sábado, 24 de fevereiro de 2018

DEMOCRACIA E POPULISMOS



Face à subida eleitoral na UE dos partidos chamados "populistas", direita pura e fascizante, tocam campainhas de alarme e, ainda timidamente, começa-se a colocar o dedo nas causas, quer partidárias quer sociais.

Esta reflexão sobre a nossa realidade é oportuna e um contributo mais para "nos esclarecermos". Adapte-se o conteúdo deste artigo a VRSA e encontraremos "coincidências" inquietantes.

MC


“Há em Portugal uma cultura de compadrio”
Conceição Pequito conclui que a qualidade da democracia portuguesa é má porque os partidos monopolizam as listas eleitorais e vivem da cartelização do Estado. Alerta também para o outsourcing legislativo do Parlamento associado aos deputados-advogados.
24 de Fevereiro de 2018

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Num país onde não há populismo, os impulsos populistas são canalizados pelo Presidente com a sua proximidade, defende Conceição Pequito Teixeira, autora do livro Qualidade da Democracia Portuguesa, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual identifica as razões da má qualidade da democracia portuguesa. Em entrevista ao PÚBLICO, a professora alerta para a importância do pacote sobre transparência e defende que o “outsourcing legislativo” é a “devolução de um poder a privados”.
No seu livro diz que a qualidade da democracia é má. Porquê?
Há uma esmagadora maioria dos cidadãos que apoia em abstracto o regime político, o que não acontece na generalidade das novas democracias surgidas após a queda do Muro de Berlim. Esta adesão quase total aos princípios e aos valores basilares da democracia num país que teve 48 anos de Estado Novo, este apoio normativo ao regime é importante.
Mas depois a qualidade é má...
Nos indicadores sobre a percepção dos cidadãos em relação a como funciona a democracia na prática, as suas principais instituições ou a classe política, a avaliação não podia ser pior do que é e, contrariamente às democracias mais recentes, mostramo-nos bastante mais envelhecidos. Os níveis de desconfiança em relação aos partidos são muito superiores.
Conclui que a responsabilidade primordial da má qualidade da democracia é da partidocracia. De que forma os partidos estão a prejudicar a democracia?
Através do monopólio da representação política que continuam a ter para a Assembleia da República. Falo disto, mas não é no sentido de acabar com ele, no que se refere a só os partidos poderem apresentar candidatos à Assembleia e não poder haver listas de grupos de cidadãos como há nas autárquicas. Tenho muitas dúvidas que a solução pudesse passar por aí, acho-a muito difícil e caótica. O monopólio dos partidos, se fosse assumido com um conjunto de mecanismos que não o tornassem por si só um bloqueio, seria interessante.
É nesse sentido que fala da alteração da lei eleitoral?
É. Se os partidos, ao terem de escolher os candidatos, tivessem normas claras, precisas, objectivas de como escolher, de como os ordenar nas suas listas. Repare a situação que temos, que é muito rara nas democracias europeias: quando votamos nas legislativas, estamos a votar nas decisões que o partido tomou dentro de muros sobre quem é candidato e o seu lugar na lista. E, quando votamos, limitamo-nos a ratificar as escolhas feitas por outrem. Por isso é que digo que o interessante é partilhar entre os partidos e os cidadãos este poder de escolher quem nos representa no Parlamento.
Fala de as pessoas poderem ordenar os nomes?
Exactamente. Ter-se-ia de fazer uma divisão do território eleitoral diferente. O interessante era o território ser redesenhado com círculos eleitorais com uma magnitude entre seis a dez candidatos e que o eleitor no boletim tivesse o nome do partido, os nomes dos candidatos e pudesse reordenar as escolhas feitas pelo partido. Assim, as escolhas dos cidadão efectivamente influenciavam quem entrava no Parlamento.
A discussão é recorrente, já houve estudos e propostas do PS e do PSD nunca aprovados. Os partidos não querem mudar as regras do jogo?
Os partidos não querem mudar as regras do jogo. A discussão já foi muito viva, agora é menos, porque as pessoas já perceberam que não passa de retórica. Os principais partidos têm ganhos com este sistema eleitoral. Sendo proporcional, beneficia os maiores partidos devido ao método de Hondt. E os mais pequenos também não têm muita simpatia por fórmulas que vão no sentido maioritário. Mas o problema sério que nós temos é de proximidade do eleito face ao eleitor.
No livro levanta também o problema da cartelização.
Um dos desvios partidocráticos que me parece mais sensível é o da cartelização dos maiores partidos. Já não se quer chegar só ao Parlamento, quer-se sobretudo chegar ao governo, porque temos cada vez mais a colonização do Estado pelos maiores partidos. A colocação de pessoal na administração pública intermédia, de topo, no sector empresarial do Estado, aquilo que são as ditas “profissões parapolíticas”. O que os americanos chamam o spoil system: quer-se ganhar as eleições para se distribuírem os despojos entre os vencedores. Os partidos vivem da patrimonialização do Estado.
Uma das suas conclusões é que não há fenómenos populistas. A popularidade do Presidente é uma canalização dos impulsos populistas de seguir um líder?
Tem tudo que ver. A partir de 2014, por toda a Europa, os partidos de recorte populista ganharam lugares. O populismo não é uma ideologia, tanto pode ser utilizado pela esquerda como pela direita. A divisão que o populismo faz é entre os que se apropriam da soberania do povo e a vontade geral do povo, como se fossem dois mundos incomunicáveis e intocáveis. A concepção da casta dos políticos e o “eles” e “nós”, é esta a fronteira.
E que é mitificada.
Exactamente. Esse discurso é também muito facilitado pelos meios de comunicação social, pela fulanização e pela simplificação. O populismo é um discurso simplificado, apresenta soluções fáceis para problemas complexos. E é caracterizado também pela proximidade entre os governantes e os governados, como se isso fosse um sinal de desapego ao poder, de o político continuar próximo das preocupações das pessoas. Acho que Marcelo Rebelo de Sousa encarnou esse papel da proximidade, a que ele acrescenta os afectos, mas podemos chamar-lhe uma proximidade popular e populista. Os afectos são talvez um populismo lusitano.
Mas essa canalização não é por razões puramente populistas?
O Presidente achou a fórmula certa, que é a de uma magistratura de proximidade, a que ele vai buscar o poder de que necessita em cada momento, como quando foi de Pedrógão Grande, em que o usou sem dó nem piedade. Ele legitima a sua interferência em áreas do Governo com base nessa popularidade de proximidade. Não lhe chamaria populismo, porque além da proximidade ele não usa só temas fáceis. O discurso dele não é tão simples.
Ou seja, não é populista mas canalizou os impulsos populistas?
Canaliza completamente. Nós, até ver, não temos populismo.
Como vê o pacote da transparência?
Juntaram muitos projectos de lei sobre questões que são contíguas, mas que deviam ser tratadas aprofundadamente e separadamente. Todas elas são importante. Talvez a mais importante não seja tanto a da regulamentação do lobbying; se for bem legislado, não acho mal. Mas o que descaracteriza a actividade dos órgãos de soberania é o outsourcing legislativo. E aqui entra a questão inevitável do deputado-advogado. De facto, temos um Parlamento cujas leis, as mais importantes, são feitas fora do próprio Parlamento, encomendadas por ajuste directo a grandes escritórios de advogados, nos quais trabalham advogados que são deputados. Então, quem faz as leis fora do Parlamento, o que já é uma aberração, vem aprová-las dentro do Parlamento.
Esse conflito de interesses deve ser travado?
Devia. Até admitia o outsourcing a título excepcional, quando as matérias são demasiadamente complexas. Agora, em termos recorrentes, acho um desvirtuar do poder legislativo e regulatório do Parlamento. É a devolução de um poder a privados, com tudo o que isto propícia a nível de conflito de interesses, de tráfico de influências. Parece-me o problema mais delicado. Havia uma possibilidade que era dotar de facto o Parlamento de um núcleo de assessoria jurídica especializada comum a todos.
Mas há assessorias.
Existem, por grupos parlamentares, e há assessores que podem ser assim chamados, mas no fundo são pessoas do partido, a quem se ofereceu um determinado tacho: “Tu fazes-me a campanha e eu levo-te para o Parlamento como assessor.” Mas com que qualidade? Com que especificidade? Consulte o perfil dos assessores e não encontra a matéria-prima de que precisa para legislar bem. E legislar mal significa a necessidade de rever leis para que se possam interpretar sem ser de forma dúbia.
E a exclusividade?
Sou contra a exclusividade da função parlamentar. Se eles já se dissociam tanto da sociedade, criar demasiadas incapacidades e incompatibilidades é afastar do Parlamento muitas profissões que são lá precisas. É bom que as pessoas tenham uma profissão, que a exerçam, que retornem a ela. Encararem a política como uma missão meritória, mas transitória. Quem quiser fazer dela a sua própria carreira optará pela exclusividade. Agora, uma exclusividade imposta pelo legislador parece-me um apelo a convidar os piores que estão nos partidos e a arranjar-lhes lugar no Parlamento. E se já não são nada bons os que lá estão...
Como vê os casos dos membros do Governo que se demitiram por investigações do Ministério Público ou por razões de ética?
Vamos ver muitos mais casos, se o pacote da transparência for aprovado. Quanto mais regras se fazem, mais regras se infringem. O que falta? Falta bom senso dos próprios. Há uma cultura na classe política portuguesa, independentemente até da qualificação académica, do estilo de vida que possa ter, que é o sentimento de impunidade. Os políticos em Portugal têm um desfasamento que é ainda não terem interiorizado que o tempo dos media é muito mais rápido, muito mais célere e escrutinador do que era. Eles pensam sempre que não é possível saber-se o que fazem, não há quem saiba. E, hoje, os media fazem um controlo e uma fiscalização política não só sérios, como a um tempo vertiginoso. Não há tempo para o próprio conceber a sua autodefesa. Por isso, é muito bom que, antes de aceitar presentes e convites, o político ponha o bom senso a funcionar e pense: “Posso fazê-lo, mas isto vai ser sabido.” A opacidade do exercício da política é muito própria do português, a ideia de que há coisas que não se sabem. Tudo se sabe hoje, os media sabem em tempo mais do que útil e escrutinam-no.
Em Inglaterra essa questão não se põe. Porque é que os políticos portugueses não têm esse bom senso?
Exactamente. Porque a cultura política inglesa não tem nada que ver com a nossa. Ainda agora um governante inglês se demitiu por chegar atrasado ao Parlamento para responder a uma pergunta. Acho que é excesso de zelo. Não queria tanto. Há em Portugal uma cultura de compadrio e de “aquele fez, eu faço, tu farás, nós fazemos”. Há sempre muita conjugação do verbo fazer nos diversos tempos verbais. É uma questão cultural que não é só da classe política.
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Qualquer pessoa que tenha experiência política ou que conviva com a vida pública, mesmo para lá da política, nas instituições e no Estado, sabe que há muitas práticas que, não sendo ilegais, são inaceitáveis em si mesmas e por maioria de razão para a imagem das instituições e dos homens. Refiro-me a esta coisa tão simples: o acesso a determinados tipos de poder, quase sempre pequenos poderes, permite utilizar lugares e funções em proveito próprio ou dos próximos. Insisto: não estou a falar de crimes, nem mesmo na maioria dos casos de evidentes ilegalidades — estou a falar de abusos e aproveitamentos, infelizmente tão comuns na vida pública portuguesa. Conheci muita gente, e não é retórica o “muita”, que quando acede a um lugar ou um cargo deixa de ter a economia que a maioria das pessoas sem poder tem. Arranja maneira de quase todas as despesas pessoais e nalguns casos dos seus familiares e próximos serem cobertas por dinheiros públicos, aumenta-se a si própria, de forma directa ou indirecta, através de alcavalas ou de prebendas, usa o poder que tem para beneficiar amigos, familiares ou pessoas a quem se devem favores ou se quer que fiquem a dever favores.
José Pacheco Pereira (conhece, sabe do quefala)



quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

INUNDAÇÕES SECAS INCÊNDIOS


·        Incêndios rurais, secas e inundações                                                                                    É necessário dar lugar à transição, do estado actual, para outro mais sustentável.
7 de Fevereiro de 2018
Desde os grandes incêndios do ano passado, muito se tem dito a propósito de florestas. No entanto, há temas que não têm sido abordados e que vale a pena referir: a relação entre floresta, secas e inundações — nada na comunicação social ou no discurso político parece mostrar que há a noção de que são as árvores (umas mais do que outras) que permitem reter e infiltrar água no solo, de modo a permitir a sua utilização futura e evitar a seca e, por outro lado, a diminuir o risco de inundações. Como em Portugal estes fenómenos podem ocorrer num curto período de tempo devido à variabilidade do clima mediterrânico que nos caracteriza, é bom que as pessoas percebam que tudo está ligado. Sem um ordenamento global da paisagem, não há equilíbrio possível e estes fenómenos agravam-se, não devido a imponderáveis climáticos, sempre desresponsabilizadores, mas sobretudo por inépcia dos agentes que actuam sobre o território, incluindo políticas públicas. E se, particularmente algumas árvores, nos podem salvaguardar de secas extremas e inundações (Molkanov [1] recomenda como valor mínimo da florestação de uma bacia hidrográfica 40% da sua área), é fácil perceber que os incêndios rurais têm consequências catastróficas a nível da água disponível, para já não falar do solo que nos sustenta, do ar que respiramos, etc.
Sobre os incêndios rurais tem-se falado, e bem, a propósito de várias vertentes: aldeias seguras, organização do combate, etc. Daquilo que não se tem falado é da futura organização do espaço rural e muito particularmente do espaço florestal. Que pinheiro e eucalipto são as espécies mais combustíveis entre as que ocupam o país, parece já haver uma noção generalizada, embora alguns insistam na máxima de que não é a espécie que interessa (em matéria de incêndios), mas sim a gestão. Se, no total do espaço florestal, 56% é constituído por pinheiro bravo e eucalipto e se, da área que ardeu, 53% era pinheiro bravo e eucalipto (Carta de Ocupação do Solo 2010), é evidente que a composição da ocupação desse espaço tem que ser alterada. Ora, quando o Governo diz que só vai permitir eucalipto nas áreas anteriormente ocupadas por essa espécie, é o mesmo que dizer que tudo vai ficar na mesma. Muito particularmente a área do Pinhal Interior que ardeu praticamente toda, na sua maior parte era ocupada por eucalipto, que aliás já está a regenerar. Também o pinheiro bravo regenera naturalmente com toda a facilidade.
Conclusão: se nada se fizer, o que vamos ter no futuro é mais uma vez eucalipto e pinheiro para alimentar o ciclo infernal dos incêndios. O outro pressuposto que há a considerar é que as folhosas autóctones ou tradicionais, além de serem menos combustíveis, produzem uma folhada capaz de melhor regenerar o fundo de fertilidade do solo do que o pinheiro e o eucalipto e, sem solo vivo, a paisagem e, portanto, o país caminham para o deserto e o despovoamento. Isto obriga-nos à proposta de um modelo de ordenamento do território mais resiliente.
Em síntese, há que criar alternância na combustibilidade da ocupação do território. Esta alternância tem que estar relacionada com a forma do terreno porque esta determina o comportamento do fogo, tanto mais, quanto maior for o declive. Há duas estruturas fundamentais, nas quais se deve garantir a natureza do revestimento: uma constituída pelas linhas de água e os fundos de vale que devem ser revestidos por folhosas da galeria ripícola ou, se houver agricultores, agricultura; outra, constituída pelas cabeceiras das linhas de água que devem ser revestidas por folhosas (que não o eucalipto), ou seja carvalhos, entre os quais o sobreiro que é retardador de fogo (desde que tenha cortiça), mas também o castanheiro. O olival, a vinha e a pastagem são outros modos de ocupação muito úteis para a criação de espaços abertos onde o fogo tem mais dificuldade em progredir. Nas vertentes, as linhas de água secundárias com galerias ripícolas, ou freixo nas situações mais secas, ou ainda agricultura, podem formar linhas, no sentido do maior declive, que interrompem ou retardam a progressão do fogo quando lavra longitudinalmente à encosta. Estas estruturas da paisagem são complementadas por vazios constituídos por vias e caminhos.
A implementação deste novo modelo espacial não nega a existência de eucalipto e de pinheiro bravo, mas implica a redução da área actual e localiza estas duas espécies em situações contidas dentro do “miolo” da nova estrutura criada, embora com exigências específicas de gestão, incluindo a exclusão das zonas mais declivosas. Está-se a falar duma mudança de paradigma que, para acontecer, tem que ser financiada: a agricultura tem um papel importantíssimo na criação de um tampão ao fogo à volta das aldeias e cidades e ao longo dos vales, tal como acontecia antigamente e continua a acontecer em muitos casos. Não se trata da grande agricultura industrial, mas da pequena agricultura familiar que permitirá manter pessoas a viver nas zonas mais desfavorecidas — esta agricultura, que tem um papel muito para além da subsistência dos seus promotores, tem que ser financiada por fundos públicos.
A introdução de folhosas, por plantação ou regeneração natural, também tem que ser financiada. Trata-se de financiar a transição entre um modelo em que o eucalipto e o pinheiro bravo são dominantes, para outro em que as folhosas autóctones materializam uma estrutura de protecção contra os incêndios e de conservação da água, do solo e da biodiversidade. Um dos modos de promover este financiamento é através da instituição de uma tabela de serviços de ecossistemas que contabilize os benefícios que o novo modelo trará para a sociedade. É também preciso mostrar que a nova paisagem criada é economicamente viável, introduz diversidade na produção e pode fixar pessoas no terreno, mas é necessário dar lugar à transição, do estado actual, para outro mais sustentável.
[1] Molchanov, A. A., Hidrologia Florestal, 1963, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1971
Manuela Raposo Magalhães
Arquitecta Paisagista; investigadora do LEAF/ISA/ULisboa