domingo, 31 de janeiro de 2016

AINDA AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS



Faz hoje uma semana que se realizaram as eleições para a Presidência da República. O resultado foi o mais ou menos esperado, ganhava o Marcelo, a dúvida era se haveria ou não segunda volta.

O resultado do monárquico Marcelo ex-presidente da Fundação da Casa de Bragança, 52%, não esmagou, foi quase à tangente e provou que a segunda volta era possível, não uma miragem, era realizável.

O vencedor beneficiou da popularidade de mais de uma década de presença constante na televisão. Fingiu que nada tinha a ver com o PSD e o CDS, meteu os ditos em casa , fechou-lhes a porta e nem sequer os quis à janela.

A causa principal da derrota dos outros foi a queda a pique do candidato do PCP e a divisão do PS que ficou paralisado e paralítico. Os anos passam e não aprendem, os erros repetem-se. Já os romanos diziam "um por todos e todos por um" ou, mais popularmente : a união faz a força!

A concorrência entre si desanima, a abstenção aumenta, a direita agradece.

As lutas partidárias à esquerda numa eleição presidencial são absurdas, usadas para "segurar?" eleitorado, ou para ver quem é o mais forte, tem como resultado o efeito contrário, enfraquece a esquerda no seu conjunto e lixam os eleitores a quem parece quererem ajudar.

O Bloco subiu, o PCP desceu, e depois?, - ganhou o Marcelo.

As eleições puseram a nu uma sociedade civil fraca, não participante, descrente, que mesmo nos assuntos mais importantes para a sua vida olha sentada e não se mexe.



A propósito junto um artigo que, de outro ponto de vista, e visto de fora, ajuda a que nos olhemos  no espelho e a não gostarmos do que vemos.

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O que queremos ser?
Por Paulo J. Ferreira
28/01/2016
Portugal tem coragem, força de espírito, tolerância e capacidade para inovar. Então, porque não fomentar a mudança de forma a que os portugueses sintam as suas aspirações realizadas?
Em Portugal, a importância dos padrões culturais no desenvolvimento económico é quase sempre ignorada. A ideia mais corrente é que desde que existam recursos naturais, pessoal qualificado e capacidade técnica, as organizações brotam, o capital floresce, a economia acelera. Contudo, nas democracias modernas, o desenvolvimento da economia depende da capacidade de organização das instituições, a qual depende da forma como os cidadãos se associam em comunidade. Quando a noção de comunidade é frágil, o grau de organização das instituições é precário, a economia vacila, o progresso é contido.
Neste contexto, o acanhado desempenho económico de Portugal pode ser explicado em grande parte pela incapacidade de nós portugueses agirmos para o bem comum ou para qualquer fim que transcenda o imediato interesse individual ou da família.
Neste contexto, o acanhado desempenho económico de Portugal pode ser explicado em grande parte pela incapacidade de nós portugueses agirmos para o bem comum ou para qualquer fim que transcenda o imediato interesse individual ou da família.
É comum argumentar que as causas da posição económica de Portugal no mundo (em 2013 ocupava o lugar n.° 42 no ranking mundial e o último lugar entre os países da Europa Ocidental, relativamente ao PIB/per capita) tem origens na ditadura de 48 anos. Em geral, esta teoria tem o seu elemento de verdade, mas não é suficiente para explicar as razões do contido desenvolvimento de Portugal. Senão vejamos!
Salazar promoveu o analfabetismo e a ignorância, para além de ter deixado na população um sentimento de desconfiança relativo à autoridade. No entanto, o analfabetismo não consegue explicar porque o aumento significativo do nível de instrução dos portugueses nas últimas décadas não trouxe um desenvolvimento económico correspondente. Note-se que em 1960 o índice de analfabetismo em Portugal situava-se na casa dos 40%, ao passo que em 2000 o valor era apenas de 7,6%. Paralelamente, o crescimento anual do PIB em Portugal cifrava-se em cerca de 6,4% na década de 60, em contraste com os 2-3% na década de 90 e cerca de 0,7% na década de 2000. Por outro lado, o fenómeno da desconfiança na autoridade provocado pela ditadura não consegue igualmente explicar a resposta a um recente inquérito realizado pela UE, no qual 70% dos portugueses declaram que esperam que o Governo resolva os seus problemas (por sinal a percentagem mais elevada dos países da comunidade).
Voltemos portanto a uma das razões primárias que explicam o modesto desenvolvimento económico de Portugal. Muito simplesmente, traduz-se no seguinte conceito, que se verifica em muitos meios: “A não ser que se retire, a curto prazo, proveito individual ou para a família, não faz sentido contribuir para o bem da comunidade. Assuma-se que todos fazem o mesmo.” Este comportamento “clã” rege o quotidiano de muitos cidadãos. Convém então perguntar: onde se reflectem na vida portuguesa as consequências desta postura?
Em primeiro lugar, muitos dos cidadãos não querem assumir responsabilidade pelas matérias de ordem pública. Fazem-se diagnósticos atrás de diagnósticos. Discute-se muito mas ninguém actua. Os problemas são passados de mão em mão. Por isso vemos as fachadas de prédios degradarem-se. Por isso se estaciona onde é proibido.
Verificamos também que a população civil não avalia nem quer avaliar os detentores de cargos públicos. De facto, considera que é um trabalho para quem está na administração pública. Situações como o mau desempenho das funções ou conhecidas irregularidades por parte de um membro da administração pública são consideradas pela população civil fora do domínio da sua intervenção.
Em terceiro lugar, a capacidade de organização das instituições é difícil de atingir e manter. Não se identificando com os objectivos das instituições, os seus colaboradores não se esforçam mais do que o necessário para manterem os seus lugares ou para serem promovidos. Estabelece-se um sentimento de “falta de missão”. É o caso das instituições públicas portuguesas onde a progressão na carreira é condicionada pela abertura de vagas e onde o sistema de salários está tabelado.
Adicionalmente, é comum constatar a indiferença dos cidadãos perante as leis existentes se não existir um sistema eficaz de penalização. É a valorização da lei falada relativamente à lei escrita. A evasão fiscal, a condução perigosa, são assim assumidos como procedimentos normais. A ideia de “se não for um cidadão a aproveitar-se do sistema, outro o fará” é predominante.
Finalmente, os cidadãos valorizam os ganhos acumulados pela comunidade, apenas quando participam desse ganho. De facto, estas mesmas pessoas assumirão uma posição antagónica desde que não partilhem o proveito. Por isso é difícil convencer os inquilinos do rés-do-chão a contribuir para os custos de manutenção do elevador que não utilizam. Por isso os partidos da oposição raramente reconhecem o partido do governo pela implementação de políticas bem-sucedidas.
Esta série de comportamentos tem, portanto, um profundo impacto no desenvolvimento económico de Portugal e não vai ser alterado apenas pelo crescimento dos índices de instrução. Porque não? Vejamos!
A um primeiro nível, a atitude “clã” tem a ver com o medo subconsciente do futuro e com a preocupação das possíveis calamidades da vida. Isto porque a população portuguesa não acredita, pois conhece poucos exemplos, que o trabalho ou o esforço originam sucesso. Está sedimentada a ideia de que as condições importantes para atingir o sucesso estão fora de controlo. Neste contexto, o sucesso passa a ser fruto de contactos pessoais, do acaso, do divino. Como consequência, para viver com regalias, a postura “clã” faz tudo que pode para se proteger e proteger a família. Considera qualquer pessoa fora do seu círculo como um competidor.
A um nível mais profundo, a atitude “clã” está relacionada com a forma como nós portugueses somos educados. Na generalidade, a educação das crianças apoia-se num regime de castigos que penalizam os comportamentos negativos, e não premiando e fomentando os comportamentos positivos. Isto significa que em Portugal se sobrevalorizam os erros aos sucessos. Por isso, as críticas, mesmo construtivas, não são bem aceites pela população. Esta forma de educar retira confiança pessoal. Por isso há uma aversão ao risco na sociedade portuguesa. Por isso o risco é penalizado severamente (veja-se o caso das situações de bancarrota).
Indubitavelmente, a alteração da postura “clã” não vai ser iniciada deliberadamente pela população portuguesa. É precisamente a dificuldade em actuar concertadamente em prol do bem comum que é o problema. Então como fomentar a mudança?
Em primeiro lugar, é importante desenvolver programas educacionais de forma a incutir na população portuguesa, em especial nas camadas jovens, confiança pessoal. Premeie-se o sucesso em detrimento do castigo. Adicionalmente, é essencial a introdução de disciplinas de civismo e ética a todos os níveis de ensino para que ajudem a promover o sentido de comunidade. Como escreveu Alex de Tocqueville: “É necessário saber quando sacrificar alguns interesses pessoais em favor do bem geral, para elevar toda a nação para novos níveis de prosperidade e contentamento.”
Em segundo lugar, é necessário aumentar a responsabilização dos cidadãos, levando-os a participar na vida nacional e não remetendo para o Governo toda a responsabilidade. Desta forma, o cidadão, ao sentir-se autor do progresso produzido no país, sente-se criticado se o país é criticado. O cidadão passa a olhar a lei como obra sua e não como obra do Governo.
Que Portugal e os portugueses têm inegável potencial e valor, não restam dúvidas. Portugal é um país independente há mais de 800 anos, enquanto países como a Finlândia, a Itália, a Noruega, só o são há muito pouco tempo. A língua portuguesa é a sétima língua mais falada no mundo (230 milhões de pessoas falam o português), à frente do francês, do italiano e do alemão. Portugal desenvolveu instrumentos sofisticados de navegação, conquistou os mares, descobriu novas civilizações. A passagem da ditadura à democracia ocorreu sem violência, um caso raro na história das ditaduras. Portugal possui indústrias de calçado, têxteis, cortiça, vinho e moldes, assim como startups criativas capazes de produzir artigos de excelente qualidade. Estes atributos demonstram que Portugal tem coragem, força de espírito, tolerância e capacidade para inovar. Então, porque não fomentar a mudança em Portugal de forma a que os portugueses sintam as suas aspirações realizadas? Queremos de facto continuar a sustentar esta postura “clã” ou queremos seguir em frente e ser o que potencialmente podemos ser? O futuro o dirá. Mas uma coisa é certa: se não formos nós portugueses a fazê-lo, ninguém o fará.
Professor catedrático, Universidade do Texas em Austin (EUA)










quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

UM BERLUSCONI HERDEIRO DO PASSADO

Estamos na recta final da campanha eleitoral para a Presidência da República. Desde já esclareço que votarei Sampaio da Nóvoa. Considero que se Marcelo Rebelo de Sousa for eleito tal representa premiar o oportunismo político e colocar em Belém não uma solução mas mais um problema a Portugal e aos portugueses.
Junto dois textos para quem estiver interessado em conhecer melhor o personagem Marcelo.


Um Berlusconi mais performante

Por J.-M. Nobre-Correia

21/01/2016

A campanha para as eleições presidenciais mostra bem a urgência que há em repensar o modo como média e jornalistas concebem a informação. E como ao longo dos anos impuseram o candidato “Marcelo”…

Seja qual for o desfecho que a campanha para as eleições presidenciais venha a ter, média e jornalistas deveriam tomá-la como tema de reflexão. Urgentemente. E não só sobre a maneira como cobriram a dita campanha. Sobre as prioridades que deram a tal ou tal outro personagem ou tema. Sobre as formas de tratamento que adotaram para abordá-los. Até porque, no fim de contas, estas e outras interrogações se põem de maneira geral e constante no que diz respeito à maneira como a informação é concebida neste país…

Mas a principal interrogação que as eleições presidenciais propõem é a que diz respeito a Marcelo Rebelo de Sousa. Um personagem nascido e criado na fina-flor do salazarismo, denunciador de comunistas ou simples opositores ao regime, que depois do 25 de Abril se pôs a utilizar os média para intrigar e manobrar. Nas célebres páginas 2 e 3 do Expresso, primeiro. Depois no Semanário e bastante mais tarde na dupla penúltima página do Sol. Paralelamente na TSF e em seguida na TVI, na RTP e de novo na TVI.

A aberração jornalística

A dupla página no Expresso como no Sol e a emissão dominical na TVI (para falar apenas naquelas a que pudemos ter pessoalmente acesso) constituíam em termos jornalísticos perfeitas aberrações. Em termos de tamanho (gigantesco), de escrita (singularmente descosida) e de temática (exageradamente saltitante), nenhum média europeu norteado por princípios profissionais teria aceitado assumi-los. Até porque não tinham parentesco algum com o que pretendiam ser: análise política. Mas também porque nenhum média jornalisticamente decente admitiria que um antigo dirigente político, indesmentível e permanente militante partidário, pudesse ter a pretensão de fazer análise política, género jornalístico que tem por autoria politólogos ou jornalistas seniores altamente especializados.

Não impede que, durante os quatro decénios de democracia, Rebelo de Sousa se tenha feito pagar principescamente para marcar presença. Para se fazer ler. Para se fazer ouvir. Para se fazer ver. Para fazer o seu “show”. Para, na altura que viesse a achar mais apropriada, viesse a candidatar-se à Presidência da República. Sem necessidade de fazer uma campanha de imagem dispendiosa, porque a imagem já tinha sido feita e até lhe tinha sido sumptuosamente paga.

Rebelo de Sousa conseguiu assim uma proeza bem superior à de Silvio Berlusconi. Porque Berlusconi teve que esforçadamente construir pouco a pouco um império mediático, antes de pretender ser chefe de partido político e primeiro ministro em Itália. Rebelo de Sousa não construiu nada (à parte a sua imagem), pouco assumiu em termos de responsabilidades políticas, pouco produziu em qualquer domínio de importância e agora nem sequer é candidato a responsabilidades difíceis, problemáticas e com duração incerta, mas apenas a uma função sobretudo de puro decoro. E foi pago para isso, dizendo tudo e o contrário de tudo em matérias em que muitas vezes nada conhecia, sem contraditor, em total impunidade política e jornalística.

Mimar os jornalistas

Esta impunidade foi fruto de um relacionamento cuidado com o meio jornalístico, sendo Rebelo de Sousa uma fonte privilegiada “off the record” do que se passava em meios de poder que frequentava e em que por vezes assumia funções. Propondo exclusividades em troca de uma imagem positiva dele nos média assim favorecidos. Inventando exclusividades quando se encontrava a seco (Paulo Portas que o diga). Traindo uns e outros (Francisco Pinto Balsemão foi uma das vítimas [1]), segundo as suas necessidades táticas e cataventistas do momento. Mimando os jornalistas de modo a que toda e qualquer declaração sua fosse imediatamente repercutida no média audiovisuais no próprio dia e na imprensa escrita logo no dia seguinte, de preferência com títulos de primeira página : nenhum verdadeiro analista político usufrui algum vez de tais benesses por parte dos média no resto da Europa !…

Como diriam os francófonos : durante mais de quarenta anos, jornalistas e média portugueses serviram a sopa a Rebelo de Sousa. Há pois, ao bom povo português, formado quotidianamente na cultura do futebol e da partidarice, que aceitá-lo, caso venha a ser eleito. É verdade que o vivaço reguila e brincalhão “da Linha” (companheiro de férias de Ricardo Salgado, no iate deste no Mediterrâneo ou na propriedade do mesmo no Brasil, mas presidente também da monárquica Fundação da Casa de Bragança !) será muito provavelmente menos cinzentão e mais hábil do que o atual residente em Belém. Mas a sua eventual eleição deixará um trágico rasto do funcionamento do jornalismo e dos média. E, por conseguinte, uma desoladora imagem da pobre democracia portuguesa…



[1] Caso Marcelo Rebelo de Sousa venha a ser eleito presidente da República, será interessante ver se Francisco Pinto Balsemão se manterá no Conselho de Estado como conselheiro do seu antigo empregado (no Expresso), de quem não se priva de dizer que “não é pessoa de confiança”. Tanto mais que Pinto Balsemão sonhou ele mesmo a certa altura poder vir a ser candidato à Presidência da República, fazendo uma declaração neste sentido numa entrevista publicada pelo desaparecido diário A Capital, de que era então proprietário.

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles



O herdeiro


16/01/2016

Desde 1973 que conta as histórias que quer, como quer, explicando Portugal como se fosse como ele diz, mas que não passa de um país que ele inventa semanalmente a seu gosto.

Ele é, por definição, um herdeiro. Filho de dirigente salazarista que, com 53 anos em 1974, havia feito todo o cursus honorum da ditadura (Mocidade Portuguesa, deputado, subsecretário de Estado, governador colonial, ministro), Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) foi “educado para ser político”, como escreve o seu “biógrafo consentido”, Vítor Matos (VM), que assim se autodefine no livro de 2012 onde reúne informação preciosa obtida do próprio biografado, e que aqui citarei. Marcelo é um herdeiro – não apenas no sentido estrito de primogénito de uma das figuras mais típicas dessa elite de funcionários fiéis que Salazar e Caetano recrutavam, cuja legitimidade repousava exclusivamente na lealdade para com o Chefe, mas também como produto (e produtor) de uma universidade classista que, na definição de Pierre Bourdieu (1964), é “a própria instância de reprodução dos privilégios e da preservação dos interesses dos herdeiros”. A tal ponto MRS se terá sentido a vida toda um herdeiro que logo aos 27 anos (1976) quis escrever as suas memórias. A maioria delas não eram suas mas sim daqueles de quem ele era herdeiro. “Tinha conhecido o salazarismo por dentro e vivera o marcelismo, lançara o Expresso, estivera na fundação do PPD e vivera a Constituinte. Tinha histórias para contar.” (VM, 319)

“Se havia gente que o achava afilhado de Caetano” - e não o era, por falta de vontade deste - “ele deixava achar”, assegura o padre João Seabra (VM, 86). Desde os “10 ou 12 anos” que o pai Baltazar o leva a assistir aos lanches de sábado no restaurante A Choupana, em S. João do Estoril, onde Caetano, afastado do governo em 1958, reunia os marcelistas indefetíveis enquanto fazia a sua travessia do deserto que só terminará com o AVC de Salazar. “Ouvir horas de discussão entre seniores do regime podia ter injetado em Marcelo o talento para para a intriga por detrás do pano. (…) O pai empenha-se em instruí-lo nos meandros do regime” (VM, 87-88). MRS descreve a experiência como “uma escola”, e é revelador que ache que “os comportamentos políticos não são muito diferentes em ditadura ou em democracia[,] as amizades, as inimizades, as traições, a atração do poder” (cit. VM, 91). Aos 20 anos, senta-se à mesa de todos os jantares oficiais do Governo Geral de Moçambique assumido pelo pai desde 1968. Quando Caetano sobe ao poder, janta uma vez por semana com ele. O adolescente a quem nunca faltou inteligência e intuição para o poder empenhou-se a fundo nessa “educação para ser político”, isto é, um futuro hierarca do regime; há quem se lembre no Liceu ouvi-lo dizer que um dia queria ser Presidente do Conselho (VM, 91). Muito jovem, assumirá os discursos e os temas de “exaltação nacionalista” do salazarismo dos anos 60: critica “a falta de amor pátrio daqueles que, direta ou indiretamente, (…) se divertiram neste Carnaval de 1962”, semanas depois da perda de Goa e em plena guerra em Angola. “Mais do que uma vilania foi uma afronta, uma verdadeira declaração de traição”. Em 1963, conclui uma redação escrevendo: “Pobres das nações que não têm filhos que lutem por elas e para elas!...” (cit. VM, 88-90) É surpreendente que, anos depois, não tenha feito a guerra em África. E teria tido tempo: acabou a licenciatura em 1971 e o Curso Complementar de Político-Económicas em 1972.

No liceu foi “nacionalista” (e o termo não lhe repugnava ainda há poucos anos atrás), mas muitos outros envolveram-se no movimento estudantil do secundário, transitando diretamente para a oposição aberta à ditadura nas universidades. Fazer opções destas aos 15 anos pode ser pouco representativo; na universidade, fazem-se com consciência, e Marcelo voltou a escolher a direita salazarista que queria fazer o “combate ideológico ao marxismo” (Freitas do Amaral, cit. VM, 120); na crise académica de 1969, “participa nas manifestações públicas de apoio à ditadura” (VM, 143). Nas eleições desse ano, momento de consciencialização política de tanta gente da sua geração, tem 21 anos e apoia, de novo, o partido único. (Até Cavaco, na sua autobiografia, dirá que terá votado na CEUD de Mário Soares – mas, claro, o voto é secreto...) “Ninguém se lembra de afirmações de Marcelo contra a guerra ultramarina”, garante VM. Com o pai ministro do Ultramar, não é de estranhar, admitamos. O que é completamente exótico é Leonor Beleza, sua colega e também filha de subsecretário de Estado da ditadura, achar hoje que “na época era cómodo estar de um lado ou do outro. Não pertencer a um grupo nem a outro e estar no meio era mais incómodo.” (cit. VM, 154) Da “comodidade” dos estudantes presos, torturados e mandados para a guerra por a ela se oporem, Beleza parece lembrar-se pouco... Em 1970, com Beleza e Braga de Macedo, Marcelo fura a greve académica na faculdade. E reúne-se com o novo ministro Veiga Simão para lhe dar “informações” sobre as “movimentações académicas” (VM, 164). É este, aliás, que lhe dá o seu primeiro emprego, no Ministério da Educação, em gabinete dirigido por Adelino da Palma Carlos, outro filho de subsecretário, que o tentara atrair repetidamente para o Opus Dei.

É verdade que manifesta publicamente o seu ceticismo relativamente à viabilidade da Reforma Educativa que Simão quer levar a cabo: “a verdadeira democratização do ensino (…) parece-me impossível no quadro de um regime autoritário e antidemocrático”, escreve ele em 1971 (cit. VM, 186), o que leva Caetano a exigir a Veiga Simão que o despeça. Mas não é despedido. Campeão da ambiguidade, o já jovem assistente de Direito não desiste de procurar o perdão de Caetano. Em 1973, já no Expresso, e já abortada pelo próprio ditador a Primavera marcelista, pede desculpa a Caetano pela “vivacidade” dos seus 24 anos e garante que “sempre estive na convicção” de que os “meus princípios não se opunham à pessoa de V.Exa”, cuja “presença na Chefia do Governo” volta a elogiar, prometendo-lhe “[inequivocamente] afastar-me do que possa ser entendido como atividade política ostensiva” (cit. VM, 226). A mãe, que do filho espera o cumprimento do destino de um herdeiro, intercede repetidamente por ele junto de Caetano (VM, 227-29). Em janeiro de 1974, dele escreve Artur Portela Filho: “Era o filho pródigo do Regime. (…) Estava talhado, calibrado, destinado” (cit. VM, 232).

Herdeiro de um hierarca politicamente influente, cuja família, só por isso, era automaticamente cooptada para o convívio da mais alta burguesia, “Marcelo começa a perceber como é a vida dos que têm posses.” E gosta. Ainda hoje gosta. Por mais que encene uma cristã preocupação com os mais pobres, “dirá ao longo da vida: 'melhor que ser rico, é ser amigo de ricos'” (VM, 79). É curioso que tenha escrito em 1999, na fotobiografia do seu pai, que “os governantes, na década de 50, enquanto o são, devem abster-se de fazer vida de ricos. Podem e devem dar-se entre si, eles e as famílias, mas evitar demasiados contactos com esse mundo perverso que os desviará do interesse geral.” É curioso porque não era verdade.

Depois do 25 de Abril, já sabemos das muitas razões para que os seus próprios correligionários o descrevam como um cata-vento, ou falem da sua “habilidade natural de iludir a realidade das coisas” (José M. Ricciardi, Expresso, 26.12.2014), de ter apoiado, depois traído, por vezes reconciliado com dezenas de personagens, da invenção de factos políticos. “Velho Rasputine”, chamou-lhe Paulo Portas (Independente, 1.10.1993), que dele podia ser um alter ego. “É filho de Deus e do Diabo: Deus deu-lhe a inteligência, o Diabo deu-lhe a maldade” (Portas, RTP, 4.12.1994). Em MRS intui-se, acima de tudo, a desmedida ambição que se estampa contra os erros de avaliação dos momentos e das conjunturas: os Inadiáveis contra Sá Carneiro (1978), Salgueiro contra Cavaco (1985), o fracasso da aliança com Paulo Portas (1999), três anos na liderança do PSD de que pouco mais fica a demonstração da sua infinita criatividade na criação de obstáculos mesmo nas mais plácidas conjunturas políticas. “Para se defender da frustração não assumida de não ter chegado a primeiro-ministro, conformou-se com a sua projeção de poder através da influência e da exposição comunicacional” (VM, 643). Desde 1973, primeiro no Expresso, depois no Semanário, na TSF (1993-96) e na TVI ou na RTP (consecutivamente desde 2000), que conta as histórias que quer, como quer, explicando Portugal como se fosse como ele diz, mas que não passa de um país que ele inventa semanalmente a seu gosto. Para o ajudar a chegar onde ele quer.

Porque o herdeiro, agora, quer ser Presidente.


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

AMBIENTE E UTOPIA

Cada vez mais o AMBIENTE, a sua preservação e defesa, é uma matéria que tem consequência directa sobre as nossas vidas. O Acordo de Paris conseguido há dias ficou muito longe das políticas que a Terra necessita para travar a degradação em curso, quanto mais para inverter e recuperar parte do que já foi perdido.
Este artigo do Soromenho-Marques, um dos pioneiros ambientais do país, ajuda a olhar melhor para este problema.

  Viriato Soromenho- Marques                                                                                                                                                                                  Na utopia ecológica, o importante é que a história continue
Por
14/01/2016
Para um dos maiores nomes do ambientalismo em Portugal, a sociedade deve permitir que cada um, dentro de limites ecológicos e materiais, possa seguir o seu caminho.
Quando se pergunta a um histórico ecologista qual é a sua utopia para um mundo sustentável, o que se espera é uma receita de soluções práticas em áreas como a energia, alimentação, transportes ou ordenamento. Mas Viriato Soromenho Marques, professor de filosofia na Universidade de Lisboa e um dos principais nomes da arena ambiental no país, tem uma visão mais estrutural: para alcançar a sustentabilidade, é preciso reinventar a utopia clássica, pôr a tónica na ética e na política, e abandonar a crença de que tudo se vai resolver com a próxima invenção tecnológica.
O testemunho da poluição
"A minha educação ambiental começou em 1972, 1973, por via dos programas Há Só uma Terra. Foi a primeira vez que ouvi falar do relatório Os Limites do Crescimento. Eu estava no liceu, tinha uns 14 anos. O livro causou-me um grande impacto. Atingiu-me como uma pedra.
Nasci e vivi em Setúbal. Naquela altura, era uma cidade que mudava a olhos vistos com a indústria. Eu assisti à transformação da paisagem e à poluição. Antes da Setenave, fazia caminhadas no estuário do Sado e regressava à casa com os pés retalhados das ostras. Desapareceu tudo por causa do TBT [produto utilizado nas tintas dos navios].
Aos 18 anos, comecei a escrever sobre temas ambientais para o trissemanário Nova Vida. Em 1978, resolvi criar uma associação, em que um dos fundadores era o Zeca Afonso. E em 1980-1981, comecei a colaborar com o projecto Setúbal Verde. Em 1987, integrámo-nos na Quercus.
Vivi como toda a gente a viragem política à esquerda em 1974. E fiz um pouco o casamento das duas coisas, o que correspondia a um eco-socialismo: a crise do ambiente chama a atenção para o facto de estarmos a usar a natureza de uma forma predatória; o socialismo chama a atenção para o facto de estarmos a utilizar as pessoas, não respeitando a sua dignidade. No fundo, são duas formas de abuso.
Nessa altura, aquilo que mais me preocupava – e me preocupa – é esta degradação da qualidade de vida. Ver o mundo invadido pelo lixo, pela poluição, era algo que colocava em questão a própria sobrevivência da humanidade. Para mim, isso era claro já naquela altura".
Filosofia e o fim da história
"A minha formação conduziu-me pelo caminho da filosofia continental, a europeia, a alemã, que é uma filosofia do pensamento da totalidade, do sentido da história, do significado da marcha humana neste planeta. E há uma tendência muito grande para o conceito do fim da história. Ou seja, a história tem um projecto, tem uma finalidade, e a nossa função é compreender e ajudar a realizar este trajecto.
A ideia é que o absoluto é uma coisa positiva. Mas pensei: imagine que, afinal, o segredo da história não é o absoluto pela positiva, mas o absoluto negativo. Ou seja, que o sentido da história não é a realização de uma possibilidade, mas a absoluta destruição das possibilidades de realização. Podemos ter uma guerra nuclear ou podemos ter uma catástrofe ambiental. Fiquei logo assustado".
A crise ambiental planetária
"Hoje em dia toda a gente fala de crise para tudo e para nada. Mas o que é que há de diferente na crise ambiental? Primeiro aspecto: é uma crise planetária, é a única crise verdadeiramente planetária. A crise económica e financeira não atinge a Antárctida. Nos oceanos não se discute a queda da bolsa de Nova Iorque. Em contrapartida, temos os oceanos acidificados, a criosfera afectada, sítios onde nem existem pessoas.
Segunda característica: é uma crise que tem a natureza de acumulação temporal, diferida no tempo. A modificação da estrutura química da atmosfera começou há 260 anos, com a máquina a vapor. E agora, em 2015, começamos a sentir os primeiros efeitos. Podemos ter uma geração que só colhe os benefícios e outra que só colhe os prejuízos.
Terceira característica: a irreversibilidade. Tivemos uma grande depressão em 1929, o nazismo, a Segunda Guerra Mundial. Mas em 1945, o mundo estava a ser reconstruído. Na crise ambiental, quando uma espécie desaparece, ela nunca mais volta – a não ser nos filmes de Hollywood.
Uma quarta característica é o impacte da crise ambiental na própria estrutura sociopolítica. É um elemento de insegurança político-institucional, vai ser um factor de criação de estados falhados.
Há um quinto ponto também: o desafio psicológico. Pelo seu gigantismo, a crise ambiental coloca-nos o dilema de aceitar a complexidade, e isto implica mudar o modo de vida, os hábitos de consumo, o que comemos, como nos deslocamos. Não é fácil, é como se estivéssemos a interrogar a respiração, se cada vez que inspiramos tivéssemos de pensar se estamos a fazer bem.
Isto pode levar a uma reacção contrária, de entropia. O Partido Republicano, nos Estados Unidos, por exemplo, é o partido da entropia, dos indivíduos que dizem “que se lixe”. Psicologicamente, estamos divididos entre uma consciência da complexidade, que nos conduz a uma conduta ética e política de grande responsabilidade, e a própria irresponsabilidade".
À espera da última app
"Considero que há duas utopias fundamentais. Há uma utopia clássica, que é essencialmente ética. E há uma utopia moderna, que é essencialmente tecno-científica. As utopias de Platão e de Thomas More dizem o seguinte: nós podemos criar uma sociedade melhor, temos é de ter a disposição moral para isso, temos de nos organizar ética e politicamente para isso.
A utopia tecno-científica é a que está à espera da última app na Internet. Ou seja, podemos ter uma sociedade melhor, mas isto não tem nada a ver com a nossa mudança de comportamentos, atitudes ou valores. Tem a ver com o facto de haver uma máquina que nos permita lá chegar. É como acreditar no Pai Natal. O Stephen Hawking, uma pessoa maravilhosa e muito inteligente, acredita que uma parte da humanidade poderá emigrar para outro planeta. É uma história de fadas.
Uma das características fundamentais da utopia tecno-científica é o falhanço entre expectativa e resultados. Augusto Comte dizia, em 1822: vamos começar uma nova idade, a idade industrial. Vamos substituir o domínio do homem sobre o homem pelo domínio do homem sobre a natureza. Vamos ter mais produção, mais riqueza. Teremos a paz porque toda a gente terá abundância. Mas a paz não aconteceu. Temos tecnologia e temos guerra e exploração.
É o mesmo discurso dos utopistas modernos. Na biotecnologia, argumenta-se que os organismos geneticamente modificados vão acabar com a fome no mundo. É conversa. E continuamos a dizer a mesma coisa que dizíamos sobre o nuclear, que é seguro, que está sob controlo.
É por isso que surge a crítica ecológica. Ela não é anti-tecnológica, mas é uma crítica a esta forma de como nós transformamos a tecnologia num fim em si próprio, e não num instrumento fundamental. Se não colocarmos a tecnologia dentro de limites políticos muito precisos, ela vai-se desenvolver até ao colapso".
Política de ciência e parlamentos
"A política de ciência é fundamental. Vamos ter uma mudança positiva a partir do momento em que o financiamento à investigação científica começar a ser um assunto de primeira relevância. No fundo, trata-se de voltar a colocar no plano das instituições políticas o comando das operações. E não como acontece agora, em que temos a tecnologia completamente à solta, e aquelas comissões de ética que andam atrás.
Precisamos de um controlo democrático. É escandaloso perceber que gastamos várias vezes mais na investigação de novos cosméticos do que nas energias renováveis. A investigação científico-tecnológica não é dominada por uma ideia de bem comum da humanidade, mas pela maximização do lucro das empresas.
Os parlamentos é que têm de tomar estas decisões, não são as academias. Temos não só de pôr a investigação debaixo da alçada dos representantes do povo, como também o mercado debaixo da alçada da lei pública.
Só há uma hipótese, que é encontrar uma estrutura política que permita corresponder à escala económica que temos hoje. Por isso é que eu sou um federalista. Temos de ter, além dos estados nacionais, ligações federadas entre eles. O caminho para a sustentabilidade não está em criar um estado mundial. Mas temos de ter uma ordem mundial de estados".
Palmadas nas costas em Paris
"A minha utopia, o meu projecto, assenta num regresso do primado da razão prática, da ética e da política. A partir de Francis Bacon [1561-1626], cometemos o erro fundamental de considerar que podíamos mudar o futuro para melhor confiando nas nossas invenções tecnológicas. Mas não estamos a jogar em condições de ausência de constrangimentos. Temos cada vez menos tempo em matéria de recursos, de equilíbrio climático, em matéria demográfica. O jogo está a ficar cada vez mais contraído. É fundamental alargar a margem de tempo, e nisso é a política que pode ajudar, e não a tecnologia.
Por isso é que continuo a defender um modelo clássico de regime internacional para o ambiente, com metas vinculativas. Só  isso é capaz de criar uma mudança das regras do jogo que permita canalizar os investimentos necessários à inovação num tempo mais eficaz.
O recente Acordo de Paris [para o combate às alterações climáticas] corresponde à visão tecno-científica contemporânea. A ideia básica é essa: deixem o mercado trabalhar, o mercado há-de encontrar a melhor solução. O acordo coloca as regras do mercado a constranger a sociedade, enquanto devemos pôr as regras da sociedade política a constranger o mercado.
O sistema de compromissos anunciados pelos países não é suficiente. São palmadas nas costas, é uma conversa retórica, de que todos somos irmãos. É melhor do que não haver acordo. Mas falta a noção de que precisamos ir mais depressa. E só é possível ir mais depressa se encontrarmos mecanismos artificiais que modelem o mercado.
Um exemplo simples: o preço do petróleo. Se quisermos resolver o problema até nem precisamos ter metas, basta ter um preço fixo para o barril de crude, por exemplo, que não desça abaixo de 100 dólares".
A utopia pluralista
"A minha utopia é uma utopia pluralista. A melhor sociedade é uma sociedade onde não exista o fim da história. E isto parece-me algo novo na ecologia. As utopias tradicionais – clássica e moderna – tinham uma coisa em comum: propunham uma determinada vistão do fim da história, uma sociedade que seria a ideal. A utopia ecológica diz que o importante é que a história continue, é criar condições de possibilidade para que as gerações seguintes continuem a ter as suas utopias.
A grande utopia é termos uma sociedade que permita que cada um, dentro de limites ambientais, ecológicos, materiais, possa seguir o seu caminho. A minha utopia para o futuro é a utopia da realização do indivíduo.
Mas se não arranjarmos a casa, se não organizarmos politicamente a economia e a sociedade, não vamos ter nada disso. Teremos sociedades de refugiados ambientais, de estados policiais, de estados de emergência. O terrorismo, agora, é uma pequena amostra do que poderá vir a acontecer".
Depoimento recolhido e editado por Ricardo Garcia


sábado, 9 de janeiro de 2016


Um texto que nos chama a atenção para evoluções verificadas na sociedade e nas classes que a compõem. Polémico certamente para alguns, mas a polémica agita e faz pensar.


O eclipse de Marx e a viragem do proletariado à extrema-direita

O eclipse de Marx e a viragem do proletariado à extrema-direita

Por José Pedro Teixeira Fernandes

09/12/2015

Os partidos políticos de governo, hoje ideologicamente neoliberais ou multiculturalistas, fracassaram na resposta às preocupações do proletariado e das populações oriundas de outras culturas.

1. Parece implausível. O proletariado não suporta ideologias e partidos de extrema-direita. São a antítese da consciência de classe, no sentido marxista do termo, dos problemas de quem vive de um parco ou miserável salário. Mas a história das ideias políticas contém muitas surpresas. Mussolini foi director do Avanti!, o jornal do Partido Socialista e marxista italiano, entre 1912-1914. Após a I Guerra Mundial, metamorfoseou-se como fundador e líder do Partido Nacional Fascista. O pensamento de Nietzsche teve grandes admiradores em Mussolini e no círculo dirigente nazi. A partir dos anos 1960, passou a ser apreciado pela esquerda intelectual e política francesa. Carl Schmitt, “o jurista da corte do Terceiro Reich”, foi objecto de apropriação por parte da esquerda radical, especialmente a italiana, nos anos 1970, na sua contestação à democracia liberal-parlamentar. A moderna ideia de nação — a qual surgiu ligada à esquerda política, com a Revolução Francesa de 1789 — foi, a pouco e pouco, deslocando-se. Há uma apropriação pela direita, ou extrema-direita, desta. Hoje, a esquerda sente-se incomodada com a referência à nação e as manifestações de nacionalismo. Prefere ideias europeístas, multiculturais ou universalistas, especialmente os direitos humanos. As metamorfoses de ideias políticas são surpreendentes, mas não invulgares. Podemos estar a assistir a um processo político similar com as ideologias que suportavam a classe trabalhadora / proletariado. Os seus problemas económicos e sociais, os seus valores culturais, estão a ser apropriados pela extrema-direita e direita populista. A esquerda contemporânea, especialmente a de governo, sente-se desconfortável com o proletariado. Este é — sempre foi, mesmo quando votava em massa nos partidos trabalhistas ou comunistas —, cultural e moralmente conservador. Nas prioridades da agenda política de esquerda estão causas como as minorias, a igualdade de género, a liberdade de orientação sexual e o ambiente. Abandonou, continua a afastar-se do que era, não há muito tempo atrás, o seu principal eleitorado.

2. Tudo indica que o atentado terrorista de 13/N e a crise dos refugiados impulsionaram eleitoralmente a Frente Nacional (FN). Na primeira volta das eleições regionais francesas, efectuada a 6/12/2015, obteve cerca de 28% dos sufrágios a nível nacional. Foi a força política mais votada em seis das treze regiões francesas. A taxa de abstenção foi elevada: próxima dos 50%. Uma questão vem à mente: quem são as camadas da população que votam na FN? Não há ainda estudos sobre esta eleição, mas há estudos sobre actos eleitorais anteriores os quais permitem aferir esse perfil. Vale a pena olhar para os mesmos e ver a realidade que espelham. Em 2014, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, 43% dos operários terão votado na FN de Marine Le Pen. Apenas 8% o fizeram na Frente de Esquerda de Jean-Luc Mélenchon, a coligação onde se enquadra o partido comunista francês. (Ver Le Monde “Le FN obtient ses meilleurs scores chez les jeunes et les ouvriers”, 25/05/2014). Que pensar do voto desses operários — o núcleo histórico e simbólico do proletariado —, num partido de extrema-direita, ou direita populista? Uma possível (e controversa) interpretação é dada por Christophe Guilluy, autor do livro “La France périphérique: Comment on a sacrifié les classes populaires” / A França Periférica: como foram sacrificadas as classes populares (Flammarion, 2014). Guilluy traça um perfil desse votante e das suas motivações. Segundo sustenta, é redutor ver esse voto apenas sob o prisma do racismo, xenofobia ou islamofobia. Entre o eleitorado da FN existem esses problemas e devem ser confrontados. Sugere, no entanto, uma explicação mais complexa. Problemas económicos e sociais profundos — sobretudo nas regiões Norte e Leste — e culturais indentitários —, especialmente nas regiões do Sul. Os votantes encontram-se nos “territórios periféricos da França, com baluartes que são sempre o Norte, o Leste, o Mediterrâneo. Quando olhamos melhor para as regiões e departamentos vemos que a lógica é exactamente a mesma em todas as situações”. Tipicamente nas “zonas económicas menos activas, que criam menos empregos. Estes são os territórios mais distantes das grandes metrópoles, das grandes cidades dinâmicas”. Christophe Guilluy conclui que “há uma verdadeira lógica, sociológica e política” nesse voto, o qual, em grande parte, é um voto de trabalhadores / operários e de protesto: “não é por acaso que a votação na FN se tornou um voto de classe, aliás com uma sociologia de esquerda…" (Ver entrevista na revista Slate, ‘Le vote FN est devenu un vote de classe’, 26/03/2015). Nas eleições regionais de 6/12/2015, Marine Le Pen teve mais de 40% dos sufrágios na região industrial do Norte-Pas-de-Calais-Picardia. Está também aí o campo de refugiados / migrantes de Calais, junto à entrada do eurotúnel. Esta votação parece dar plausibilidade à explicação. Ironicamente, num terreno sociológico que Marx via como seu.

3. “O movimento proletário é o movimento autónomo da maioria imensa, no interesse da maioria imensa.” […] O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora [...] coloca, no lugar do isolamento dos operários pela concorrência, a sua união revolucionária pela associação. […] produz, antes do mais, o seu próprio coveiro. O seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.” Estas antevisões do futuro — ver “Manifesto do Partido Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels de 1848 (trad. port. Edições “Avante!”, 1997) —, estão desfasadas da realidade do final do século XX e inícios do século XXI. Conforme já referido, parte importante do debate político passou da economia política — como era nos tempos de Marx, e foi até aos anos 1980 —, para as minorias, a igualdade de género, a liberdade de orientação sexual, o ambiente as migrações e o multiculturalismo. Isto com grande vantagem para o (neo)liberalismo. O abandono do terreno pela esquerda deixou-o hegemónico na economia política. Esta mutação é mal percebida em Portugal. A nossa realidade sociológica — pelo menos até agora foi assim —, mostra uma das sociedades culturalmente mais homogéneas da Europa. Com provável relação com este facto, subsiste um partido comunista com importante peso eleitoral. Retém, ainda, a grande maioria do voto do proletariado. Na União Europeia, o mesmo só ocorre em Chipre. Não por acaso, também aí existe uma grande homogeneidade cultural entre os cipriotas gregos. Entre nós, a designação como “assuntos de costumes”, ou “causas fracturantes”, sobretudo a primeira, sugere questões relativamente afastadas do debate político central. Mas é a nossa política que está desfasada da realidade europeia dominante. Laurent Jeanneau, na sua análise às razões do voto na FN, em França (Ver “Pourquoi ils votent FN” in Alternatives Economiques n.° 332, Fevereiro 2014), mostra esse desfasamento. “Há vinte anos, a clivagem política ainda se concentrava, principalmente, sobre os valores socio-económicos: deve-se redistribuir a riqueza? Aumentar os salários? O Estado deve intervir na economia? Essas questões marcavam o debate político e os trabalhadores, na época. Estes votavam massivamente à esquerda, enquanto os quadros se inclinavam para a direita”. Apesar da crise financeira e económica ter dado nova relevância às questões de economia política, a tendência de fundo não se alterou. Os “valores culturais” são hoje terreno de confrontação política e da (re)configuração ideológica em curso.

4. Provavelmente existe uma relação directa entre o multiculturalismo de gueto e a viragem, de uma parte substancial da classe trabalhadora / proletariado, à extrema-direita. O multiculturalismo de gueto ocorre quando a presença, num mesmo território, frequentemente suburbano, é feita através de um acantonamento de um grupo étnico, cultural ou religioso, em áreas específicas de grande concentração. Por sua vez, os contactos com a cultura maioritária da sociedade de acolhimento, as interacções com esta e a partilha de valores são mínimos. (Ver “A França e o multiculturalismo de gueto” in Público). “Pequenos brancos” (petits blancs). A expressão tem conotações depreciativas. Surgiu ligada à história colonial francesa e às populações de origem europeia da Ilha de Reunião — no Índico, próxima de Madagáscar —, com pele clara, mas pobres e de estatuto social baixo. Hoje, por transposição de ideias, é aplicada às populações nativas francesas pobres que vivem em contacto directo com populações oriundas de migrações não europeias. (Ver o livro de Aymeric Patricot, “Les petits Blancs: Un voyage dans la France d'en bas” / Pequenos brancos: uma viagem na França das classes baixas, Plein Jour, 2013). É este proletariado autóctone que mais contacta, na vivência do dia-a-dia, com o multiculturalismo de gueto. É aqui que o mal-estar social grassa e é captado pela extrema extrema-direita em interacção directa com outro radicalismo: o dos islamistas. Partes significativas da população do grupo cultural maioritário, habituadas a uma lógica monocultural, têm sentimentos de vulnerabilidade, receio e insegurança. Em termos culturais, sentem-se estrangeiros no seu próprio território. Em termos económicos, são os que estão mais em contacto — e, sobretudo, envolvidos numa competição —, por recursos escassos, nos lugares pior pagos do mercado de trabalho e nas prestações sociais. Vêem o capitalismo neoliberal usar as populações ligadas ao multiculturalismo de gueto para baixar os salários com essa mão-de-obra concorrente. Sentem-se esquecidos, ressentem-se como perdedores da integração europeia e globalização. Nesta sociedade destrutiva duas forças políticas emergem: o radicalismo de extrema-direita e o radicalismo islamista. Os partidos políticos de governo, hoje ideologicamente neoliberais ou multiculturalistas, fracassaram na resposta às preocupações do proletariado e das populações oriundas de outras culturas.

Investigador


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

NOVO ANO E VELHOS PROBLEMAS



Queremos sempre acreditar que o dia 1º de Janeiro de cada ano, por acaso Dia Mundial da Paz, vai dar respostas positivas aos nossos anseios e esperanças.
O ano que morreu simbolicamente às 24 horas do dia 31 de Dezembro não nos deixou saudades, fomos assistentes e vítimas do maior retrocesso político, social, económico e civilizacional após o 25 de Abril.
Este texto do João Caraça é simultâneamente um olhar sobre o passado, análise amarga do presente e, apesar de tudo, crença no futuro. Daí me parecer um bom texto para começar o ano no Xaringado e por tal o escolhi. Boa leitura!



Tanto mau costume, e em tempo avesso
Por João Caraça
05/01/2016
A turbulência que campeia pela Europa é o prenúncio das revoltas que estão por eclodir.
Era assim – “(…) tanto mau costume, e em tempo avesso” – que o poeta André Falcão de Resende descrevia a época desvairada que tinha produzido, apesar de tudo, um génio como o seu amigo Luís de Camões. Não devemos pois ficar demasiado desassossegados com as crises e malfeitorias que agora vemos, porque talvez não sejam tão excepcionais na história como isso (o século XVI também não foi caso único). Preocupemo-nos sim com a amplitude e a dimensão da desgraça e da criminalidade que grassa pela Europa. Não só não aprendemos com a história, como também os sistemas em que vivemos se vão dotando de uma perversidade crescente, que só diminui quando colapsam na fornalha da próxima revolução.
O conceito moderno de “cidadão” apareceu com a revolução francesa. A soberania passou a residir no povo e não num monarca. O que havia antes eram “súbditos” e “servos”. É a ideia de soberania popular que define politicamente a esquerda desde o seu nascimento. Foi em França, igualmente no século das “luzes”, que a frase “laissez faire, laissez passer” foi inventada, promovendo um modelo “liberal” para a estrutura e funções da actividade económica. O capitalismo absorveu bem o choque da revolução e adaptou-se com proficiência às novas condições de vida em sociedade. De facto, transformou-se e robusteceu-se. Como explica Karl Polanyi em “A Grande Transformação”, a economia, que desde sempre esteve imersa na rede das relações sociais, passou a partir de então a comandar a vida social pelo que as relações sociais passaram a estar incorporadas no sistema económico.
Apoiado em regimes parlamentares, o capitalismo foi-se apoderando habilmente do sistema-mundo económico e portanto de toda a sociedade. Conseguiu com êxito durante os últimos cento e cinquenta anos compatibilizar a igualdade política (indispensável para legitimar a liquidação dos privilégios senhoriais bem como a abolição da escravatura) com a desigualdade económica – inerente ao modo de acumulação capitalista. As constituições dos nossos Estados-nação defendem tanto os direitos do cidadão como os da propriedade. Nada disto foi obra do acaso.
Claro que apenas foi possível gerir estas práticas antagónicas porque houve um sustentado crescimento da riqueza gerada. A expansão colonial europeia ajudou. A estabilidade dos sistemas nacionais repousou ainda sobre a existência de uma classe média em alargamento, apta a alternar o seu voto entre dois grandes partidos do centro político, um mais à esquerda, outro mais à direita, consoante as vicissitudes das conjunturas interna e externa.
Mas nem tudo foram rosas neste último século e meio. Os movimentos reivindicativos de melhores condições de vida para as populações e para a generalidade dos trabalhadores foram uma constante, embora com várias intensidades e calibres. Surgiram várias esquerdas, herdeiras de experiências históricas específicas; travaram-se duas guerras terríveis em solo europeu; ocorreram revoluções na Rússia e na China; as nações europeias foram forçadas a descolonizar; o centro do sistema-mundo moveu-se do Reino Unido para os Estados Unidos da América; o capitalismo financeiro tomou as rédeas do Estado e lançou-se na globalização; as desigualdades não pararam de aumentar.
As crises que tiveram origem nos Estados Unidos e assolaram a Europa neste século são o resultado das disfunções do capitalismo financeiro “informacional” (e da sua ânsia de acumulação infinita de capital) como ordenador do mundo. A desagregação dos poderes do Estado favorecida pela globalização facilitou a mescla do trigo com o joio. As consequências estão à vista: escândalos financeiros em catadupa; paraísos fiscais que servem para branquear operações fraudulentas; administrações nacionais infiltradas pela corrupção. Basta, estamos fartos!
No meio da desconfiança generalizada que daqui resultou só por milagre o produto mundial poderia voltar a crescer tal como no século XX. As deslocalizações que beneficiaram o capital financeiro destruíram ao mesmo tempo muito do capital humano do ocidente. O nível de desemprego aumentou. E a ideologia neoliberal da competitividade e do crescimento é claramente incapaz de reduzir o desemprego a curto prazo.
Daí a indignação contra as políticas de austeridade: porquê reduzir o Estado-providência precisamente quando a situação económica geral piorou? E por que razão só os mais ricos ficam mais ricos? Quando parte da população cruza o limiar da pobreza, uma considerável fracção da classe média é arrastada para níveis próximos dela. Perde-se assim o estabilizador do regime – a maioria que disputava o “centro” – o que faz com o que o sistema político se torne caótico. Num recente artigo (no site do Centro Fernand Braudel) Immanuel Wallerstein discorre sobre as consequências desta deriva para os sistemas eleitorais de hoje.
A turbulência que campeia pela Europa é o prenúncio das revoltas que estão por eclodir. É tempo de avisarmos os nossos concidadãos, tal como Thomas Mann, em “Aviso à Europa” (1937):
“Em todo o humanismo há um elemento de fraqueza que vem da sua repugnância por qualquer fanatismo, da sua tolerância, e da sua inclinação para um cepticismo indulgente, numa palavra, da sua bondade natural. Mas isso pode, em certas circunstâncias, tornar-se fatal. Aquilo de que nós teríamos necessidade, hoje, seria de um humanismo militante, um humanismo que afirmasse a sua virilidade e que estivesse convencido de que os princípios da liberdade, da tolerância e do livre arbítrio não têm o direito de se deixar explorar pelo fanatismo sem vergonha dos seus inimigos.”
De todos os seus inimigos, os de dentro e os de fora. O tempo está avesso mas é o nosso. É neste tempo que se desenha o futuro. Bom Ano Novo!
Professor universitário, físico