quinta-feira, 16 de julho de 2015

O CAPITALISMO E O ROSTO HUMANO


No momento em que a UE se encontra em plena tormenta causada pela crise grega, ler este texto do Mário Vieira de Carvalho é um bom contributo para ajudar a reflectir sobre o nosso presente.
MC


Que tal um “capitalismo de rosto humano”?
MÁRIO VIEIRA DE CARVALHO 
14/07/2015
O que poderá acontecer à herança humanista da cultura alemã?
O Sr. Merkel ensina ciência política na Humboldt-Universität a poucos quarteirões da chancelaria da Sr.ª Merkel. São ambos alemães e até têm o mesmo nome, mas pensam de maneira diferente.
É um alívio, não fosse a gente alarmar-se com uma nova Gleichschaltung(sincronização) à maneira de Goebbels que punha todos a ler pela mesma cartilha. As declarações de Sigmar Gabriel e Martin Schultz sobre o referendo grego fizeram-nos temer por isso. Pois se já nem os putativos socialistas alemães têm um pensamento e um projeto próprios – se já nem eles dão ouvidos a intelectuais como Habermas e outros críticos do atual curso da UE, que sempre lhes foram próximos – que poderá acontecer à herança humanista da cultura alemã?
Peter Weiss, no seu romance Estética da Resistência (1975-1981), assaca aos socialistas alemães graves responsabilidades na eclosão da primeira guerra mundial, e na ascensão (“resistível”, como diria Brecht) de Hitler ao poder, a qual, por sua vez, levou à segunda guerra mundial. O seu diagnóstico é duro. Fala de traição da social-democracia e cita o Diário de Heine, em Paris: “a única teoria capaz de abalar o poder da alta finança foi a ideia de comunismo”.  Quase dois séculos depois, será que Heine continua a ter razão?
Com efeito, nas últimas décadas, como observa o Sr. Merkel (entrevista publicada no jornal Social Europe, de 10 de Julho), “as democracias removeram a maior parte dos limites antes utilizados para conter o capitalismo, e fizeram-no consciente e negligentemente”. “Ao desregular os mercados, especialmente os mercados financeiros, a democracia privou-se do seu próprio poder”. “Em questões cruciais de política monetária, orçamental e fiscal, quem dá o tom são os investidores mais poderosos, crises bancárias ou supostos constrangimentos de ordem prática, e não as maiorias democráticas”. “A desnacionalização económica contribuiu de forma alarmante para este processo, sobretudo no que respeita ao controlo democrático sobre importantes parâmetros económicos”. “A política orçamental de cada Estado, um elemento-chave no esforço por criar uma sociedade justa, perdeu importância”, enquanto, por outro lado, “a União Europeia, sobretudo empenhada na lei da concorrência, se tornou uma espécie de cavalo de Tróia dos mercados, em vez de se afirmar como baluarte contra a despolitização dos mesmos”.
Por isso – continua Wolfgang Merkel –, temos de arrepiar caminho e “obrigar os mercados a ser de novo mais conformes à democracia”. “A tarefa que temos pela frente é, pois, a de devolver mais poder ao Estado democrático”, o que não pode ser feito “sem reconquistar parte do território que cedemos ao capital desregulado”. “O capitalismo não pode ser domado pela sociedade civil... Sem um forte Estado democrático as nossas sociedades não podem ser estruturadas decentemente.” “Sejamos claros: a longo prazo, os mercados desregulados destroem-se a si próprios e destroem a coesão social”.
Neste diagnóstico, a situação é, pois, vizinha da anarquia (ausência de Estado). Não, da anarquia que Marx e Engels prefiguravam no Manifesto de 1848 como realização última do ideal comunista: “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Mas sim de um outro tipo de anarquia, que não devia assustar menos os tradicionais defensores da Família e da Propriedade: aquela em que todo o Direito é derrogado por uma única norma: a da otimização permanente e ilimitada da taxa de remuneração do capital.
Numa tal situação já nem se pede aos socialistas europeus que empunhem agora de novo a bandeira do socialismo. Não é preciso ir tão longe. Basta que lutem, ao menos, por... um “capitalismo de rosto humano”.
Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)
                   


terça-feira, 7 de julho de 2015

GRÉCIA (3)


Depois do "não" grego, talvez a Europa possa sobreviver
07/07/2015
Os gregos deram a toda a Europa e a todo o mundo uma lição de coragem e de dignidade
A vitória do "não" na Grécia foi a vitória da democracia contra a tirania, a vitória da política contra a burocracia, a vitória da liberdade contra a ditadura financeira, a vitória dos cidadãos contra os capatazes, a vitória da soberania nacional contra o colaboracionismo, a vitória da dignidade contra a chantagem, a vitória da honra contra a subserviência, a vitória da coragem contra o medo, a vitória da ousadia.
Os gregos deram este domingo a toda a Europa e a todo o mundo uma lição de coragem e de dignidade pela qual não podemos deixar de nos sentir devedores e gratos.
É surpreendente descobrir, de súbito, nesta envilecida Europa do racket e da negociata, nesta Europa da fuga aos impostos legalizada, nesta Europa capturada pela Alemanha, nesta Europa colonialista de proximidade que quer transformar os países devedores nas eternas vacas leiteiras dos mais ricos, nesta Europa onde quase todos os políticos parecem ter sido comprados pelo grande capital ou aspirarem a sê-lo, nesta adormecida Europa onde a democracia é sempre recebida com um esgar de desprezo, nesta Europa onde pontificam seres com a honorabilidade de um Jeroen Dijsselbloem ou de um Jean-Claude Juncker, nesta miserável Europa que nem sequer admite receber os refugiados que tentam fugir à morte através do Mediterrâneo, é surpreendente descobrir, dizia, que talvez ainda seja possível uma réstia de democracia. E isso é algo que não pode deixar de nos emocionar e de nos dar alguma esperança.
O referendo grego mostra, acima de tudo, que a União Europeia pode não ser incompatível com a democracia, como tudo o que tem acontecido na Europa desde o Tratado de Maastricht parece provar, como tudo o que tem acontecido na União Económica e Monetária parece tornar evidente. Aquele que se orgulhava de ser o "clube das democracias" está de facto cada vez mais próximo de ser o "carrasco das democracias" e o referendo grego pode dar a esta trajectória assassina a inflexão moral que todos os democratas desejam.
Não é apenas a vitória do "não" que é surpreendente, mas a dimensão dessa vitória, atendendo à pressão que foi colocada nos últimos dias sobre os cidadãos gregos, ameaçando-os de todas as formas possíveis e tentando aterrorizá-los com o que aconteceria caso se atrevessem a votar nesta opção. Eurocratas de direita ou nominalmente de esquerda, como o senhor Dijsselbloem ou o senhor Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu; políticos europeus de direita ou nominalmente de esquerda, como Matteo Renzi ou François Hollande, todos tentaram apresentar o "sim" como a única escolha razoável, porque garantia a manutenção da Grécia no euro, e o "não" como um voto irresponsável e suicida, porque empurraria a Grécia para fora do euro.
Martin Schulz, o homem que gosta de se mostrar moderado, fez questão de afirmar que um voto "não" significaria o fim imediato do financiamento europeu e que "sem dinheiro, os salários não poderiam ser pagos, o sistema de saúde deixaria de funcionar, o fornecimento de electricidade e o sistema de transportes públicos ficaria paralisado". O auto-excluído ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, terá exagerado muito ao falar de "terrorismo"?
Não só políticos europeus de vários sectores mas as próprias autoridades europeias, que deveriam estar obrigadas pelo seu cargo a uma estrita equidistância das várias posições em jogo, não hesitaram em apelar descaradamente à mudança de regime na Grécia, à substituição do democraticamente eleito governo do Syriza por um governo de tecnocratas que obedecesse a Bruxelas. Pouco faltou para que Bruxelas apelasse a um golpe de Estado em Atenas. Se alguém queria certificar-se de quão fino é o verniz democrático que cobre a política europeia, os últimos dias deram-nos uma resposta cabal e terrível. Na UE a democracia só é respeitada quando produz o efeito desejado pelo poder financeiro - leia-se, no caso concreto, pela Alemanha.
Quanto àquilo que seria o custo político, económico, social e humano do "sim" e da aceitação de um acordo draconiano que manteria a Grécia na miséria durante décadas ou mesmo eternamente, ninguém, nos órgãos europeus, se preocupou. O voto grego foi um voto de rejeição de todas estas pressões e, por isso, é duplamente respeitável.
É interessante ver a cobertura mediática que foi feita na Grécia durante a curta campanha antes do referendo. Uma medição feita nas seis principais estações de TV do país de duas grandes manifestações de sinal oposto deram um resultado claro: a manifestação do "sim" mereceu 46 minutos de cobertura; a manifestação do "não", 8 minutos. A vitória do "não" é também uma vitória contra a manipulação da informação.
É verdade que ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos dias e que a promessa de Tsipras de um acordo com a UE em 48 está longe de estar garantida. O que a UE não pode ignorar é que o povo soberano da Grécia disse não à austeridade, que mandatou o seu governo para não aceitar mais austeridade e que quer ficar no euro. Assim, a UE tem duas opções: ou muda de atitude e se coloca do lado da solução da crise, da solidariedade, da democracia e do progresso económico ou expulsa a Grécia e, a curto prazo, rebenta.
Quanto ao governo grego que, devido à sua atitude conciliatória e à sua tentativa de manter a discussão aberta em vários tabuleiros, teve nos últimos meses um percurso por vezes difícil de compreender, deveria dar uma absoluta e permanente transparência a todos os passos das negociações, incluindo as respostas "informais" que receber. O povo grego precisa de saber e perceber o que está a acontecer para demonstrar o seu apoio. E não só o povo grego. Nesta batalha pela democracia e pela justiça social na Europa, há muitos milhões de cidadãos de muitos países ao lado de Atenas. E o povo não desistiu da democracia.
jvmalheiros@gmail.com


sábado, 4 de julho de 2015

OXI !



Não!
04/07/2015
NÃO sei o que sairá do referendo de amanhã. Mas sei que a “Grécia devia votar Não e que o governo grego devia preparar-se, se necessário, para sair do euro.
NÃO, eles não gostam de referendos. Só gostam dos que mandam repetir (como quando os dinamarqueses rejeitaram Maastricht, em 1992 – lembram-se da fúria de Cavaco? –, ou quando os irlandeses rejeitaram, em 2001, o Tratado de Nice, e o de Lisboa, em 2008, – fúria de Sócrates e de Durão).
NÃO, eles acham que o cidadão comum não deve decidir sobre as políticas económicas porque, como ministros do Eurogrupo perguntaram a Varoufakis quando este lhes anunciou a intenção de consultar o povo grego sobre as exigências dos governos europeus: “Está à espera que a gente comum entenda questões tão complexas?” (ver descrição da discussão no Eurogrupo) NÃO, eles nem sequer são os liberais que se dizem. Se o fossem, lembrar-se-iam que há mais de duzentos anos foram liberais que estatuíram que “os cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente ou através dos  seus representantes para a elaboração da lei”, e que “têm o direito de verificar por si mesmos ou através dos seus representantes a necessidade da contribuição pública, admiti-la livremente, acompanhar o seu emprego e determinar o seu todo, a sua repartição, cobrança e duração.” (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789)
NÃO, a UE é tudo menos uma estrutura democrática. Ninguém elege a Comissão Europeia ou os governadores do Banco Central – e, contudo, as nossas vidas quotidianas, como trabalhadores ativos ou desempregados, jovens à procura da autonomia, pensionistas de hoje ou de amanhã, em tudo dependem de decisões tomadas por gente sobre cuja escolha ninguém nos pede opinião. O processo de integração europeia tem sido, desde sempre, o mais forte motor da desdemocratização das escolhas económicas. Quando se fala da UE e da política económica que ela impõe repete-se, sem despudor algum, que há questões que não devem ser submetidas ao debate popular. E agora, que a eurocracia tem todos os canhões apontados contra o primeiro governo europeu a mostrar alguma vontade para “responder com democracia” a “esta austeridade descarnada e autocrática” (Tsipras, 26.6.2015), os dirigentes da UE perderam a compostura. Juncker (20 anos ministro das Finanças e 18 Primeiro-Ministro desse paraíso fiscal branqueador de capitais que é o Luxemburgo), “com o povo grego no meu coração”, pediu-lhe para “não se suicidar mesmo que tenha medo de morrer” [sic] – não se lembrando que “se terão suicidado [já] onze mil [gregos] desde que se impôs a austeridade” (Guardian, 30.6.2015). Um socialista como o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, apelou aos gregos que “culpassem Tsipras por ter posto de joelhos o seu país”, pedindo-lhes que votem Sim para que o governo “se tenha de demitir e se realizem novas eleições”. Até lá, a solução do que foi candidato socialista à Comissão é que “o governo do Syriza deve ser substituído por um governo técnico” (Guardian, 2.7.2015). “16 anos depois, a Eurozona (…) é a antítese da democracia”, conclui Stiglitz, o Nobel da Economia. Percebe-se que seja “extremamente inconveniente ter na Grécia um governo tão oposto a políticas que tanto aumentaram as desigualdades em muitos países avançados”. Impossível não perceber o padrão neocolonial: do que a Grécia precisa é de um governador nomeado pela metrópole (a UE), uma espécie de vice-Rei de umaadministração indireta, que recebe instruções de Bruxelas (como se limitaram a fazer Papandreu, Papademos e Samaras – e Passos, e Rajoy) e as transmite aos indígenas, gente menor à espera que um lento processo de assimilação a faça merecer a plena cidadania europeia.
NÃO, esta não é uma discussão sobre cumprimento de regras. Os primeiros a ignorar os tão invocados tratados foram Dijsselbloem e Schultz, que garantiram que a Grécia teria de sair do euro e da própria UE. Cavaco foi-lhes atrás. Uma Europa de regras, como as do Tratado Orçamental que nenhum eleitor teve oportunidade de ratificar, ou as de uma moeda única de que nos esconderam os mais básicos erros de construção: os de um instrumento económico que deixa os parceiros menores à mercê do diretório do(s) grande(s). A toda a Europa do Sul, o euro trouxe a maior recessão económica desde a Grande Depressão, e o maior recuo na justiça social desde que esta passou a ser considerada como inseparável da democracia. “A filosofia económica do programa da troika empurrou a Grécia para o abismo, produzindo uma quebra de 25% do PIB. Não me lembro de nenhuma depressão que tenha sido provocada de forma tão deliberada e com consequências tão catastróficas.” NÃO, a culpa não é grega. É inaceitável que a “troika se recuse a aceitar a responsabilidade por tudo isto e não admita como foram nefastas as suas previsões e os seus modelos. E é surpreendente que os líderes da Europa não tenham aprendido lição alguma.” (J. Stiglitz,Guardian, 29.6.2015)
NÃO, esta não é sequer uma discussão entre quem protege as pensões gregas e quem protege as ainda mais baixas pensões portuguesas ou eslovacas, como se tem dito. A Grécia mal viu todos aqueles milhões que se transferiram do BCE e do FMI para Atenas e, em frações de segundo, dali para a banca privada europeia, a francesa, a alemã ou a própria grega. Em 2011, ao fim de um ano do início do “resgate”, 41% da dívida grega ainda era detida pela banca e empresas privadas. Hoje só 3%. Foram os estados da UE que decidiram pagar à banca privada a dívida grega: em 2011 detinham 15% desta; hoje detêm 60% (Fórum Económico Mundial, El País, 2.7.2015).
E NÃO, nada disto ajudou a reduzir a dívida, que não cessa de crescer, na Grécia como em Portugal. É o próprio FMI que admite que ela é “insustentável”, que deveria ser reestruturada e, mesmo assim, “permaneceria demasiado alta durante décadas” (Guardian, 2.7.2015). Quem criou esta situação sabia bem o queria: a austeridade como regime, como sistema de governo das relações sociais, políticas e económicas na era da “hegemonia do mercado ilimitado” a que se tem chamado eufemisticamente a globalização. “A austeridade do passado impõe austeridade depois, a humilhação colonial do passado impõe mais humilhação colonial depois. E sempre. (…) Empobrecer quem tem menos para transferir essa diferença para quem teve sempre mais.” (J.M. Pureza, Linhas vermelhas, 2015)
NÃO sei o que sairá do referendo de amanhã. Mas sei que a “Grécia devia votar Não e que o governo grego devia preparar-se, se necessário, para sair do euro. (…) É tempo de pôr fim a esta irracionalidade.” (Paul Krugman, NYT, 29.6.2015)
                                 



sexta-feira, 3 de julho de 2015

A GRÉCIA OBRIGA A UE A DISCUTIR POLÍTICA



A situação na Grécia obrigou a Europa a discutir política como há muito não se fazia. Trouxe  para o primeiro plano a Democracia e o seu conteúdo, colocou a UE  e os seus mecanismos em análise crítica e abalou o sossego do mundo dos negócios e a sua influência sobre o mundo da política. Bastou um Governo cumprir as suas promessas eleitorais e ter a dignidade e a coragem de defender o seu povo e os mais fracos dentro dele.
Pode a chantagem, a mentira, as ameaças e o medo que a UE, o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão vomitam de dente arreganhado e sem vergonha, derrotarem a resistência de um Governo que quer acabar com a austeridade que levou a tragédia ao seu povo, mas nada voltará a ser como dantes. Vença o não ou o sim e tudo já mudou antes mesmo de se saber qual o resultado.
Ficamos a saber que os mercados e os políticos que os servem desprezam a Democracia, aceitam que os povos se divirtam um pouco nas eleições a pensar que escolhem mas que na verdade se limitam a votar quem já foi escolhido por eles. Até podem mudar de governos mas fica-lhes proibido mudar de políticas.
Quem manda de verdade não foi a eleições. Quem votou na chefe do FMI?; quem votou no capataz do BCE? etc.
Pela sua oportunidade junto um artigo que ajuda a esclarecer o que está em jogo.
MC
Dá-lhes com democracia!
PAULO GRANJO 
02/07/2015
Para além do topete de dar a palavra ao povo, aquilo em que a convocação do referendo grego mais irrita chancelarias, ministérios das finanças e eurocratas é o facto de, através dele, o governo grego sair da armadilha.
Depois de o FMI recusar o plano grego (por uma parte do equilíbrio orçamental ser pago pelas maiores e mais lucrativas empresas e pelos salários mais altos, em vez de por mais cortes aos reformados e aumentos de preços) e depois de o Eurogrupo ter feito alegre coro com essas firmes exigências de mais austeridade para quem está na miséria ou à beira dela, o governo grego anunciou um referendo acerca do pacote de exigências que as instituições europeias pretendem impor, para desbloquear o financiamento ao país.
Em Bruxelas, caiu o Carmo e a Trindade – ou o que quer que seja que por lá exista de equivalente.
Não obstante, o recurso ao referendo como arma política e instrumento legitimador nada tem de novidade.
Para desespero das esquerdas francesas, Charles de Gaulle recorreu extensivamente a ele quando as coisas lhe ficavam mais adversas.
Mais perto de nós, em 2008, o presidente boliviano Evo Morales enfrentou um ataque em regra às suas políticas progressistas, que incluía a ameaça bem real (e com implícito beneplácito estado-unidense) de uma secessão dos estados dominadas pela oposição, a par de apelos explícitos e continuados a um golpe militar.
Em vez de optar pelos anteriormente habituais endurecimentos de posições e escaladas securitárias, fez referendar o seu lugar, o do vice-presidente e os dos também eleitos governadores estaduais, pró-governamentais e oposicionistas. Foi confirmado no cargo com mais 8% do que tinha sido eleito, sendo também reconduzidos o vice-presidente e 6 dos 8 governadores provinciais (seus apoiantes, ou da oposição); nos outros 2 casos, houve novas eleições.
A legitimidade democrática saiu reforçada, os Estados Unidos chamaram de volta os seus especialistas e entusiastas insurreccionais, as forças mais conservadoras submeteram-se ao jogo democrático e deixou de se falar de golpes de estado, ou de partir o país em dois.
Nada permite afirmar que as consequências da convocação deste referendo na Grécia venham a ser tão positivas. E nada permite afirmar que o não venham a ser.
O que não lhe falta, certamente, é lógica, espírito democrático, dignidade e oportunidade.
O governo da Grécia foi eleito com o mandato de renegociar a dívida, de acabar com a espiral austeritária sobre os mais fracos, com o indigno diktatdos mangas-de-alpaca da troika e com o estado de calamidade social, de implantar medidas de dinamização económica.
Tal como, se quisermos, Pedro Passos Coelho foi eleito com o mandato de não aumentar os impostos e de não cortar pensões e salários.
Só que o governo da Grécia não é feito de gente capaz de vir, no dia seguinte, dizer que afinal é tudo ao contrário do que se comprometeram e que até querem ir mais longe do que as exigências da troika.
Para o governo grego, tal como supostamente para qualquer pessoa de bem, aceitar um acordo que põe em causa uma parte daquilo para que foram eleitos – mesmo sendo esse acordo muito menos mau do que lhes queriam inicialmente impor – requer que os eleitores se pronunciem explicitamente.
A decisão de não aceitar esse acordo, num quadro que é já diferente do das eleições, requer por seu lado um apoio popular maioritário que a legitime democraticamente perante os cidadãos que dela discordem, perante os potenciais entusiastas de pronunciamentos militares e perante os impositores de inevitabilidades, ao mesmo tempo que reforça a posição governamental e nacional, na busca de alternativas.
Para além, se quisermos, dessa ideia caída em desuso numa Europa de supremacias nacionais e financeiras: a de que, em estados democráticos, as opções mais decisivas devem ser tomadas democraticamente.
Um outro aspecto fulcral é que os impasses e tentativas de diktat a que temos vindo a assistir, por parte das instituições europeias e do FMI, pouco têm a ver com economia, mas antes com política.
Têm em parte a ver – como o demonstra a justificação do FMI para recusar a última proposta grega, até aí rotulada como "uma boa base de trabalho" – com a continuidade de imposição, a países que estão financeiramente fragilizados, de um quadro específico de políticas económicas e sociais, independentemente daquilo que queiram os seus governos ou os seus povos.
(E aqui, é curioso verificar que, se Marx escreveu metafórica e panfletariamente que os governos são "o conselho de administração delegado da burguesia", temos hoje banqueiros a exigir mandar – e mandando – nos governos.)
Mas têm sobretudo a ver com a tentativa de tornar impossível a existência de governos, países e povos que se recusem a acatar, submissos, a destruição da sua economia e coesão social, em nome de ideologias e interesses que não escolheram nem escolhem.
Têm sobretudo a ver com tornar impossível a vida ao governo grego, procurando criar uma lose-lose situation que o destrua e afaste veleidades semelhantes noutros países: inviabilizar as condições para a prossecução mesmo que parcial do seu programa (por sensato que ele seja), de forma a que ou se submeta, perdendo a credibilidade popular, ou crie uma situação provisoriamente caótica na tentativa de não se submeter, perdendo apoio para as soluções que preconiza.
Para além do topete de dar a palavra ao povo, aquilo em que a convocação do referendo grego mais irrita chancelarias, ministérios das finanças e eurocratas é o facto de, através dele, o governo grego sair da armadilha.
Uma eventual aceitação das agora mitigadas exigência euro-éfeémisticas não seria uma traição, mas uma opção popular, tal como a sua recusa não seria uma caturrice de radicais, mas uma decisão partilhada pelo país.
Para além disso, o anúncio de referendo já não pode levar ao derrube de governos a partir do exterior – ao contrário do que aconteceu, há anos atrás e por exigência troikista, com o governo eleito do Pasok – e, pelo contrário, reforça a posição negocial da Grécia a nível mundial, ao demonstrar que não se pretende submeter e que está disposta a correr os riscos inerentes.
Isto porque, ao contrário do que têm insistido em imaginar os governos europeus e os comentadores encartados, a solução do problema da Grécia não está restringida às fronteiras do Euro, ou mesmo da União Europeia.
Mesmo com os cofres pouco cheios, seria para a Rússia uma pechincha ajudar a Grécia, ganhando influência sobre um país fulcral da NATO que lhe pode dar acesso ao Mediterrâneo, e sobre um país da União Europeia que pode, por exemplo, vetar sanções da União sobre outros países.
Os interesses dos Estados Unidos não permitem, por essas razões, que a Grécia seja empurrada pela UE para o colo da Rússia. 
Para além disso, em termos económicos, também não permitem que braços-de-ferro de supremacia política e ideológica abram uma brecha no Euro de consequências imprevisíveis, mas que quase certamente incluiriam fortes mudanças cambiais e efeitos recessivos na Europa, com impacto na própria economia norte-americana e nos mercados financeiros mundiais.
Só se estranha, então, que só agora Obama faça saber que insta Merkel a assegurar as condições para que a Grécia não saia do Euro e para que a dívida grega seja restruturada. Mas entre o anúncio do referendo e a divulgação desse telefonema, a relação não será certamente casual.
Também a China se não pode dar ao luxo de uma cotação do Euro turbulenta, ou de recessão num continente fulcral para as suas exportações e, consequentemente, para a sua economia.
E também ela, sábado à noite, veio pedir uma solução estável que viabilize a manutenção da Grécia no Euro, ao mesmo tempo que se oferecia para, se necessário, sacar do livro de cheques.
Se não tivesse (como tem) as virtudes da dignidade, democraticidade, coerência e oportunidade, a convocação do referendo na Grécia teria pelo menos uma outra virtude: a de tornar evidente a miopia política, a auto-negação estratégica e o narcísico bruxelocentrismo com que todo este problema tem sido tratado, desde o início.
Antropólogo