostos progressivos, foi sempre a da direita. Em 1987, o PSD ganhou maioria absoluta e a sua orientação, liderada por Cavaco Silva e inspirada pela onda neoliberal e os triunfos de Reagan e Tatcher em 1979/80, foi a de combate ao padrão identitário do SNS, tal como o Partido Conservador fez em relação ao National Health Service inglês. Em 1990, já com uma maioria parlamentar, o PSD e o CDS fizeram aprovar uma nova lei de bases para a Saúde, com a porta aberta para os privados expressa em muito do articulado, pois punha os serviços públicos “em articulação com os serviços privados”. A lei do mercado para tudo e também para a Saúde. É este o filão que constitui de facto o nó central da direita parlamentar e daqueles que a seguem na comunicação social e em alguns grupos profissionais. Falarem na defesa do SNS é uma mentira e um teatro. Alguns terão mesmo conflitos de interesses, dada a sua ligação a empresas com fins lucrativos na área. 
Quando a direita voltou a ter maioria parlamentar e governo, coincidindo com a entrada da troika, passou a dizer que o Estado não tinha dinheiro para pagar a saúde, falando como se o SNS fosse uma benesse oferecida à população. A palavra solidariedade passou a paredes meias com a caridade e a expressão “tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos” atenuou o “tendencialmente gratuito”, como se os impostos donde provém o Orçamento já não tivessem esse critério e não fosse esse o espírito da redistribuição. E foi assim que prosperaram as “entidades privadas, sem ou com fins lucrativos”, para “prestar cuidados de saúde”, expresso na lei de 1990. E o Estado encarregou-se e encarrega-se de lhes comprar serviços. Passou a acontecer o boom das grandes empresas privadas de Saúde. Não se trata já de consultórios unipessoais, mas de entidades de negócio que movimentam milhões.
Logo que tomou posse, o Governo ligado à direita parlamentar reduziu o orçamento para a Saúde, que era em 2010 de 8699 milhões e em 2012 estava em 7525 milhões. E a participação das famílias passou ao seu máximo, 28%. Foi o corte na Saúde, em nome das boas contas do défice. No entanto, se olharmos para o caminho do dinheiro, ele desceu no público e subiu para o privado, como se de vasos comunicantes se tratasse. A despesa corrente com os hospitais públicos desceu de cerca de 5508 milhões de euros em 2010 para 4843 em 2015. No mesmo período, a despesa do SNS com os hospitais privados subiu de cerca de 391 milhões de euros para 554. Os custos com meios auxiliares de diagnóstico e terapêuticos (análises, radiologia, endoscopias) pagos através do SNS foram subindo até 2015.
Foi este o legado do Governo da direita: não se trata da redução dos custos em Saúde “porque não havia dinheiro” e “estávamos à beira da bancarrota”, mas sim de uma inversão daqueles a quem se pagava, com o dinheiro do Estado e com o dinheiro do bolso das famílias. Durante esse período de cinco anos de governo, com o agravamento da situação social, houve comprovadamente mais anemias, mais pneumonias de que foi dado o alerta. Em 2011 houve 27% mais chamadas para o INEM relacionadas com comportamentos suicidários. Entre 2011 e 2012 a prescrição de ansiolíticos e de antidepressivos aumentou em todas as idades e foi o dobro neste período de tempo para as pessoas com mais de 65 anos. O registo de sintomas de ansiedade e depressão em todas as idades a partir dos 15 anos passou para o dobro ou para cinco ou quatro vezes mais, conforme as regiões.
O número de funcionários dos vários sectores na Saúde desceu 12%. As horas de trabalho passaram a 40 semanais e, portanto, uma parte das horas extraordinárias deixaram de ser pagas. Houve uma fuga de médicos e enfermeiros para o estrangeiro.
Estes profissionais queixaram-se de burnout em publicações próprias e em sessões públicas. Durante este período, as almas inquietas do PSD e do CDS, que agora clamam pelos riscos de destruição de um SNS que eles afinal não aprovaram, mantiveram-se tranquilas. Podiam não trazer o assunto para o Parlamento, porque isso é a regra do jogo da competição política, mas ao nível individual podiam expressar-se, indignar-se ou pelo menos inquietar-se. Mas não. E foi este o legado que o Governo da “geringonça” recebeu.
E aqui insere-se o dilema que se coloca a todos aqueles que querem defender o SNS. É impossível não criticar o Governo por aquilo que esperávamos que tivesse feito e não fez, mas também é necessário tomar medidas de higiene em relação à direita. O Ministério da Saúde ficou demasiado dependente das Finanças; atrasou-se na abertura das unidades de saúde familiar; não teve uma linha coerente para lidar com os profissionais. Sobretudo, não levou a cabo uma resolução aprovada em Maio de 2017 na Assembleia da República que “recomenda ao Governo que poupe no financiamento a privados para investir no Serviço Nacional de Saúde”, “maximizado os recursos existentes”. Passou um ano e nada se viu neste aspecto, pelo contrário. A posição do Governo na discussão da lei de bases que está em curso inquieta.
Entretanto, a campanha em relação ao SNS prossegue. Protestam contra a passagem às 35 horas de trabalho, não porque “o SNS não estava preparado”, há sete anos era assim, mas porque o que querem mesmo é que as pessoas trabalhem mais, está no ADN do poder de direita. E a quem serve a campanha? Seguramente aos privados, pois quem lê tais títulos e notícias fica amedrontado e corre a fazer seguro de saúde e a ser cliente de privados. Mais sinistro ainda: quem é doente da área de oncologia, seja em crianças (felizmente poucas centenas a nível nacional, dispondo de seis instituições de alto nível), seja em adultos, apavorado como é natural em relação a estas patologias, procura em redor uma salvação e vai comprar serviços a privados de custos elevados, não hesitando em endividar a família para o fazer. É a lei do mercado. Ora, quem nessas circunstâncias de doença foi tratado ou curado nos hospitais públicos sabe a gratidão com que ficou aos serviços prestados.
Esta campanha serve pois interesses privados e é mais do que hipócrita, enganadora. Mas os defensores verdadeiros e coerentes do SNS também não podem demitir-se de estar alerta em relação às derivas e às promessas por cumprir.
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política