domingo, 27 de maio de 2018

SERVIDÃO MODERNA



Os hábitos da servidão
Alguém escolheu Moscovici para ministro das Finanças de Portugal, responde acaso perante o nosso Parlamento, vai a votos nas urnas, foi eleito pelos portugueses?
26 de Maio de 2018 JPPereira

A gente habitua-se a tudo e não devia habituar-se. Bem sei que, como no anúncio da CNN sobre os factos (uma maçã) e as falsidades (bananas), há um terceiro elemento que é uma daquelas dentaduras de brinquedo a que se dá corda e passa gloriosa e barulhenta diante da maçã: chama-se “distracção”. Temos demasiadas distracções que fazem uma cortina para nos impedir de ver os factos e, não os vendo, não os escrutinamos, nem os analisamos, nem tiramos consequências. Aqui é um exército de dentaduras a bater os dentes, ou seja, mais do que uma distracção, é uma política.
Esta semana, a Comissão Europeia fez mais uma das suas habituais conferências de imprensa pronunciando-se sobre a governação de Portugal. Insisto na caracterização: pronunciando-se sobre o modo como Portugal é governado, um país soberano, com um governo apoiado numa maioria parlamentar, que deveria responder em primeiro e quase único lugar perante a Assembleia da República e os portugueses. As coisas já estão tão envoltas em fumo, que nós achamos normal que um político socialista francês, antigo trotsquista, um dos responsáveis pelo afundamento a pique do seu partido, agora investido na burocracia europeia, se pronuncie, com a maior normalidade, sobre o que acha bem ou acha mal no modo como Portugal é governado. Alguém escolheu Moscovici para ministro das Finanças de Portugal, responde acaso perante o nosso Parlamento, vai a votos nas urnas, foi eleito pelos portugueses? Não, não e não, três nãos. E, no entanto, estas perguntas são aquelas que deveríamos fazer, se tivéssemos os olhos abertos.
O que ele está a fazer chamava-se, na diplomacia antiga, “droit de regard”, ou seja, o “direito de exercer um controlo sobre qualquer coisa”, como a Inglaterra tinha sobre Portugal nos tempos do Ultimato, na verdade, antes e depois, como os EUA queriam exercer no pós-25 de Abril, como a URSS tinha na Finlândia, ou com a teoria da “soberania limitada” que justificou a invasão da Checoslováquia, por aí adiante com centenas de exemplos, nenhum bom. Não adianta dizer “como os portugueses o desejaram quando entraram para a Europa”. Falácias, porque muito do que é hoje a União Europeia pouco tem que ver com o projecto inicial, muito do que se diz serem as “regras europeias” não o são, estão em tratados que não são “europeus”, e outros que foram “vendidos” aos europeus com dolo, como sendo uma coisa, quando, afinal, são outra. Lembram-se como o Tratado de Lisboa era um marco na devolução de poderes aos parlamentos nacionais? Não, não se lembram, porque este tipo de embustes é suportado por tantos interesses, da comunicação social aos negócios, à política, que nem sequer se pára para pensar. Depois admiram-se com o crescendo do populismo e do antieuropeísmo na Europa, como se não tivessem nada que ver com o monstro que ajudaram a criar.
Se quiserem perceber como é que a Europa chegou ao estado a que chegou, ouçam Moscovici sem distracções. O que ele e os outros comissários dizem não é uma neutra especulação económica, nem a aplicação de uma vulgata “científica” da economia – é um conjunto de recomendações, ao estilo de ordens, de carácter político. Político. Político. Deixem lá a dentadura passar que a maçã continua lá atrás: político. Porque Moscovici não fala de todos os problemas portugueses, fala da ortodoxia (aliás, partilhada com o nosso ministro das Finanças) da economia do “ajustamento”, o rastro das ideias e práticas da troika. Ele nunca diz que um problema dos portugueses é o alto nível de pobreza, são as desigualdades sociais ou os salários baixos, ou a degradação dos direitos sociais, ou o caos nos serviços públicos a começar pela Saúde. Não, o que ele diz é: não comecem a gastar demais com a Saúde, olhem para a despesa antes de tudo, e claro que recomenda que “racionalizem” a despesa, coisa que sabemos pela experiência da troika o que significa. Ele não está preocupado com o facto de os portugueses poderem ser vítimas das políticas de “poupança” (o eufemismo para os cortes) na Saúde – o que o preocupa é que a agitação social dos utentes e dos profissionais possam levar o Governo a gastar mais nos hospitais. Porque é que tenho a certeza que, se fosse para os bancos, ele não diria o que disse?
Por tudo isto, o pior é habituarmo-nos. Não é democrático, não é aceitável, não é normal. Defendamos a maçã da pilha de bananas, e tiremos a corda à dentadura, antes de gentilmente a mandarmos para o lixo


sexta-feira, 25 de maio de 2018

FUTEBOL : ANESTESIA NACIONAL


Intoxicação pelo futebol
Jorge Miranda
O futebol transformou-se, entre nós, num lamentável instrumento de deseducação e de alienação (para não dizer mais).
24 de Maio de 2018

Os recentes acontecimentos num determinado clube têm mostrado, de forma espantosa, até onde pode ir a intoxicação pelo futebol. Não nego a gravidade dos incidentes ocorridos em Alcochete, mas, para além de tudo mais, verificam-se em Portugal e no mundo situações muito mais graves, preocupantes e complicadas de que quase se não tem falado ou de que deixou mesmo de se falar.

No tempo de Salazar, dizia-se que o futebol era uma forma de afastar as pessoas da política. Agora, ao fim de mais de quarenta anos de democracia, o poder do futebol atingiu níveis insuspeitáveis. Basta reparar no número de jornais diários a ele dedicados; no espaço e no tempo que ocupa nos outros órgãos de comunicação social, em particular na televisão; no relevo dado, nos noticiários da rádio e da televisão, aos seus dirigentes, treinadores e jogadores, muito superior ao atribuído a outros agentes da nossa vida coletiva e a dirigentes políticos; nas transmissões frequentes de jogos (até entre equipas estrangeiras) nos chamados horários nobres; nos cafés e restaurantes, por esse país fora, abertos para acompanhar os jogos ou os treinos.
O futebol transformou-se, entre nós, num lamentável instrumento de deseducação e de alienação (para não dizer mais).
Tem que se reconhecer que o fenómeno, em maior ou menor escala, se observa igualmente em todos os países europeus e da América Latina; que os campeonatos internacionais vêm adquirindo uma importância também política imensa; que a FIFA acaba por ser um importante centro de influência e de poder. Apenas duvido de que, em qualquer outro país, aqueles acontecimentos e as vicissitudes subsequentes no referido clube ocupassem horas e horas, dias e dias em todas as estações de rádio e de televisão e que até titulares de órgãos de soberania fossem chamados a pronunciar-se.
Em vez disso, que atenção tem prestado a RTP, estação oficial, paga pelos contribuintes, a questões como a da OPA de uma empresa estatal chinesa sobre a EDP, fundamental empresa estratégica portuguesa? Quanto tempo tem dedicado à situação do serviço nacional de saúde ou da justiça, às desigualdades do interior, à crise do sistema ferroviário? Quantos debates entre especialistas tem promovido acerca da paternidade responsável, da gravidez de substituição, da eutanásia? Que atenção tem prestado aos dramas dos Palestinianos e dos venezuelanos, às guerras na Síria, no Afeganistão ou na Somália? Como tem discutido a vaga de nacional-populismo em vários Estados da União Europeia? Como tratou dos ataques terroristas a igrejas na Indonésia?

A RTP – e, designadamente, a RTP1 (o seu canal generalista e o mais visto pelas pessoas) tem de se reorientar e mudar. Tem (sem prejuízo da RTP2) de se abrir à cultura, com programas periódicos (mais ou menos breves ou longos, consoante os casos) sobre a língua portuguesa, sobre os museus e monumentos, sobre as artes, sobre o folclore, sobre a história, sobre o mar. Deveria contribuir para a sensibilização ambiental. Deveria estar mais voltada para a realidade religiosa, na diversidade de crenças e de vivências, não deixando de ser uma estação laica. Deveria acompanhar mais de perto os trabalhos do Parlamento, em plenário e em comissões dentro do pluralismo político.
Não se trata, resta acrescentar, de fugir ao futebol, em especial quando se aproxima mais um Campeonato do Mundo. Trata-se apenas de lhe dar o lugar que num Estado democrático empenhado constitucionalmente em promover a efetivação dos direitos económicos, sociais e culturais, lhe pode caber. Tudo com conta, peso e medida. Tudo com equilíbrio.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

PALESTINA JÁ NÃO EXISTE ?

Contributo informativo do Embaixador Fernando D´Oliveira Neves que ajuda a compreender a situação na Palestina hoje.
MC


O Estado iníquo do povo justo e a embaixada fora da lei
Israel nasceu torto e por este andar não vejo como alguma vez se vai endireitar.
23 de Maio de 2018
Fernando D´Oliveira Neves

Bastaria Jesus Cristo, que era judeu, e ao enunciar a igualdade inventou o humanismo, para adjectivar de justo o povo judeu. Mas o reino de Cristo era de outro Mundo. Também poderia bastar o contributo que o povo judeu deu, em todos os campos, para a civilização dita ocidental. Mas é sobretudo a perseguição odiosa, infame e insuportável de que foi objecto ao longo da História por parte desse mesmo ocidente cristão, e bem assim a resistência sublime que lhe soube opor, que me leva a querer apodar os judeus de povo justo. O que me leva a sentir sufocado pela injustiça que a política do Estado de Israel faz à sua memória e aos valores humanistas que são a marca do sofrimento dos judeus e da revolta que com eles partilhamos.

Israel nasceu torto e por este andar não vejo como alguma vez se vai endireitar. O terrorismo foi um dos vectores da criação do Estado de Israel, juntamente como um efectivo lobby político e o justificado sentimento de culpa por parte dos europeus, culpados do crime repugnante da perseguição milenar aos judeus que atingira a infâmia total com o Holocausto.
Como também à irresponsável tibieza do governo britânico que, mais uma vez, brincou aos deuses ao decidir o destino das suas colónias. Tirou literalmente das suas casas cerca de 800 mil árabes que lá viviam para nelas colocar judeus. Literalmente, insisto. Ouvi discussões entre palestinos nascidos em Jerusalém e judeus, nascidos na Bulgária ou na Polónia, que ocupavam a casa daqueles.  
Seguramente era justo, após todo o sofrimento infligido aos judeus, procurar-lhes uma terra onde pudessem construir a sua pátria e aí viver em segurança. O problema é que foi escolhido um território ocupado por outro povo e assim se criou, artificialmente, mais uma disputa entre dois povos pelo mesmo território.
A decisão das Nações Unidas passou pela criação, nesse território, de dois Estados, com Jerusalém dividida sob a autoridade internacional. Os árabes não aceitaram essa solução, pois, como disse Ben-Gurion, primeiro primeiro-ministro de Israel, se fosse palestino também não aceitaria negociar entregar a sua terra aos judeus, pois não foram eles que os expulsaram de Israel, não é deles o Deus que prometera Israel aos judeus e não tinham sido os árabes que haviam perseguido os judeus e perpetrado o Holocausto.
A oposição árabe não foi, porém, suficiente para impedir a criação do Estado de Israel, nem a expulsão dos 800 mil palestinos que ainda hoje vivem em campos de refugiados, verdadeiros viveiros de ódio, que foram contaminar os países vizinhos, alguns dos quais passaram a ser teatro de guerras alheias.
Se ainda hoje se fala dos dois Estados como solução para o problema do Médio Oriente, a verdade é que a sucessão de guerras, a ocupação por Israel da margem ocidental e o sucessivo estabelecimento estratégico de colonatos israelitas ilegais inviabiliza, na prática, a criação ali de um Estado palestino.
Israel não se coibiu de conduzir esse processo em arrogante desafio ao Direito internacional e ignorando as sucessivas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É, aliás, impressionante a lista dessas resoluções que Israel não cumpriu.
No final dos anos setenta, após várias guerras, o processo de consolidação da posição de Israel nos territórios ocupados e o início da criação dos colonatos estava em pleno progresso.
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Em Junho de 1980, preocupado com a denúncia de que Israel estava a preparar legislação para alterar o estatuto da Cidade Santa, o Conselho aprovou a resolução 476, que reafirmou a condenação da aquisição de território pela força e a inalterabilidade do estatuto de Jerusalém. Com a sua habitual indiferença perante a lei e a justiça, o governo de Israel aprovou logo a seguir a anexação de Jerusalém Leste.
Portugal ocupava então, pela primeira vez, um lugar no Conselho de Segurança e eu, no primeiro posto da minha carreira, integrava a delegação portuguesa, onde tinha, sob a orientação elucidada do embaixador Leonardo Mathias, a questão do Médio Oriente. No dia seguinte à anexação andava eu pelos passos perdidos das Nações Unidas, onde a deliberação israelita tinha naturalmente provocado grande alvoroço e se discutia um violento projecto de resolução, apresentado pelo grupo árabe, em resposta a essa flagrante infracção da legalidade. Com a ajuda do sr. Ascenção, funcionário permanente da nossa Missão, que conhecia a ONU como as mãos dele, fomo-nos dando conta que apesar do clima de justa e radicalizada indignação, havia entre os árabes quem tivesse a percepção de que seria mais vantajoso, para a causa palestina, tentar obter uma resolução moderada, do que apresentar o tal projecto que garantia o veto americano, visto que a política americana para o Médio Oriente é refém da política delinquente de Israel.
A delegação portuguesa era chefiada pelo embaixador Vasco Futscher Pereira, o mais distinto embaixador da sua geração, que ocupava, nesse mês de Agosto de 1980, a presidência do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. Ao fim da tarde, o embaixador reunia os membros da delegação no gabinete da presidência no próprio edifício da ONU. Fui para essa reunião com o intuito de transmitir a ideia de que seria possível conseguir aprovar, na nossa presidência, uma resolução moderada. Mas o embaixador estava furioso, o que era nele muito raro, com a reacção dos árabes, não ligou muito aos meus argumentos e disse que não tencionava tomar qualquer iniciativa nesse sentido. 
Fui para casa cabisbaixo, pois estava absolutamente convencido de que, como aliás se veio a verificar, haveria condições para aprovar uma resolução e estávamos a perder uma ocasião única para que a nossa presidência granjeasse o reconhecimento da quase (Israel) unanimidade dos membros das Nações Unidas.
No dia seguinte de manhã, estava eu desanimado no meu gabinete quando o embaixador Futscher irrompe por ali a dentro e me manda ligar para o embaixador Terzi, representante da OLP junto da ONU. Eu ainda esbocei a minha surpresa face ao dia anterior, mas Futscher diz-me “deixa-te de coisas e faz o que te digo”, o que fiz com entusiasmo. E convocou para essa tarde, já com o acordo dos palestinos, um reunião com os cinco membros ocidentais do CS (além de nós e dos três permanentes, a Noruega) e o embaixador da Tunísia, país moderado e também membro do CS.
Foi uma reunião dura, longa e fascinante. Os americanos enviaram à reunião um diplomata sénior, que logo que chegou se sentou com os braços cruzados e um ar contrariado que parecia querer manifestar distância em relação à posição que foi defendida pelo colega da Missão americana que o acompanhava. Este era nada mais, nada menos que um advogado judeu (!). Foi com ele que durante horas prosseguiu a discussão com os restantes membros ocidentais do Conselho. A certa altura, Futscher sai por um momento da sala. Um pouco depois de ele regressar entra uma secretária que vai dizer ao embaixador da Tunísia que havia um telefonema para ele. Mal o tunisino sai, redobra a pressão para o americano ceder e aceitar não vetar o projecto de resolução que lhe tínhamos apresentado e estava a ser discutido. Passada uma boa meia hora, Futscher chama-ma e diz-me “vai ter com o tunisino, que deve estar farto de estar à espera”. Então mas ele não está ao telefone?, pergunto eu. “Não, fui que inventei isso para podermos ser mais veementes com o americano.” E foi assim que alcançámos o desfecho que pretendíamos, só possível graças à brilhante perícia diplomática de Futscher Pereira.
Foi assim aprovada, na presidência portuguesa de Agosto de 1980, a resolução 478, que sancionava e considerava nula e de nenhum efeito pela lei internacional a anexação por Israel de Jerusalém Leste e pedia aos países que ainda tinham embaixada em Jerusalém para a retirarem para Telavive. Resolução que agora os Estados Unidos vêm contrariar, violando a lei internacional e cedendo à política de força e discriminação étnica que Israel insiste em prosseguir e me surpreende como a menos adequada para honrar a memória dos judeus que foram perseguido ao longo da História e que pereceram na ignomínia do inferno do Holocausto. 
Embaixador reformado

terça-feira, 15 de maio de 2018

A CORRUPÇÃO É UMA ESCOLHA PARA AUMENTAR AS DESIGUALDADES SOCIIAS

Artigo oportuno sobre o Poder Local, que muitas vezes é um "poder" contra as populações.


As outras “baixas densidades”
Os poderes locais vivem numa quase impunidade, irregularidades e ilegalidades sendo moeda corrente...
·        15 de Maio de 2018 
J.-M. NOBRE-CORREIA


Ser imperial e centralista é a tendência natural de Lisboa: os últimos séculos provam-no sobejamente. Foi-o em relação aos territórios de além-mar. E continua a sê-lo em relação ao Portugal “do interior”, para além do território que considera ser a sua inevitável área de expansão.
Com o regresso da democracia, a situação não mudou de maneira claramente percetível. E os projetos atuais de descentralização municipalista, sem criação de regiões, acentuarão ainda mais a situação dos pequenos potentados locais que se comportam como reizinhos da terra.
A verdade é que a desgraça económica, social, cultural e demográfica em que se encontram as regiões de “baixa densidade” não são só fruto da tendência imperial e centralista de Lisboa. A situação convém perfeitamente a notáveis locais que vivem assim em grande impunidade no que diz respeito ao Estado de direito, às suas leis e aos seus regulamentos. Porque os poderes executivo e legislativo nacionais não sabem o que por cá se passa. E porque os media ditos nacionais também o ignoram.
O “pessoal político” que ocupa os postos de comando da sociedade portuguesa é em grande parte oriundo de Lisboa ou residente a maior parte do tempo em Lisboa. Mesmo quando se faz eleger em distritos eleitorais “do interior” de que tudo ignoravam e de que tudo continuaram largamente a ignorar, pois não vivem a vida quotidiana dos que cá residem realmente. Mesmo se não têm pejo algum em declarar residirem “no interior” e assim usufruírem das benesses financeiras do Estado e das suas “ajudas de custo”. Sejam embora os endereços declarados muitas vezes fictícios e que os que cá vivem e trabalham nunca ou quase nunca os por cá vejam.
Este sistema político aberrante que permite que sejam eleitos (a nível nacional como local) gente que de facto não reside (e até, por vezes, nunca residiu) nos círculos eleitorais que vão representar, não favorece a tomada de conhecimento pelas instituições centrais do Estado das ilegalidades e irregularidades praticadas quotidianamente a nível local. E a função de contra-poder, que é uma das razões de ser dos media, também ela é pouco ou nada exercida.
A fragilidade dos media locais, nomeadamente em termos jornalísticos, faz que tenham em boa parte dos casos caído mais ou menos indiretamente nas mãos dos eleitos locais, passando a ser quase sempre boletins oficiosos da ação destes. Enquanto que para os media ditos nacionais “o interior” é uma zona cinzenta da informação, dispondo raramente de correspondentes locais e vendendo cá os jornais um número irrisório de exemplares.
Desde logo, as chamadas autoridades locais vivem numa quase-impunidade. Constituindo as suas redes de exercício do poder, fazendo eleger funcionários municipais como presidentes de juntas de freguesia, de corporações de bombeiros, de instituições bancárias regionais, de misericórdias, de instituições culturais, de associações desportivas ou de lazer... De tal modo que toda e qualquer crítica positiva ou mera oposição seja muito simplesmente impossível.
A articulação entre instituições locais assim arquitetada faz que todos os abusos, ilegalidades e irregularidades passem a ser prática corrente. Os departamentos da administração local agem assim com total desenvoltura perante os cidadãos, não respondendo sequer às diligências destes, ignorando soberanamente cartas registadas ou aviso de receção e mesmo diligências de advogado. Enquanto que os dossiês legalmente consultados pelos cidadãos são escandalosamente traficados de uma consulta para a outra, com a substituição de documentos e o desaparecimento de outros, em função dos reparos do dito interessado.
·         
Neste tipo de situações, em Lisboa e até, sejamos benevolentes, no litoral centro-norte do país, haveria sempre alguma “fuga” generosa que chegaria a “jornalistas de investigação”para fazer rebentar uma “exclusividade” picante. No Portugal “do interior”, os escândalos de administrações locais caiem no silêncio da indiferença da política, da justiça e do jornalismo. E os pequenos potentados locais querem que assim continue a ser, de modo a que possam reinar soberanamente na “sua” freguesia” ou, melhor ainda, no “seu” concelho...
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles

segunda-feira, 14 de maio de 2018

O OUTRO LADO DE ISRAEL




    Forças israelitas matam 37 palestinianos na Faixa de Gaza
Mais de 900 manifestantes da Marcha do Retorno ficaram feridos. Já morreram mais de 80 pessoas desde que começaram estes protestos, há seis semanas.
14 de Maio de 2018

 Número de palestinianos mortos sobre para 41

De acordo com os serviços de saúde palestinianos, o número de manifestantes mortos nesta segunda-feira subiu já para 41.
                                                                                                                                           Setenta anos depois, os jovens não esqueceram
É em cima desta memória, que é o seu pecado original, que o Estado de Israel está construído.
14 de Maio de 2018
Carlos Almeida

No dia 7 de Fevereiro de 1948, Ben-Gurion, à época presidente da Agência Judaica, visitou Lifta, uma vila nos arredores de Jerusalém cuja população fora expulsa pela acção das milícias sionistas. No regresso, reflectindo sobre o alcance daquelas operações militares, partilhou os seus pensamentos com o Conselho Central do seu partido:

“Quando cheguei agora a Jerusalém, senti que estava numa cidade judaica [...]. É verdade que nem toda a Jerusalém é judaica, mas existe já nela uma zona judaica: quando se entra na cidade, através de Lifta e Romema (...) – não há árabes. Cem por cento de judeus [...]. Se continuarmos, é realmente possível que nos próximos seis ou oito meses existam mudanças consideráveis no país, muito consideráveis, e a nosso favor.” [1]
Ben-Gurion sabia do que falava. Nos meses seguintes, perto de 800 mil pessoas foram expulsas das suas casas e terras – o equivalente a cerca de 90% da população do território que o plano de partilha da Palestina consagrado na resolução n.º 181 da Assembleia Geral da ONU, de 29 de Novembro de 1947, atribuía a um futuro Estado judaico – 531 povoações foram destruídas, 11 áreas urbanas totalmente esvaziadas de população. Desde os finais de 1947 e durante pouco mais de um ano, a Palestina foi varrida por uma tempestade de destruição, mortes e atrocidades pontuada por massacres como os de Balad al-Shaykh, Deir Yassin, Ayn al-Zaytun, Tantura, Dawaymeh.
É em cima desta memória, que é o seu pecado original, que o Estado de Israel está construído. O sonho de um território etnicamente limpo está no coração do projecto sionista e é ele que orienta a política do Estado de Israel desde a sua constituição, seja pela expulsão da população ali residente há gerações, seja pela acção de um aparelho político, jurídico e militar que segrega e discrimina a população palestina, reduzindo-a a uma condição de sub-existência. Yosef Weitz, o homem forte do todo-poderoso Fundo Nacional Judaico, escreveu-o com cristalina clareza no seu próprio diário no dia 20 de Dezembro de 1940: “A única solução é uma Terra de Israel (...) sem os árabes. Não há espaço aqui para compromissos.” [2]
A propaganda de Israel glosa à saciedade a figura da vítima indefesa, ameaçada desde o seu nascimento, lugar de refúgio vital e derradeiro de uma história de perseguições e sofrimentos de que os crimes do nazismo foram a expressão mais radical e violenta. Mas nenhuma das declarações de dirigentes sionistas aqui reproduzidas foi proferida depois de 15 de Maio de 1948. E a maior parte dos crimes aqui evocados ocorreu bem antes dessa data.
A generalidade das potências ocidentais viu no sionismo a solução para a sua “questão judaica”. Kishinev, Auschwitz, Buchenwald não são lugares na Palestina, mas foi para lá que uma estranha e duradoura aliança entre o anti-semitismo, os interesses imperiais das potências ocidentais e o movimento sionista projectou a solução para tal problema. Foi essa aliança que inventou o mito da terra sem povo para um povo sem terra. A declaração do secretário britânico Arthur Balfour, proferida no dia 2 de Novembro de 1917, assegurando o apoio do Império Britânico à consumação do projecto sionista referia-se à população da Palestina como “colectividades não-judaicas”, e cem anos depois, na cerimónia que evocou aquela data, Theresa May voltaria a repetir aquela mesma expressão. Mas até alguns dos primeiros sionistas que visitaram a Palestina no último terço do século XIX sabiam como era falsa essa lógica que reduzia a população da Palestina à condição de negativo, sem identidade própria, nem relação com a terra que habitava e onde tinha as suas raízes.
Em 1988, no Conselho Nacional reunido em Argel, a OLP ofereceu ao mundo a possibilidade de uma solução política para a questão palestina, naquela que foi a primeira e mais dolorosa concessão feita até hoje em todo este processo. Abdicando de 78% do seu território, muito mais do que os 56% que a resolução n.º 181 da ONU atribuía ao Estado de Israel, o povo palestino reclamou o seu direito a constituir um estado livre, independente e soberano nos territórios ocupados em 1967: margem ocidental do rio Jordão, faixa de Gaza, Jerusalém Oriental.
Contudo, o processo de Oslo – tornado possível à custa exclusiva do sacrifício histórico da decisão da OLP – só trouxe a intensificação da campanha de limpeza étnica e segregação da população palestina, com a expansão imparável dos colonatos, a construção do Muro de separação, a multiplicação da malha decheckpoints e da rede de infra-estruturas que servem apenas os colonos, a repressão brutal e indiscriminada e o bloqueio criminoso a Gaza. Com a complacência, a cumplicidade ou o apoio activo das grandes potências, o território da Palestina outrora administrado pelo Mandato Britânico foi submetido, de facto, a uma ordem segregadora, um Estado policial e racista, um verdadeiro regime de apartheid. No passado dia 1 de Maio, com a aprovação no Knesset da nova lei de nacionalidade, foi colocada uma nova pedra nesse edifício. Com ela, Israel dispensa até o qualificativo de “democracia”: estado confessional, exclusivo para os seguidores de uma religião, em qualquer parte do mundo onde vivam, é tudo quanto lhe basta. 
E uma vez mais, o mundo silencia a ignomínia. Os Estados Unidos da América anunciaram o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel. Assim como a extrema-direita racista e xenófoba no poder em Israel dispensa até um simulacro de democracia, também Trump se isenta da observância do direito e da legalidade internacional. Convém não esquecer: Jerusalém é terra duplamente ocupada, contra a resolução n.º 181 da ONU, à sombra da qual Israel reclama a sua existência como Estado, e contra a resolução n.º 242, que considera ilegal a ocupação dos territórios tomados pela força em 1967. As potências europeias são cúmplices deste estado de coisas, caucionando o insulto norte-americano, ou legitimando a lógica segregacionista de Israel, ao ponto de, em alguns casos, criminalizar até o exercício democrático da crítica à política dos governos daquele país.
Setenta anos volvidos, entretanto, os descendentes dos que foram mortos ou expulsos das suas casas naqueles anos de 1940, ou depois durante a campanha de ocupação total da Palestina, em 1967, mostram ao mundo, da forma mais singela e dramática, que, ao contrário do que Ben-Gurion chegou a imaginar, muitos velhos terão morrido, mas os jovens não esqueceram. Na coragem e determinação com que enfrentam as patrulhas do exército israelita dispostas como verdadeiros pelotões de fuzilamento ao longo da Faixa de Gaza, na dignidade com que suportam as humilhações diárias, com que defendem cada oliveira, cada centímetro de terra, ao mesmo tempo que afirmam a sua condição de palestinos, transformam em carne viva a pergunta lancinante de Mahmoud Darwish: “Senhoras e senhores de bom coração, a terra dos homens é mesmo de todos os homens? Onde está então o meu casebre?” Nas suas vozes, o passado e a memória faz-se presente e promessa de futuro.
[1] Gershon Rivlin e Elhanan Oren, The War of Independence: Ben-Gurion’s Diary, Tel-Aviv, Ministry of Defence, 1982, pp. 210/211, citado por Ilan Pappe, The Ethnic Cleansing..., p. 68
[2] Diário de Josef Weitz, 20.12.1940, citado por Benny Morris, The Birth of Palestinian Refugee Problem Revisited, Cambridge University Press, 2004, pp. 53/54
Vice-Presidente do MPPM – Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Os "paraísos fiscais" ou "offshores" são os altares sagrados do capitalismo, os cofres fortes da corrupção, do tráfico de armas, de seres humanos e de órgãos, do financiamento de guerras e do terrorismo, são a cloaca do mundo.
A pergunta que se impõe é qual a razão que permite a sua existência e continuação?
O artigo que se divulga é mais uma posição contra a sua existência, uma posição ética e moral, necessária, mas sabemos que vai ter pouco impacto. Mas temos de continuar a denuncia.
A outra pergunta que coloco é : qual a razão que leva a que todos os governos do mundo estejam calados sobre o assunto?
Martins Coelho

Tempo de agir nos paraísos fiscais
MIGUEL URBÁN
MALIN BJÖRK
MARISA MATIAS
NIKOLAJ VILLUMSEN
YOUNOUS OMARJEE

Agora é o tempo de agir – de uma vez por todas! Porque as promessas firmes para acabar com os paraísos fiscais converteram-se em palavras vazias.
3 de Maio de 2018

Os paraísos fiscais e a evasão fiscal corroem o Estado Social. É por isso que, em vários parlamentos nacionais, iremos trabalhar em iniciativas legislativas para uma lista negra de paraísos fiscais mais abrangente e com sanções bem mais eficazes.

Um sistema fiscal sólido e justo é uma das bases do Estado Social. Se queremos professores nas escolas, médicos nos hospitais e assistência social durante a reforma, precisamos de um sistema tributário que funcione.
É por isso que é tão grave que as multinacionais continuem a ser autorizadas a ocultar lucros em paraísos fiscais e a jogar com os Estados, que competem uns com os outros, para obter acordos fiscais lucrativos. A optimização fiscal agressiva é uma prática gananciosa sem escrúpulos e prejudica seriamente os nossos sistemas tributários.
Nesta perspectiva, nós enquanto principais forças progressistas da Dinamarca, Espanha, França, Suécia e Portugal, apelamos a verdadeiras soluções para as grandes questões transfronteiriças do nosso tempo e decidimos começar por abordar a questão dos paraísos fiscais.
Na sequência dos casos LuxLeaksPanama e Paradise Papers, todos concordaram que era imprescindível lutar contra os paraísos fiscais. Agora é o tempo de agir – de uma vez por todas! Porque as promessas firmes para acabar com os paraísos fiscais converteram-se em palavras vazias.
A lista negra de paraísos fiscais da UE é um claro exemplo disso mesmo. A começar pela definição de paraísos fiscais, a lista negra da UE eliminou o seu próprio objectivo antes mesmo de começar, ao indicar claramente que uma taxa de imposto de 0% sobre as sociedades não constitui em si mesmo uma violação do critério de tributação justa. Ora, se uma taxa de imposto de 0% sobre as sociedades não é injusta, então o que é?
Como já é hábito na UE, as negociações das listas negras dos paraísos fiscais foram feitas à porta fechada, longe da opinião pública. Várias fugas de documentos mostraram, no entanto, que alguns Estados-membros bloquearam activamente a criação de uma lista negra abrangente, e que os incluía. É uma farsa criar uma lista negra e deixar de fora paraísos fiscais óbvios como Malta, Luxemburgo, Irlanda ou a Holanda. Estes paraísos fiscais da UE custam aos restantes Estados-membros milhares de milhões de euros em receitas fiscais, que se perdem todos os anos.
Para piorar as coisas, as promissoras reformas dos paraísos fiscais foram removidas da lista negra e transferidas para a chamada lista cinza, evitando assim quaisquer sanções. A lista já incompleta está agora reduzida a dez paraísos fiscais.
Estes Estados-membros, classificados como paraísos fiscais cinza, aprovaram, deliberadamente, legislação que permite que as multinacionais, os chefes de Estado corruptos e os super-ricos escondam a sua riqueza. Ao contrário de todas as evidências, a UE optou por confiar nestes paraísos fiscais que simultaneamente afirmam estar a fazer tudo o que está ao seu alcance para criar uma política mais justa.
Estamos muito preocupados. E o facto de a pessoa responsável pela luta contra os paraísos fiscais e evasão fiscal ser, nada mais, nada menos, que o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ex-primeiro-ministro do Luxemburgo, em nada diminui a nossa preocupação. Juncker não foi apenas chefe de Estado de um paraíso fiscal da UE, como usou a sua posição para negociar pessoalmente acordos fiscais ilegais com multinacionais.
A construção da União Europeia favoreceu a livre circulação de capitais, permitindo ao mesmo tempo políticas de dumping social, através das quais os Estados-membros reduzem impostos para atrair capital. Além disso, permite-se ainda a existência de paraísos fiscais, como o Luxemburgo, dentro do espaço europeu. Este não é apenas um problema de tributação de impostos na Europa, mas em todo o mundo, uma vez que o Luxemburgo funciona como um centro para fluxos opacos de capitais globais.
A evasão fiscal é uma questão crescente em todo o mundo. As estimativas colocam a receita fiscal perdida em cerca de 50 a 70 mil milhões de euros por ano, apenas na UE. Esta é uma enorme ameaça ao Estado Social na Europa e deixa milhões de pessoas na pobreza nos países em desenvolvimento.
Quando a UE se recusa a introduzir uma legislação sólida, os países afectados devem agir por conta própria. Neste sentido, nós, as forças progressistas da Europa, vamos propor iniciativas coordenadas nos nossos parlamentos nacionais para criação de uma lista negra de paraísos fiscais abrangente. De país para país, numa coligação de interessados, introduziremos regulamentação mais rígida.
Queremos fortalecer os critérios de tributação justa para que países com impostos muito baixos para as multinacionais não escapem da lista negra.
Queremos remover a lista cinza, como forma de criar pressão sobre os paraísos fiscais europeus, mesmo que estes nos continuem a prometer a lua. Queremos uma lista negra que inclua todos os países e jurisdições que não cumpram os critérios – incluindo Estados-membros da UE.
Finalmente, queremos aumentar a pressão sobre os paraísos fiscais que fazem parte da lista negra. Queremos proteger os lançadores de alerta e punir os bancos e conselheiros fiscais ligados a paraísos fiscais. Exigimos a possibilidade de proibir a celebração de qualquer contrato entre o Estado e empresas envolvidas em evasão fiscal ou planeamento tributário agressivo. É absurdo que a tomada de decisão no sector público não possa recusar contratos com empresas que activamente enfraquecem as contas públicas.
Actualmente, proibir essas empresas de celebrar contratos públicos é contrário à legislação europeia. Deste modo, a UE está a impedir os Estados e os municípios de protegerem os sistemas de bem-estar social contra empresas que fogem aos impostos. É, pois, fundamental que se altere esta legislação. Por isso não deixaremos de desafiar a legislação europeia existente, de desobedecer e de tentar encontrar formas para impedir essas empresas de lesar os interesses dos cidadãos.
Este é o começo de uma longa luta. Medidas adicionais serão anunciadas nos próximos meses – tanto no Parlamento Europeu como em muitos dos nossos parlamentos nacionais. Combater a evasão fiscal dos poucos beneficiará os muitos e irá proteger e fortalecer a base da nossa educação, saúde e segurança social.
Eurodeputado e secretário europeu do Podemos, Espanha
Eurodeputada, Partido de Esquerda da Suécia
Eurodeputada, Bloco de Esquerda, Portugal
Deputado e vice-presidente do grupo parlamentar da Aliança Vermelha-Verde, Dinamarca

Eurodeputado, La France Insoumise, França