terça-feira, 26 de dezembro de 2017

PÓS-DEMOCRACIA






Pós-democracia

Os constrangimentos democráticos precisam de ser “descartados” para que o capitalismo prossiga o seu avanço e dominação global.

26 de Dezembro de 2017, 7:47


José Pereira da Costa

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O conceito de pós-democracia, tal como o vamos desenvolver adiante, parece ter partido do sociólogo Colin Crouch, (n. 1944), professor em Inglaterra na Universidade de Warwick, no seu livro Coping with Post-Democracy, publicado em 2000.

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Trata-se da constatação de que, com a globalização, muitas das decisões tomadas, na política como na economia, são-no a nível global, nos foros internacionais, de que a maior parte das pessoas estão arredadas. Daí uma clara falta de interesse pela política e consequente abandono da participação nos actos eleitorais, principalmente nos países desenvolvidos, onde raramente as abstenções são abaixo dos 50%.

Aqui, apontar-se-ia de imediato a União Europeia como uma das causas para o alheamento referido. Mas o mesmo acontece noutras regiões como nos Estados Unidos e Japão, onde as instituições políticas são de outro tipo. Porém, o que Colin Crouch esclareceu foi que nessas sociedades as instituições democráticas existem, mas são meramente formais, uma vez que as decisões são tomadas por uma elite que detém o poder político e económico. E isto é evidente desde que o neoliberalismo se tornou teoria e prática depois da implosão da União Soviética e dos outros países socialistas.

A financeirização da vida política e económica, onde tudo é considerado mercadoria, desde os humanos à arte, é aceite por todos os “especialistas” destas questões, que aparecem com os seus comentários e alertas sempre a invocar o imperativo do lucro das grandes empresas. Dois casos recentes em Portugal são elucidativos. Quando o governo de Passos Coelho ficou na posse de 85 quadros de Miró, que pertenciam ao BPN, logo se disponibilizou para os leiloar a um preço avaliado em 36 milhões de euros, seguramente para agradar à troika e às instituições que tinham o governo sob tutela. Muito se devem ter impressionado alguns elementos dessas instituições pelo menosprezo demonstrado por uma colecção de arte ímpar, a troco da redução de uma parcela ínfima da dívida portuguesa.

Outro caso da actualidade é o da Autoeuropa, cujo contexto conheço relativamente bem, não só porque trabalhei na indústria automóvel durante 18 anos, repartidos pela General Motors e a Renault Portuguesa, antes de ir para Bruxelas, como tenho uma filha que pertenceu aos quadros da empresa durante dez anos, dois dos quais na sede da VW, em Wolfsburg, que tive ocasião de visitar. A facilidade com que se acusam os dois partidos de esquerda, que apoiam o Governo, de destabilização é só uma prova de ignorância sobre o que é a vida social e laboral numa grande empresa. Como dizia alguém recentemente, todos os que têm menos de 50 anos são uns ignorantes. Não queria ir tão longe porque é preciso notar que mesmo muitos que não sofreram da desmemorização em curso, no que toca à história política e económica dos últimos 200 anos, aproveitam-se para propalar e aumentar, de má-fé, essa ignorância.

Mas voltando a Colin Crouch e às suas conclusões de que vivemos numa era de pós-democracia, em que as elites políticas, económicas e financeiras estão combinadas para, sob a palavra de ordem de competitividade das empresas e dos países, tomarem as decisões que só a elas beneficiam, deixando aqueles que são os verdadeiros produtores incapazes de reagir, verifica-se que, quando há uma reacção, como aquela que aconteceu dos trabalhadores da Autoeuropa, aparecem logo as ameaças e os tais “especialistas” a propor o acatamento das decisões da direcção da empresa. Neste caso, injustas e atentatórias dos direitos mais básicos de quem trabalha. Esquecendo-se dos milhares de conflitos como este que aconteceram ao longo de muitas décadas na indústria automóvel, para já não falar da raridade de situações como esta na maior parte das fábricas da Volkswagen, onde as remunerações, as regalias e as condições de trabalho são muito superiores às que existem em Palmela.

Um outro “esquecimento” dos direitos humanos, que estão sempre a ser exigidos aos países que não pertencem ao bloco ocidental, diz respeito ao tratamento da crise dos refugiados, resultante das guerras que este mesmo bloco ocidental desencadeou em regiões onde outrora foi rei e senhor e pretende continuar a mandar. Uma verdadeira “trapalhada”, mas onde estão a morrer milhares de seres humanos. Que se assemelha ao tratamento da crise financeira e social iniciada há dez anos em que os gregos (e muitos portugueses) foram deixados a pão e água, em contraste com os biliões utilizados para salvar os interesses financeiros dos accionistas dos bancos.

Outro exemplo recente é o da “caça ao negro” nos Estados Unidos, principalmente durante o segundo mandato de Obama, poupado a um expectável atentado dos racistas e defensores da supremacia branca, mas compensado com o tiro ao alvo indiscriminado da polícia, não só nos Estados do sul, sobre qualquer cidadão negro considerado “suspeito”, sendo que o direito a transporte de uma arma, concedido pela Constituição a todos os americanos, não inclui estes cidadãos.

Por fim, enquanto pesquisava sobre o tema da pós-democracia, encontrei onde menos esperava, no Brasil, um artigo muito bem elaborado e uma entrevista do juiz de direito do Rio de Janeiro Rubens Casara, incidindo numa perspectiva diferente de Crouch, a de um jurista. Nomeadamente na revista Justificando, Casara complementa a definição daquele, de que o funcionamento das instituições democráticas é uma mera formalidade, afirmando que o Estado, do “ponto de vista político apresenta-se como um mero instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e manutenção ou ampliação das condições de acumulação de capital e geração de lucros”. Num contexto muito diferente da Europa, Estados Unidos ou Japão, a situação social no Brasil, de milhões e milhões de sub-cidadãos a viverem nas favelas das grandes cidades, implica a manutenção de uma força da ordem militarizada para impedir qualquer acto de rebelião contra essa injustiça flagrante que resulta directamente da escravidão. (Que, como Casara refere, conviveu com o Estado “liberal”). É o que se passou também nos sistemas coloniais como o português, bem demonstrado nos programas que Fernando Rosas fez para a RTP2, no apartheid da África do Sul ou na ocupação de Israel na Palestina, no pouco que resta de território deixado aos palestinianos, só para dar três exemplos.

Rubens Casara acrescenta que no Brasil hoje existe um Estado pós-democrático “sem qualquer compromisso com a concretização dos direitos fundamentais, com o resultado das eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a participação popular na tomada de decisões”. Referindo-se, embora não o mencionando directamente, ao afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, à perseguição e prisão para interrogatório de Lula da Silva, às escutas telefónicas e ao condicionamento da liberdade de expressão e de manifestação de todos aqueles que se opõem ao poder económico, identificado sem pudor com o poder político, termina dizendo que se trata de uma “justiça moldada ao gosto da opinião pública”, que como se sabe é controlada pelo poder económico. Depois, numa entrevista à revista CULT, Casara afirma que a democracia se tornou um obstáculo ao projecto neoliberal. Os constrangimentos democráticos precisam de ser “descartados” para que o capitalismo, concretizado nos interesses das grandes corporações, prossiga o seu avanço e dominação global. A isto se chama pós-democracia.

Como dizia um colega mais velho, quando entrei para a General Motors, em Dezembro de 1970, acabado de chegar de uma comissão militar em Moçambique, “pergunta a minha curiosidade”: e a que distância estamos do fascismo?

Investigador em Relações Internacionais; antigo funcionário da Comissão Europeia

domingo, 24 de dezembro de 2017


A bofetada

As eleições catalãs são uma lição contundente sobre os limites da capacidade condicionadora do Estado.

23 de Dezembro de 2017

Manuel Loff    Em muitos anos não se assistia a um ato de resistência democrática como o de anteontem na Catalunha. Quem assegurava que "metade da Catalunha" seguira "o canto das sereias" e "aceitara sem críticas as mais descaradas falsificações" independentistas (Jorge Almeida Fernandes, PÚBLICO, 05.11.2017), quem duvidava da representatividade da vontade catalã de autodeterminação e a descreveu como uma "impressionante vontade de auto-engano", tem aqui a resposta.As eleições catalãs, mais participadas (82%) que qualquer outra eleição espanhola em toda a história do sufrágio universal, são uma lição contundente sobre os limites da capacidade condicionadora do Estado (executivo, legislativo e judicial), o espanhol e os dos seus aliados, bem como da chantagem dos mandantes dos interesses económicos privados articulados com os anteriores. Estas, recordemo-nos, foram as eleições pedidas pelos partidos unionistas (Cidadãos, PSOE e PP), convocadas por um Governo central a quem a Constituição não reconhece o direito de as convocar, depois de o Senado ter decretado a suspensão da autonomia da Catalunha e os tribunais espanhóis terem ordenado a prisão dos membros do Governo e da Mesa do Parlamento da Catalunha e processado mais de um milhar de deputados, autarcas, ativistas, e até mesmo de comandantes da polícia autónoma, um mês depois da repressão violenta de milhares de cidadãos que pretendiam votar no referendo convocado para o dia 1 de outubro. Juncker e os governos da UE, advertidos por Madrid, repetiram que havia que "respeitar a legalidade e a Constituição" espanholas e calaram-se perante as mesmas ações que levaram o Conselho da Europa ou o Comité Contra a Tortura da ONU a criticar Madrid. Num caso, Rajoy superou-se a si mesmo: como o governo letão se mostrara favorável à realização de um referendo na Catalunha, a Espanha mandou tropas para a fronteira entre a Letónia e a Rússia para comprar o apoio dos letões, como confirmou o ex-ministro García Margallo (Publico.es, 18.11.2017). Diga-se, aliás, que a decisão foi tomada pela ministra espanhola da Defesa que há semanas se deixou enganar por um comediante russo que, fazendo-se passar por ministro letão, lhe alimentara o mito da ingerência russa no caso catalão. Governantes sensatos, estes.Na Catalunha aplicou-se o que se tem tornado o novo padrão neoliberal da velha política do medo: uma nova vitória independentista seria a catástrofe económica (quebra de 20% do PIB catalão, desemprego, fuga de capitais e fim do investimento), a mesma que se profetizou, por exemplo, com a possibilidade de acordo entre PSOE e Podemos ou, entre nós, com os acordos de Costa à esquerda. Tudo previsões económicas de grande objetividade. Repetiu-se vezes sem fim a velha lengalenga das famílias divididas e dos amigos desavindos, numa curiosa nostalgia dos bons tempos, como os do Franquismo, em que se não falava de política para evitar problemas, como se de discussão política se não fizesse toda a democracia. O mais amnésico desta tese é que ela finge ignorar que foi a polícia espanhola e os ultras que saíram à rua nas manifestações pela "unidade de Espanha" que trouxeram a violência à Catalunha, e não os partidários da independência.Estas eleições foram convocadas para ratificar a "normalidade" constitucional, toda ela feita de excecionalidade (a primeira vez que um regime autonómico é suspenso pelo Governo central; eleições realizadas com candidatos na prisão ou no exílio por motivos políticos, oito dos quais acabaram por ser eleitos deputados). Contra esta lei de exceção pronunciaram-se não só os independentistas (47,7% dos votos), mas também os Comuns (a que o Podemos se aliou) (7,5%); a favor dela uma minoria consistente de unionistas (43,7%), mas que, ao contrário dos que garantiam haver uma "maioria silenciosa" a favor de manter tudo como está, continua a não ser maioria alguma.O que vai fazer Rajoy? O que vão fazer aquele rei, os tribunais, a polícia espanhola? Puigdemont, que, como tudo indica, voltará a ser eleito presidente da Generalitat, retomou a única estratégia possível: a da negociação. Quando ele voltar para tomar posse do cargo, o que fará Rajoy: mandar prendê-lo? Tudo indica que sim: aproveitando o final do processo eleitoral, o Supremo Tribunal acaba de processar por "rebelião e sedição" mais seis dirigentes dos três partidos independentistas. A "normalidade" constitucional parece que continuará a ser esta. A democracia, essa, é que fica à espera.

Historiador


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

PARTIDOS E ÉTICA


Algumas observações sobre o tema.
MC


Partidos têm dado pouca relevância à ética

Acusações ao ex-primeiro-ministro podem ser uma oportunidade para afirmar novos critérios de vigilância e apertar as malhas das incompatibilidades.


3 de Dezembro de 2017

O despacho de acusação da Operação Marquês levanta interrogações sobre a prevenção da sociedade à forma como os representantes eleitos pelo povo exercem as suas funções. Não é só o escrutínio das suas acções que está em causa. Em jogo está a forma e existência, ou não, de filtros no recrutamento partidário. Três especialistas analisam a questão e apontam caminhos.

“Os partidos têm dado pouco relevância à ética”, considera Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS), doutorado por Florença com uma tese sobre políticas públicas de combate à corrupção e antigo presidente da TIAC – Transparência e Integridade, Associação Cívica. “Os partidos falam de ética mas não a praticam nem têm trabalhado nos mecanismos de controlo, apesar de terem um melhor processo de selecção e comissões jurisdicionais”, comenta.

“Na política, devemos falar de uma ética pública que é um ponto de encontro entre as normas mais gerais e as obrigações do cidadão”, pontualiza Viriato Soromenho-Marques, catedrático de Filosofia Social e Política e de História das Ideias na Europa Contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Deste modo, Soromenho-Marques baliza a questão: “A ética pública insere-se na capacidade de verificar se os titulares de cargos públicos cumprem os seus deveres e exercem os seus poderes, pois a omissão do poder pode ser tão trágica como o abuso do poder.”

Carlos Jalali, doutorado por Oxford e professor de Ciência Política na Universidade de Aveiro, insiste na responsabilidade dos partidos. “Os próprios partidos políticos têm de ter mecanismos de filtragem no acesso que permita que cheguem ao topo pessoas com ética”, refere.

“A partir do século XIX há uma mudança de atitude no mundo ocidental, a política com Auguste Comte passou a ser encarada como uma espécie de física que tinha pouco a ver com a ética, com um comportamento prudencial dos actores políticos”, recorda Soromenho-Marques. A combinação do positivismo com o determinismo histórico marxista, afirma o catedrático, colocou a política na superestrutura, numa foto fixa que viria a ser baralhada pelo desenvolvimento económico. “A visão da política passa a não ser crítica, abrandou a vigilância sobre os decisores e uma análise política que põe fora o factor humano não é séria”, enumera. “Passámos de uma legitimação constitucional, do bom comportamento constitucional e ético dos dirigentes, a uma legitimação dos resultados das políticas económicas”, sintetiza.

Período de nojo insuficiente

Uma dessas políticas, em crescendo de afirmação num tempo de crise, é a diplomacia económica. “É uma área muito porosa, na qual interagem interesses públicos e privados, pode haver promiscuidade e há a possibilidade de se obterem rendas mediando os interesses das empresas com as autoridades dos países de acolhimento, o decisor político pode então passar à qualidade de broker, obtendo comissões ilícitas ”, observa Luís de Sousa. “Estes riscos devem ser mitigados pela forma como são estruturadas as missões da diplomacia económica com a chancela do primeiro-ministro ou do Presidente da República”, recomenda o investigador do ICS.

“A diplomacia económica tem ganho relevância nas acções do Governo, na afirmação externa das empresas portuguesas, que é algo que a cidadania reclama, mas há fronteiras muito ténues entre políticas a favor do país e a favor de interesses particulares ou de grupos”, admite Carlos Jalali. “Se o governante X faz acções a favor do grupo Y, dizendo que é a favor do interesse nacional, pode haver a sua captura que leva a favorecer o grupo Y e não o grupo Z”, alerta.

“Por que é que as empresas recrutam ex-governantes?”, interroga o professor da Universidade de Aveiro. “Um factor é porque esses ex-governantes são presumivelmente competentes e chegaram ao poder através de vários filtros, mas há também o seu conhecimento dos interlocutores e mecanismos das decisões políticas internas e externas que lhes permite facilidade de contactos”, argumenta. É o encadeado de competência, conhecimento e rede. “Os cidadãos não avaliam muito a competência, observam essa contratação pelo conhecimento e pela rede, o que reforça a narrativa da suspeita quando a predisposição da cidadania já é a suspeita”, assinala Jalali.

“A esfera pública tende mais para os rituais, perdemos a capacidade de escrutinar os nossos representantes, os que vão para a esfera pública vão, certamente, com as melhores intenções, mas vão-se sentir mais livres, menos vigiados, e a possibilidade de abusos de poder começa a ser maior”, enuncia Viriato Soromenho-Marques. “Na esfera privada há grandes grupos de poder económico que capturam os nossos representantes, que os passam a servir”, descreve.

“Temos uma prática de recrutamento de ministros que vêm do sector privado e que são convidados pela competência profissional e conhecimento do sector”, recorda Luís de Sousa: “Se a conflitualidade de interesses não existe no momento do recrutamento, porque tem de existir depois?”, questiona. Para o antigo presidente da TIAC, os mecanismos de dissuasão existentes não são suficientes. “O período de nojo de três anos para os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos para empresas de um sector por ele tuteladas não é suficiente na duração nem na forma”, assinala. “Há decisões tomadas e que afectaram um determinado sector económico que se prolongam no tempo, como as PPP [Parcerias Público-Privadas], algumas das quais até 20 anos”, explica. “O impedimento ou período de nojo só se verifica, apenas, nas privatizações, nos casos em que tenham sido beneficiárias de incentivo financeiro ou fiscal contratualizado, o que é insuficiente”, refere.

Do exterior vêm exemplos de outro modus operandi. “No Reino Unido há alguma fiscalização post-employment, uma verificação a posteriori do trajecto profissional dos cargos políticos”, invoca o investigador do ICS. “Na Europa, as comissões de ética criadas no âmbito parlamentar deviam controlar estas questões e terem um papel com recriminações públicas”, assegura. Contudo, há dificuldades: “Os grandes partidos não enveredam por este caminho, quem levanta estas questões são os partidos-tribuna, minoritários, as associações da sociedade civil e os líderes de opinião.”

“O PS falhou”

Mais comuns são as vias seguidas na fiscalização. “Basicamente é criar obstáculos, em todos os países tem-se seguido por duas linhas”, explica Luís de Sousa. “Períodos de nojo à saída do Governo, a que há também de ponderar períodos de nojo à entrada, tal como para os reguladores”, destaca. “A segunda linha é que não basta o impedimento, tem de haver um organismo com legitimidade política que faça a monitorização destas situações e as divulgue, como acontece com a nomeação dos comissários europeus que são escrutinados pelo Parlamento Europeu”, recomenda. “O mesmo devia existir em relação aos ministros e secretários de Estado de cada país”, insiste.

“Hoje em dia, a venalidade dos representantes é uma doença inserida na prática do sistema democrático, é o seu calcanhar de Aquiles”, observa Viriato Soromenho-Marques. “A necessidade de vigilância está na génese do sistema democrático no domínio constitucional, através da separação clara de poderes e a criação de mecanismos de interacção, transformando o corpo legislativo num tribunal como acontece nos Estados Unidos, que leva à remoção de uma pessoa do seu cargo político através de um processo político”, analisa. De que o expoente máximo é o impeachment.

Da Operação Marquês, o catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa anota vários falhanços no crivo democrático. “O Parlamento tem de criar uma comissão de análise do curriculum dos deputados, é uma questão de segurança dos cidadãos que, quando votam em alguém, votam, por definição, numa pessoa de bem”, anota.

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“A Constituição dá aos partidos o monopólio de representação para o Parlamento. O PS falhou redondamente, não foi capaz de analisar o perfil e a informação objectiva de quem foi seu secretário-geral e candidato à direcção do Governo”, prossegue Soromenho-Marques. “Falhou quem com ele colaborou, há um colapso moral perante uma personalidade dominante”, sustenta. “Houve, também, um desarme da sociedade pela forma como a elite económica colaborou no bloco central dos interesses”, sublinha. “Quando as instituições funcionam no espirito constitucional, com o Parlamento a funcionar rigorosamente, não consideram que quem foi eleito está à margem do escrutínio”, repara.

Contudo, Viriato Soromenho-Marques refere que há um antes e depois das acusações ao ex-primeiro-ministro. “O grau de visibilidade deste assunto deixa-nos numa situação de alarme e prevenção, não é uma garantia mas uma oportunidade”, assegura. “Isto não pode ser esquecido, é o espelho da nossa sociedade”, sentencia.

“Hoje, o cidadão é mais exigente”, corrobora Carlos Jalali. “Temos uma opinião pública mais qualificada na forma como interpreta estas situações, há sinais de mais exigência da sociedade civil, de menos âncora nos partidos políticos, para colocar estas questões na agenda política”, conclui.