quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

AMBIENTE E UTOPIA

Cada vez mais o AMBIENTE, a sua preservação e defesa, é uma matéria que tem consequência directa sobre as nossas vidas. O Acordo de Paris conseguido há dias ficou muito longe das políticas que a Terra necessita para travar a degradação em curso, quanto mais para inverter e recuperar parte do que já foi perdido.
Este artigo do Soromenho-Marques, um dos pioneiros ambientais do país, ajuda a olhar melhor para este problema.

  Viriato Soromenho- Marques                                                                                                                                                                                  Na utopia ecológica, o importante é que a história continue
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14/01/2016
Para um dos maiores nomes do ambientalismo em Portugal, a sociedade deve permitir que cada um, dentro de limites ecológicos e materiais, possa seguir o seu caminho.
Quando se pergunta a um histórico ecologista qual é a sua utopia para um mundo sustentável, o que se espera é uma receita de soluções práticas em áreas como a energia, alimentação, transportes ou ordenamento. Mas Viriato Soromenho Marques, professor de filosofia na Universidade de Lisboa e um dos principais nomes da arena ambiental no país, tem uma visão mais estrutural: para alcançar a sustentabilidade, é preciso reinventar a utopia clássica, pôr a tónica na ética e na política, e abandonar a crença de que tudo se vai resolver com a próxima invenção tecnológica.
O testemunho da poluição
"A minha educação ambiental começou em 1972, 1973, por via dos programas Há Só uma Terra. Foi a primeira vez que ouvi falar do relatório Os Limites do Crescimento. Eu estava no liceu, tinha uns 14 anos. O livro causou-me um grande impacto. Atingiu-me como uma pedra.
Nasci e vivi em Setúbal. Naquela altura, era uma cidade que mudava a olhos vistos com a indústria. Eu assisti à transformação da paisagem e à poluição. Antes da Setenave, fazia caminhadas no estuário do Sado e regressava à casa com os pés retalhados das ostras. Desapareceu tudo por causa do TBT [produto utilizado nas tintas dos navios].
Aos 18 anos, comecei a escrever sobre temas ambientais para o trissemanário Nova Vida. Em 1978, resolvi criar uma associação, em que um dos fundadores era o Zeca Afonso. E em 1980-1981, comecei a colaborar com o projecto Setúbal Verde. Em 1987, integrámo-nos na Quercus.
Vivi como toda a gente a viragem política à esquerda em 1974. E fiz um pouco o casamento das duas coisas, o que correspondia a um eco-socialismo: a crise do ambiente chama a atenção para o facto de estarmos a usar a natureza de uma forma predatória; o socialismo chama a atenção para o facto de estarmos a utilizar as pessoas, não respeitando a sua dignidade. No fundo, são duas formas de abuso.
Nessa altura, aquilo que mais me preocupava – e me preocupa – é esta degradação da qualidade de vida. Ver o mundo invadido pelo lixo, pela poluição, era algo que colocava em questão a própria sobrevivência da humanidade. Para mim, isso era claro já naquela altura".
Filosofia e o fim da história
"A minha formação conduziu-me pelo caminho da filosofia continental, a europeia, a alemã, que é uma filosofia do pensamento da totalidade, do sentido da história, do significado da marcha humana neste planeta. E há uma tendência muito grande para o conceito do fim da história. Ou seja, a história tem um projecto, tem uma finalidade, e a nossa função é compreender e ajudar a realizar este trajecto.
A ideia é que o absoluto é uma coisa positiva. Mas pensei: imagine que, afinal, o segredo da história não é o absoluto pela positiva, mas o absoluto negativo. Ou seja, que o sentido da história não é a realização de uma possibilidade, mas a absoluta destruição das possibilidades de realização. Podemos ter uma guerra nuclear ou podemos ter uma catástrofe ambiental. Fiquei logo assustado".
A crise ambiental planetária
"Hoje em dia toda a gente fala de crise para tudo e para nada. Mas o que é que há de diferente na crise ambiental? Primeiro aspecto: é uma crise planetária, é a única crise verdadeiramente planetária. A crise económica e financeira não atinge a Antárctida. Nos oceanos não se discute a queda da bolsa de Nova Iorque. Em contrapartida, temos os oceanos acidificados, a criosfera afectada, sítios onde nem existem pessoas.
Segunda característica: é uma crise que tem a natureza de acumulação temporal, diferida no tempo. A modificação da estrutura química da atmosfera começou há 260 anos, com a máquina a vapor. E agora, em 2015, começamos a sentir os primeiros efeitos. Podemos ter uma geração que só colhe os benefícios e outra que só colhe os prejuízos.
Terceira característica: a irreversibilidade. Tivemos uma grande depressão em 1929, o nazismo, a Segunda Guerra Mundial. Mas em 1945, o mundo estava a ser reconstruído. Na crise ambiental, quando uma espécie desaparece, ela nunca mais volta – a não ser nos filmes de Hollywood.
Uma quarta característica é o impacte da crise ambiental na própria estrutura sociopolítica. É um elemento de insegurança político-institucional, vai ser um factor de criação de estados falhados.
Há um quinto ponto também: o desafio psicológico. Pelo seu gigantismo, a crise ambiental coloca-nos o dilema de aceitar a complexidade, e isto implica mudar o modo de vida, os hábitos de consumo, o que comemos, como nos deslocamos. Não é fácil, é como se estivéssemos a interrogar a respiração, se cada vez que inspiramos tivéssemos de pensar se estamos a fazer bem.
Isto pode levar a uma reacção contrária, de entropia. O Partido Republicano, nos Estados Unidos, por exemplo, é o partido da entropia, dos indivíduos que dizem “que se lixe”. Psicologicamente, estamos divididos entre uma consciência da complexidade, que nos conduz a uma conduta ética e política de grande responsabilidade, e a própria irresponsabilidade".
À espera da última app
"Considero que há duas utopias fundamentais. Há uma utopia clássica, que é essencialmente ética. E há uma utopia moderna, que é essencialmente tecno-científica. As utopias de Platão e de Thomas More dizem o seguinte: nós podemos criar uma sociedade melhor, temos é de ter a disposição moral para isso, temos de nos organizar ética e politicamente para isso.
A utopia tecno-científica é a que está à espera da última app na Internet. Ou seja, podemos ter uma sociedade melhor, mas isto não tem nada a ver com a nossa mudança de comportamentos, atitudes ou valores. Tem a ver com o facto de haver uma máquina que nos permita lá chegar. É como acreditar no Pai Natal. O Stephen Hawking, uma pessoa maravilhosa e muito inteligente, acredita que uma parte da humanidade poderá emigrar para outro planeta. É uma história de fadas.
Uma das características fundamentais da utopia tecno-científica é o falhanço entre expectativa e resultados. Augusto Comte dizia, em 1822: vamos começar uma nova idade, a idade industrial. Vamos substituir o domínio do homem sobre o homem pelo domínio do homem sobre a natureza. Vamos ter mais produção, mais riqueza. Teremos a paz porque toda a gente terá abundância. Mas a paz não aconteceu. Temos tecnologia e temos guerra e exploração.
É o mesmo discurso dos utopistas modernos. Na biotecnologia, argumenta-se que os organismos geneticamente modificados vão acabar com a fome no mundo. É conversa. E continuamos a dizer a mesma coisa que dizíamos sobre o nuclear, que é seguro, que está sob controlo.
É por isso que surge a crítica ecológica. Ela não é anti-tecnológica, mas é uma crítica a esta forma de como nós transformamos a tecnologia num fim em si próprio, e não num instrumento fundamental. Se não colocarmos a tecnologia dentro de limites políticos muito precisos, ela vai-se desenvolver até ao colapso".
Política de ciência e parlamentos
"A política de ciência é fundamental. Vamos ter uma mudança positiva a partir do momento em que o financiamento à investigação científica começar a ser um assunto de primeira relevância. No fundo, trata-se de voltar a colocar no plano das instituições políticas o comando das operações. E não como acontece agora, em que temos a tecnologia completamente à solta, e aquelas comissões de ética que andam atrás.
Precisamos de um controlo democrático. É escandaloso perceber que gastamos várias vezes mais na investigação de novos cosméticos do que nas energias renováveis. A investigação científico-tecnológica não é dominada por uma ideia de bem comum da humanidade, mas pela maximização do lucro das empresas.
Os parlamentos é que têm de tomar estas decisões, não são as academias. Temos não só de pôr a investigação debaixo da alçada dos representantes do povo, como também o mercado debaixo da alçada da lei pública.
Só há uma hipótese, que é encontrar uma estrutura política que permita corresponder à escala económica que temos hoje. Por isso é que eu sou um federalista. Temos de ter, além dos estados nacionais, ligações federadas entre eles. O caminho para a sustentabilidade não está em criar um estado mundial. Mas temos de ter uma ordem mundial de estados".
Palmadas nas costas em Paris
"A minha utopia, o meu projecto, assenta num regresso do primado da razão prática, da ética e da política. A partir de Francis Bacon [1561-1626], cometemos o erro fundamental de considerar que podíamos mudar o futuro para melhor confiando nas nossas invenções tecnológicas. Mas não estamos a jogar em condições de ausência de constrangimentos. Temos cada vez menos tempo em matéria de recursos, de equilíbrio climático, em matéria demográfica. O jogo está a ficar cada vez mais contraído. É fundamental alargar a margem de tempo, e nisso é a política que pode ajudar, e não a tecnologia.
Por isso é que continuo a defender um modelo clássico de regime internacional para o ambiente, com metas vinculativas. Só  isso é capaz de criar uma mudança das regras do jogo que permita canalizar os investimentos necessários à inovação num tempo mais eficaz.
O recente Acordo de Paris [para o combate às alterações climáticas] corresponde à visão tecno-científica contemporânea. A ideia básica é essa: deixem o mercado trabalhar, o mercado há-de encontrar a melhor solução. O acordo coloca as regras do mercado a constranger a sociedade, enquanto devemos pôr as regras da sociedade política a constranger o mercado.
O sistema de compromissos anunciados pelos países não é suficiente. São palmadas nas costas, é uma conversa retórica, de que todos somos irmãos. É melhor do que não haver acordo. Mas falta a noção de que precisamos ir mais depressa. E só é possível ir mais depressa se encontrarmos mecanismos artificiais que modelem o mercado.
Um exemplo simples: o preço do petróleo. Se quisermos resolver o problema até nem precisamos ter metas, basta ter um preço fixo para o barril de crude, por exemplo, que não desça abaixo de 100 dólares".
A utopia pluralista
"A minha utopia é uma utopia pluralista. A melhor sociedade é uma sociedade onde não exista o fim da história. E isto parece-me algo novo na ecologia. As utopias tradicionais – clássica e moderna – tinham uma coisa em comum: propunham uma determinada vistão do fim da história, uma sociedade que seria a ideal. A utopia ecológica diz que o importante é que a história continue, é criar condições de possibilidade para que as gerações seguintes continuem a ter as suas utopias.
A grande utopia é termos uma sociedade que permita que cada um, dentro de limites ambientais, ecológicos, materiais, possa seguir o seu caminho. A minha utopia para o futuro é a utopia da realização do indivíduo.
Mas se não arranjarmos a casa, se não organizarmos politicamente a economia e a sociedade, não vamos ter nada disso. Teremos sociedades de refugiados ambientais, de estados policiais, de estados de emergência. O terrorismo, agora, é uma pequena amostra do que poderá vir a acontecer".
Depoimento recolhido e editado por Ricardo Garcia


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