quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O ESCURO DAS PRAXES






Praxe académica: uma história longa e uma oportunidade única

Por João Mineiro

18/02/2016 Substituir os valores da praxe, isto é, da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao superior, pelos valores da horizontalidad

e, do companheirismo e da igualdade, é uma tarefa urgente.

No passado dia 5 de Fevereiro, a Assembleia da República aprovou um conjunto de recomendações relacionadas com a questão das praxes académicas. Nelas os grupos parlamentares procuraram ensaiar um conjunto de respostas novas para enfrentar um problema que está longe de ser novo na sociedade portuguesa. Na verdade, desde pelo menos 1727 que os rituais de receção aos novos alunos nas universidades são alvos de contestação. Lembremos-nos que foi nessa data que curiosamente o rei absolutista D. João V declarou que “mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos”. Mas a proibição não impediu que no século XIX os mais comuns rituais de receção aos estudantes fossem coisas tão bárbaras como o canelão, que consistia em dar pontapés nas canelas dos mais novos, o rapanço, no qual se cortava o cabelo, e a pastada, em que os novatos tinham que simular que eram animais comendo o seu pasto.

Estes rituais bárbaros, chamados de “praxe” na segunda metade do século XIX, haviam de suscitar enorme agitação nas universidades e na sociedade ao longo de todo o século XX. A abolição do canelão em 1902 chamou a atenção de republicanos e progressistas que, já depois da instauração da República, aboliram também a praxe académica. A praxe voltará a ser reposta em 1919 e nas décadas seguintes há-de ser recuperada como símbolo da academia e do seu conservadorismo durante o Estado Novo. Mas essa recuperação não resistiu aos ventos de liberdade que se fizeram sentir nos anos 60 e 70. A dissidência política e cultural dos meios estudantis, fortemente organizada em torno da crítica ao regime e à guerra colonial, e que teve nas crises académicas de 62 e 69 a sua melhor expressão, fez com que se acentuasse uma contradição entre o discurso fortemente politizado que se expandia no movimento estudantil, e as práticas mais conservadoras que persistiam na academia, pautando quer pelo elitismo em relação ao exterior, quer pela forte hierarquia no seu interior. Esse paradoxo crescente explica, em parte, que a praxe tenha entrado naturalmente em desuso no final dos anos 60, na sequência do luto académico, desaparecendo nos anos 70 quando, com a explosão do 25 de Abril, as universidades se transformaram num palco de agitação política, ocupações e transformações sociais e culturais profundíssimas.

A praxe como a conhecemos regressa nos 80, na sequência do fim do luto académico em Coimbra e do resfriamento da atividade política nos meios estudantis, acompanhando o projeto de reorganização da universidade portuguesa que começa com a abertura do sistema aos privados e com as primeiras intenções de mercantilização do ensino. É depois desta década que a praxe se expande ao conjunto do país e a muitas universidades onde nunca constituiu qualquer “tradição”.

O crescimento do movimento praxista desde os anos 90 teve como natural consequência a proliferação de inúmeros casos de violência. No livro Desobedecer à Praxe (Deriva, 2015) que escrevi com o realizador Bruno Morais Cabral, analisámos  os casos que deram origem a denúncias públicas, entre 1999 e 2014, e constatámos que foram mais de duas dezenas as situações de violência, agressões, humilhações sexuais, lesões físicas profundas ou até de mortes trágicas ocorridas em contexto de praxe. Muitos outros casos não vieram a público, ficando abafados pelos  pactos de silêncio das comissões de praxe, pela ausência de apoio às vítimas e pela falta de coragem de muitos direções estudantis e instituições de ensino superior.

A escalada de violência e os valores profundamente retrógrados que estão na raiz da praxe, têm sido alvo, ano após anos, de denúncia pública e agitação nas universidades e fora delas. Desta vez, essa agitação atravessou os muros da academia e chegou à Assembleia da República que, no passado dia 5 de Fevereiro, chegou a um compromisso sobre o combate às praxes académicas, aprovando sem votos contra um conjunto  recomendações propostas pelo BE (Projeto de Resolução n.º 21/XIII/1.ª) PS (Projeto de Resolução n.º 124/XIII/1ª) e CDS (Projeto de Resolução n.º 122/XIII/1ª). Estas recomendações assentam em três objetivos: dar informação; proteger as vítimas; e responsabilizar as instituições e os estudantes pela criação de alternativas às práticas de praxe.

Quanto ao objetivo da informação, o parlamento propõe a realização de um estudo sobre a realidade da praxe a nível nacional, a distribuição de um folheto que alerte para as consequências disciplinares e penais que a praxe pode ter, a elaboração de um conjunto de documentos de apoio às instituições para a prevenção da violência, a realização de questionários periódicos e anónimos sobre as atividades de praxe e a criação de campanhas de tolerância zero aos abusos.

Quanto à proteção das vítimas, propõe-se a criação e reforço de redes de apoio, que permitam um acompanhamento dos estudantes ao nível psicológico e jurídico, garantindo igualmente o reforço dos mecanismos denúncia.

Quanto à responsabilização pelo combate ao fenómeno, o parlamento recomenda a obrigação das instituições realizarem atividades de receção alternativas para os novos alunos, de caráter lúdico e formativo, através de um gabinete de apoio à integração académica. Para além disso, propõe ainda que as instituições e associações académicas promovam uma ação pedagógica que defenda os estudantes e reforce os mecanismos de responsabilização e denúncia.

Mas não nos iludamos. Para que estas medidas saiam do papel é preciso que  as direções das instituições de ensino superior e o movimento estudantil, no seu conjunto, assumam a sua responsabilidade. O parlamento pode, deve, e ainda bem que deu um sinal político claro sobre este assunto. Mas acabar com o espetáculo degradante das praxes e proteger as suas vítimas, implica, por um lado, que as reitorias se esforcem muito mais do que o estão a fazer agora, e por outro, que o movimento estudantil crie alternativas à praxe, preenchendo as universidades com outras formas de socialização estudantil.

Todas as pessoas querem que os novos alunos sejam integrados nas universidades. A pergunta que devemos fazer é quais são os valores que devem estar inerentes a essa integração. Substituir os valores da praxe, isto é, da verticalidade, da hierarquia e da obediência ao superior, pelos valores da horizontalidade, do companheirismo e da igualdade, é uma tarefa urgente para quem já se cansou de esperar e já não suporta continuar a viver no século passado. Já é tempo de não perdermos mais tempo.

Sociólogo, investigador e co-autor do livro “Desobedecer à Praxe” (Deriva, 2015)


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

AUSTERIDADE

Como é seu timbre mais um bom texto de V.Malheiros


Um orçamento realmente anti-austeridade
16/02/2016
O orçamento tem uma elevada carga fiscal. Mas poderia ter, sem problema e com justiça, uma carga fiscal ainda mais elevada.
Escasseia a paciência para o falso debate sobre o orçamento que a direita tem conseguido manter na agenda mediática usando todas as armas de arremesso possíveis e imaginárias e ao qual o Governo, o PS e os outros partidos da esquerda têm respondido de uma forma demasiado defensiva. Porquê “falso debate”? Porque em caso algum a direita avançou uma contestação séria dos objectivos ou das políticas consubstanciadas no orçamento - o que tinha o dever de fazer - e apenas tem tentado colar-lhe rótulos que visam denegrir as novas políticas sem as discutir e, principalmente, sem as comparar com as políticas que a própria direita pôs em prática no governo anterior ou com aquelas que preconiza nas actuais circunstâncias.
Primeiro foi o “debate” sobre os pressupostos do orçamento, que eram irrealistas e inatingíveis - como se um orçamento não fosse um exercício de previsões (arriscadas por definição, principalmente em tempos de agitação das finanças e das economias internacionais), como se um orçamento não fosse uma definição de objectivos políticos (sempre discutíveis, sempre ideológicos e, naturalmente, distintos e opostos aos dos adversários) e como se os pressupostos dos orçamentos do governo PSD-CDS não tivessem sido, mais do que discutíveis, comprovadamente falsos.
Depois foi o “debate” sobre aquilo que seria afinal uma continuação da “austeridade”, devido à manutenção de uma carga fiscal elevada, que a maior parte dos comentadores e jornalistas adoptou como argumento e causa própria sem pruridos de maior.
Antes de mais, pensemos um pouco nas palavras. “Austeridade” foi durante muitos anos um substantivo neutro ou mesmo com tonalidades positivas. Ser austero não era ser alegre e imaginativo mas era ser frugal e prudente, severo e rigoroso, contido e disciplinado, honesto e fiável - tudo qualidades que, se é verdade que podem ser exercidas com excesso e fanatismo, todos concordamos que devem balizar de uma forma geral a acção governativa do Estado. Uma política de austeridade pode assim não ser a mais adequada num determinado momento mas não é (não era) intrinsecamente condenável.
O que acontece é que a direita neoliberal internacional - como está hoje bem estabelecido por múltiplos estudos feitos por inúmeros especialistas e organizações - decidiu, inteligentemente, chamar “austeridade” a uma política que nada tinha de austera e que constou, simplesmente, de uma brutal transferência de rendimentos do factor trabalho para o capital; de um empobrecimento geral dos cidadãos; de um aumento do desemprego de forma a reduzir a capacidade negocial dos trabalhadores e a facilitar a descida de salários; de uma redução brusca da quantidade e da qualidade dos serviços públicos de forma a fragilizar a situação dos mais pobres e a aumentar as receitas dos serviços prestados pelas empresas privadas em particular nas áreas da saúde e da educação; de uma redução dos direitos sociais, económicos e culturais dos cidadãos; de uma redução dos direitos laborais e sindicais de forma a reduzir a capacidade reivindicativa dos trabalhadores; da imposição de uma situação de excepção do ponto de vista legal que fez regredir as conquistas do último século em termos de direitos humanos; de uma redução das prestações sociais de forma a excluir da forma mais radical possível os mais frágeis do exercício da cidadania; de pilhagem do património público, privatizando todas as actividades económicas rentáveis ainda na esfera pública, de forma a reduzir o poder político do Estado e a submetê-lo ao poder económico das empresas privadas; etc.
Porque é que esta política nada tinha de austera? Porque a política chamada de “austeridade”, a par da muito real “austeridade para os pobres”, estabeleceu uma situação de facto de regabofe para os ricos e poderosos, que aumentaram as suas riquezas e poder, que se apropriaram ilicitamente de bens públicos, que viram as suas rendas e privilégios reforçados.
O programa radical que a extrema-direita económica representada em Portugal pelo PSD e pelo CDS (“extrema-direita” porque não há nada mais à direita no espectro da política económica) levou a cabo no nosso país foi assim uma revolução de direita, feita sem mandato popular, com falsos pretextos e com resultados catastróficos em termos sociais e económicos.
O orçamento do actual governo, por isso, não tem nada de austeridade e é, em quase toda a linha, um orçamento anti-austeridade – no sentido abastardado que a direita impôs à palavra – ainda que frugal e prudente.
É um orçamento com uma elevada carga fiscal. Mas poderia ter, sem problema e com justiça, uma carga fiscal ainda mais elevada. É que o problema não é quanto se paga de impostos, mas sobre o quê e sobre quem incidem os impostos. Todos sabemos (é a Autoridade Tributária quem o diz) que os mais ricos pagam menos imposto do que deviam. Os impostos do actual orçamento são justos porque aliviam os menos ricos e porque permitem que a economia respire. E é essa a questão. Não se aqui ou ali há mais ou menos duas décimas de imposto.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

TEMPO DE AMEAÇAS


Estamos na verdade a viver tempos estranhos, tempos que pensávamos não ser possível no SECº XXI, do qual se esperava mais e melhor democracia, mais prosperidade e paz.

Ao contrário assistimos ao retorno em força das religiões e a retrocessos civilizacionais preocupantes, aos "mercados" dominarem por completo nações e exigirem o regresso da pobreza, mais e maior desigualdade social, pior saúde, trabalho sem qualquer direito ou garantia e imporem que tudo, mas tudo, quer seja indústrias ou serviços públicos ou a natureza (água incluída) passe para a propriedade privada dos mercados. Mais, como meio para se alcançar tais fins privatizaram-se os partidos de direita e mesmo muitos pseudo socialistas ou  sociais democratas. O que se está a passar em Portugal e na UE ilustram bem este tempo. Anexo dois artigos saídos hoje, convicto que a sua leitura não é uma perda de tempo.



Escravatura por dívida


13/02/2016

Se se tratar de um estado soberano que tenha uma grande dívida, este pode ser obrigado, como aconteceu na Grécia, a aceitar uma qualquer forma de escravatura por dívida.

A história conheceu e conhece muitas circunstâncias em que, por não pagamento de uma dívida, uma pessoa perdia a sua liberdade e ia preso ou, pior ainda, era reduzido a um estatuto de escravatura, temporária ou definitiva. Estas práticas existiam na Grécia antiga, com a sempre especial excepção de Atenas, onde Sólon as proibiu. E mais ou menos espalhadas continuaram na Índia praticamente até aos nossos dias, tendo conhecido formas variadas de trabalho forçado durante a expansão colonial europeia. Hoje, uma das formas modernas de escravatura por dívida é praticada pelos grupos mafiosos que exportam mão-de-obra e emigrantes para a Europa e América e mulheres para redes de prostituição, retirando-lhes os documentos, em nome da dívida que contraíram ou as suas famílias para "pagar" a viagem e a entrada ilegal nos países mais ricos. Estamos a falar, como é óbvio, de actividades criminosas, visto que a escravatura é um crime.

Ah!, afinal não é bem assim. Se se tratar de um Estado soberano que tenha uma grande dívida, por exemplo, Portugal, este pode ser obrigado, sob pena de morrer à fome ou de uma qualquer forma de intervenção estrangeira mais ou menos agressiva que o transforme num pária, como aconteceu na Grécia, a aceitar uma qualquer forma de escravatura por dívida. Escravatura significa aqui deixar de ser um país democrático, porque os seus habitantes deixam de poder votar como entenderem, ou então votam sem consequência, porque as políticas que lhe são exigidas são sempre as mesmas — trabalhar para pagar aos credores, sob a forma que os credores consideram ser mais eficaz em função dos seus interesses. Escravatura significa aqui que um país, Portugal, por exemplo, deixa de ser propriedade dos portugueses para o ser dos credores, que definem os orçamentos, as políticas, até ao mais pequeno pormenor, deixando apenas a intendência muito menor aos responsáveis locais. Escravatura significa que esses países e povos que assinaram em desespero de causa um contrato, seja um memorando, seja um tratado orçamental, um contrato por dívida, ou outro, um contrato que obriga todas as políticas a servir a dívida e o seu pagamento, não podem sequer escolher qualquer outro caminho para pagar a dívida que não seja o de aceitarem a escravatura, senão partem-lhes as pernas. Os credores controlam a "reputação" e a "confiança" de um país, conforme ele cumpre os preceitos do bom escravo, e, caso haja dúvidas sobre a sua obediência, tiram-lhe de imediato o ar.

Lembro-me disto quando ouço justificar tudo o que acontece com a "bancarrota Sócrates". E tudo o que nos acontece não é coisa de somenos, é aquilo que define a liberdade de um país e de um povo, é a perda de democracia, a perda de autonomia dos portugueses para se governarem, a redução das suas instituições como o Parlamento à impotência, é o taxation without representation, é a humilhação pública de governos através de fugas de informações de funcionários de Bruxelas, é o desprezo e o deitar gasolina para a fogueira de pessoas como Schäuble e, pior que tudo, é ver portugueses muito contentes com a submissão do seu país. Percebe-se porquê: as políticas que nos são impostas são as deles, identificam-se com elas e os interesses que representam (e representam muitos interesses) sentem-se confortáveis com a escravatura que nos é imposta. Podem não governar já hoje Portugal, mas governam-no a partir de Bruxelas, das agências de rating e do senhor Schäuble.

A "bancarrota Sócrates" foi um desastre para o interesse nacional, Sócrates tem uma imensa responsabilidade, mas não está solitário nessa responsabilidade. Embora ainda haja muitas obscuridades no que aconteceu, a responsabilidade deve ser partilhada com o PSD e o CDS, e em menor grau como BE e o PCP. Parte dessa responsabilidade é também da crise financeira internacional, da maneira como a Alemanha suscitou, com o caso grego, a crise artificial das dívidas soberanas, e do comportamento errático da Comissão sob tutela alemã, que primeiro quis combater a crise deitando dinheiro em cima da economia e depois travou, virando 180º a política económica. Bem vistas as coisas, sem que isso signifique uma caução às políticas despesistas de Sócrates, podia não ter havido a "bancarrota Sócrates".

Por isso, a situação actual não é filha de um único evento, mas de dois: a "bancarrota Sócrates" e a governação desastrosa do PSD-CDS dos últimos quatro anos. Como já escrevi várias vezes, a crise de 2008-2011, abriu caminho para uma outra crise, que tem sido responsável pela estagnação da Europa em contraste com os EUA. E o que se seguiu, para países como Portugal, foi menos dramático do que a iminência de não ter dinheiro nos cofres, mas foi, num certo sentido, pior: foi a redução do país a uma política que, acentuando as desigualdades e a pobreza, destruindo os escassos recursos que existiam, erodindo a frágil classe média e obrigando à emigração dos mais qualificados, impedindo qualquer política de desenvolvimento, tornou o país num medíocre executor de políticas com um único objectivo: pagar a dívida que é hoje, no meio da crise bancária e financeira, uma linha de vida para os credores. Pequenos que somos, não contando muito para os balanços, contamos para o exemplo. Aí contamos muito mais do que devemos, daí a enorme pressão política sobre o Governo Costa, que tem garantida a enorme hostilidade dos mesmos que tornaram estas políticas a variante nacional da TINA. O problema não é de "desconfiança", é de hostilidade — ele não é dos nossos, não é o que foi Passos Coelho, logo, vamos ensiná-lo como fizemos aos gregos. Com os resultados brilhantes que se vêem na Grécia.

O contentamento mal escondido da direita radical com as dificuldades do Governo Costa coloca-a com entusiasmo ao lado da vozearia que vem de Bruxelas e Berlim, alguma de uma arrogância que devia ofender já não digo um patriota, mas um português que gosta do seu país. Responsáveis do Eurogrupo, altos funcionários sob a capa das fugas anónimas, antigos e actuais ministros das Finanças europeus, holandeses, bálticos, alemães, dão entrevistas pronunciando-se sobre um governo legítimo da União Europeia com uma desenvoltura que nunca tiveram com os responsáveis políticos húngaros e polacos cujas malfeitorias em direitos e liberdades são-lhes bastante menos importantes do que uma décima no défice português. E quando alguém acha que todas estas vozes, falando também para as agências de rating e para os "mercados", são demais, eles encolhem os ombros e dizem que um país em bancarrota é escravo da dívida.

Não, não é só isso — é que eles gostam do que ouvem, pena é que Schäuble não fale mais vezes para varrer este Governo do Syriza português, mais o PCP e o BE. Pensam acaso que eles estão muito preocupados com a dívida? Enganam--se. Tanto mais que a aumentaram consideravelmente quando estiveram no poder e que em segredo sussurram que "no fim de tudo tem de haver uma reestruturação da dívida". Não é a dívida que os preocupa, é o poder político deles e dos seus e a prossecução de uma política que faça recair sobre uma parte dos portugueses, aqueles a que se tornou maldito restituir salários e pensões, o ónus do défice e da dívida e, acima de tudo, que o alvo desses custos não sejam outros. A escravatura do país é para eles bem-vinda, ajuda-os a manter o poder, "porque não há alternativa". Conheço vários exemplos na história destes "não há alternativa" e nenhum acabou bem.



Racistas


13/02/2016

 “Desprezível.” Quem o diz é o diretor da Human Rights Watch, Kenneth Roth, sobre a legislação que a Dinamarca aprovou para confiscar todos os valores (dinheiro, joias, objetos) acima dos 1300 euros na posse dos refugiados que chegam ao país. O objetivo, diz o governo, é o de os fazerem “pagar o custo do tratamento dado pelo Estado a cada um deles” e – pasme-se! - o de “assegurar uma melhor integração” (Guardian, 26.1.2016). “Acho desprezível que a Dinamarca e a Suíça estejam a confiscar os últimos bens que restam a pessoas que, vulneráveis e em mudança permanente [de um território para outro], empobreceram e a quem quase nada resta”. É uma atitude “vingativa” (The Local.dk, 27.1.2016) por parte de um dos países mais ricos da UE e do mundo, que não tem especiais dificuldades em assegurar os “serviços muito básicos” que deve prestar aos refugiados ao abrigo da Convenção do Estatuto dos Refugiados, que, preparada pela ONU, a Dinamarca assinou há 65 anos mas que o primeiro-ministro, o liberal Lars Løkke Rasmussen, quer agora rever, num gesto que responsáveis por agências de de Direitos Humanos das Nações Unidas entenderam ter como objetivo a “renúncia a uma tradição milenar de hospitalidade” para com os refugiados. “A convenção sobre refugiados salvou milhões de vidas e é um dos mais importantes instrumentos de Direitos Humanos alguma vez criado” (declarações de François Crépeau e de Melissa Fleming ao Guardian, 6.1.2016).

Porquê esta sanha? A Dinamarca acolheu 21 mil refugiados em 2015 (2% do total da Europa). Quase todos, atenção, aguardam ainda uma decisão sobre o seu pedido de de asilo – e é muito provável que lhes seja recusado. Estes refugiados são 4 pessoas em cada 100 mil habitantes daquele país! À Grécia, com o dobro da população da Dinamarca mas um seu sócio europeu bem mais pobre, e muito mais deprimido, chegaram 750 mil refugiados em 2015 – passando a representar um de cada 14 habitantes do país. O Líbano, menos populoso e muito mais pobre que a Dinamarca, acolhe hoje 1,3 milhões de refugiados, que representam mais de ¼ da sua população! O que é revelador na reação europeia à crise dos refugiados é o facto de serem os países mais ricos a adotarem as medidas legais (e já nem falo do acolhimento social) mais hostis aos refugiados. É que, além da Dinamarca, já a Suíça e os três maiores e mais ricos estados federados da Alemanha adotaram medidas de confisco de bens que emergem da pior tradição racista e persecutória da história da Europa. Na Baviera, as autoridades podem confiscar tudo acima de 750 euros; no Baden-Württemberg, acima dos 350 euros; e na Renânia-Vestefália do Norte, 200 euros é o valor máximo dos bens que os refugiados podem conservar! (The Local.de, 28.1.2016) Na Suíça, a TV pública revelou que as autoridades não só confiscam tudo quanto os refugiados tenham acima de mil euros, como estes são obrigados durante dez anos a pagar 10% do salário que conseguirem reunir, até reembolsar o Estado suíço dos 15 mil euros que este estima ser o custo do seu acolhimento (Guardian, 15.1.2016). Isto é literalmente o que fazem muitos dos passadores de migrantes forçados à ilegalidade, que, depois de pagar a passagem com quantias que representam anos de trabalho seu e das suas famílias, são obrigados a pagar comissões desta mesma natureza aos traficantes. Isto é, governos como o suíço comportam-se exatamente como os traficantes de pessoas que tanto dizem querer perseguir…

Fez bem a Assembleia da República em condenar o que achou, por unanimidade, ser um “evidente retrocesso político, jurídico, social e civilizacional”. E, por mais dúvidas que alguns tenham, bem fez o grupo parlamentar do PS em convocar o embaixador dinamarquês em Portugal para prestar explicações aos deputados sobre a “lei das joias”; se o diplomata queria embaraçar os socialistas portugueses ao sublinhar que até os sociais-democratas do seu país apoiaram a proposta da extrema-direita racista (que já é o segundo mais votado naquele país), não fez mais do que confirmar a eficácia do discurso racista que, por todo o Ocidente, salta barreiras ideológicas que durante décadas pareciam intransponíveis.

Nesta Europa empapada por uma frustração social acumulada em oito anos de recessão paga pelos mais pobres, num ciclo mais longo de 35 anos em que os mais ricos têm conseguido (voltar a) sugar dos mais pobres a maioria do bem-estar que estes haviam começado a conquistar, assiste-se a uma nova fase da secular batalha contra a igualdade. “O que torna o racismo ocidental tão autónomo e evidente na história mundial tem sido o facto de se ter desenvolvido num contexto que presumia um certo tipo de igualdade humana” (George M. Fredrickson, Racismo, 2004), primeiro de raiz cristã, depois com a proclamação liberal da igualdade de direitos cívicos, depois, ainda, com a reivindicação socialista da democratização dos direitos sociais, da igualdade de género, da luta antirracista e anticolonial. O racismo cresce sempre quando se agrava a desigualdade social. E hoje alimenta poderosos movimentos políticos que, nos países mais ricos do Ocidente, se estruturam especificamente em torno do discurso xenófobo (contra o imigrante ou o refugiado, contra o europeu meridional, o africano, o sul-americano ou o árabe, o muçulmano ou o cigano cristão), disfarçado de culturalismo determinista (hoje a “inassimilabilidade” do muçulmano ou do cigano, antes a do judeu) e até de racionalidade económica, assegurando ser impossível às sociedades mais ricas do planeta acolher refugiados em números que são ridículos por comparação com aqueles que acolhem sociedades muito mais desestabilizadas e com muito menos recursos. Há muito que o discurso e as práticas políticas do racismo deixaram de ser monopólio do que se costuma chamar a extrema-direita: os partidos dos arcos da governação da maioria dos Estados europeus com ela partilham o exercício do poder e/ou a conceção das políticas sociais e securitárias. Há 20 anos, pelo menos, que dirigentes políticos abertamente racistas assumem parcelas muito significativas do poder em todos os países escandinavos, na maioria dos Estados pós-comunistas da Europa (Hungria, Polónia, Ucrânia, ...), na Holanda e Bélgica, na Baviera (o maior Estado alemão) e na Áustria, em Itália. Fora dos governos, eles têm imposto grande parte da agenda política na Grã-Bretanha, em França, na Alemanha, em Espanha, … Nos Estados Unidos, um racista sem pudor como Donald Trump pode vir a substituir o primeiro Presidente negro da história do país – cuja eleição, sabemo-lo agora, em nada alterou a natureza racista das relações sociais.

“Todas as sociedades têm limites”, disse o embaixador dinamarquês. Pois têm...