terça-feira, 21 de março de 2017


Antes era assim.


PLUMA CAPRICHOSA
CLARA FERREIRA ALVES
TÃO FELIZES QUE NÓS ÉRAMOS
Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós
Anda por aí gente com saudades da velha portugalidade. Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança.
Eu não ponho flores neste cemitério.
Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um luxo. A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns preciosos pêssegos. As frutas tropicais só existiam nas mercearias de luxo da Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido em fatias fininhas para render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para render mais. Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho. A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos, era normal. Tive dez e morreram-me cinco. A altura média do homem lusitano andava pelo metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.
Amortalhado a negro, o povo era bruto e brutal. Os homens embebedavam-se com facilidade e batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes que apareciam nos jornais com o título ‘Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos’. A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia filhos bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em putas. As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram mandados para o seminário. Este sistema de escravatura implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e viviam pelas traseiras. O trabalho infantil era quase obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas. A fronteira demorava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum. De vez em quando, um grande carro passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar-se à burocracia do regime que instituíra uma teoria da exceção para os seus acólitos. O suborno e a cunha dominavam o mercado laboral, onde não vigorava a concorrência e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava favores a quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte, evidentemente.

sábado, 18 de março de 2017


Tenho andado afastado do blogue há semanas, fiz umas pequenas férias. Hoje li um artigo com o qual concordo em muito do que diz. Aqui fica à vossa apreciação.


JAPinto                                                                 O radicalismo de esquerda e a questão social
O que é perigoso é existirem 116 mil vínculos precários no Estado.
18 de Março de 2017

Começo a ficar preocupado. Não consigo decifrar o conceito político de esquerda radical. Os ideólogos que defendem todos os dias a vinda rápida do diabo para o palco da política nacional consideram a esquerda radical populista e perigosa. Estes construtores de opinião utilizam todas as suas ferramentas intelectuais para incutirem nos cidadãos a ideia de que a esquerda radical tem propostas e soluções políticas que são poesia, irrealistas, utópicas, completamente desligadas do contexto europeu e do resto do mundo.
A esquerda radical é populista e perigosa porque não aceita contaminar o discurso político com questões técnicas. Um bom exemplo disso é o da renegociação da dívida. É muito técnico e complexo e, por isso, é aconselhável não mexer. O PS ainda não venceu este constrangimento. Mesmo assim, este tema tem mais de político do que de técnico. Sem renegociação da dívida não vamos poder continuar a respirar. Sem os recursos da dívida e dos seus juros não há possibilidade de dignificar os serviços públicos, não há dinheiro para reforçar o Estado Social, aumentar salários, pensões e prestações sociais, apoiar as pequenas e médias empresas, melhorar os serviços públicos de saúde e educação, construir equipamentos sociais ou outras infra-estruturas necessárias ao desenvolvimento do país.
A esquerda radical é populista e perigosa porque não aceita casar-se com o social liberalismo. Com esta coabitação seria mais difícil aumentar o salário mínimo. Os que consideram a esquerda radical populista e perigosa ainda acreditam que a competitividade das empresas depende dos baixos salários e da miséria das remunerações que não retiram da pobreza sequer os que estão empregados.
A esquerda radical é populista e perigosa porque não aceita a doutrina da submissão ao directório económico de Bruxelas que nos impõe o encerramento de serviços, despedimentos, privatizações, desregulamentação das leis do trabalho, cortes nas pensões e salários, aumento de impostos, destruição do Estado Social. Tudo isto para pagar a falência dos bancos privados.
A esquerda radical é populista e perigosa porque só serve para protestar. O caminho de abertura para iniciar reformas estruturantes para o país está condicionado. Mas de que reformas falamos? Privatizar a segurança social? Mexer na Constituição para dar mais benefícios, privilégios e regalias ao grande capital? Privatizar a Caixa Geral de Depósitos?
A esquerda radical é populista e perigosa porque amedronta o investimento estrangeiro. Sem investimento não há criação de riqueza e emprego. Muito bem, concordo. Mas o que dizem as estatísticas é que, em 2016, o crescimento da economia foi de 1,4%, tendo ultrapassado as previsões do governo e de Bruxelas.
O que é perigoso é existirem 116 mil vínculos precários no Estado. O que é perigoso é existirem mais de quatro mil famílias à espera de uma habitação social, o que é perigoso é ainda existirem cantinas sociais para matar a fome diária a mais de 38 mil pessoas, o que é perigoso é a chuva que cai nas salas de aula de muitas escolas. O que é perigoso é existir mais de um milhão de idosos com pensão inferior a 230 euros mensais, mais de 600 pessoas a viver nas ruas de Lisboa sem qualquer tipo de apoio institucional, rendas agiotas que o Estado tem de pagar pelas parcerias público-privadas nos contratos das rodovias e da gestão hospitalar. O que é perigoso é defender a caducidade da contratação colectiva.
A esquerda radical é populista e perigosa porque acredita na acção colectiva organizada dos cidadãos para conquistar direitos e bem-estar social. A esquerda radical é populista e perigosa porque não desiste da luta de classes, não aceita que a vida das pessoas seja menos importante do que a dos mercados. A esquerda radical é populista e perigosa porque não aceita hipotecar a felicidade das pessoas numa taxa de juro ou numa anotação de uma agência de rating. A esquerda radical é populista e perigosa porque não aceita, não se conforma nem acha normal os vampiros comerem tudo e não deixarem nada.