sexta-feira, 17 de abril de 2020

VALORES (I)MORAIS EM TEMPO DE PANDEMIA


Espremer a laranja

Se tenho orgulho no país que mostramos ser, a nossa elite económica mostra como não merece o país que tem.

17 de Abril de 2020 PFilipe Soares

Responsabilidade, solidariedade. Quantas vezes foram usadas estas palavras nas últimas semanas? “Só unidos venceremos”, “somos todos responsáveis”, “juntos conseguiremos”. É esta ideia de unidade, de reunião em torno dos valores fundamentais, de um pensamento maior do que os egoísmos individuais, de comunidade. E se tenho orgulho no país que mostramos ser, a nossa elite económica mostra como não merece o país que tem.



Março e abril são os meses das assembleias gerais das empresas do PSI-20. Os principais grupos económicos juntam os seus acionistas para debaterem as propostas das administrações. Ninguém se engane, para lá da pompa e circunstância, a parte relevante da conversa resume-se aos dividendos a distribuir pelos acionistas. Este ano a novidade foi a realização de muitas destas reuniões à distância, por meios digitais. Reuniões virtuais, dividendos reais e bem chorudos, que a crise não bateu a estas portas.

Quase um milhão de trabalhadores em lay-off, mais 40 mil desempregados do que no início de fevereiro. São estas as contas, por agora, das consequências da pandemia na economia do país. Sim, por agora, porque segundo os cálculos de Mário Centeno a situação ainda vai piorar. Segundo as previsões do Ministério das Finanças, a queda abrupta do PIB não terá par na nossa história, podendo chegar aos 8%.

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Perante o abismo, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) veio chamar a atenção para o “grau de incerteza e o contexto de risco acrescido” sobre a evolução da actividade económica e a necessidade de ponderar as decisões “com impacto na conservação de uma estrutura de financiamento sólida e resiliente”. Traduzindo, a CMVM apelou para a não distribuição de dividendos para evitar que as empresas fiquem descapitalizadas. Perante este alerta, a maioria das empresas do PSI-20 decidiram fazer ouvidos de mercador.

A Galp é a vencedora deste concurso desumano. Depois de despedir mais de uma centena de trabalhadores precários e em outsourcing, a empresa prepara-se para distribuir 314,7 milhões de euros em dividendos aos acionistas. E, cereja no topo do bolo da hipocrisia, está a estudar o recurso ao lay-off, colocando trabalhadores em casa com um corte no rendimento e pedindo à Segurança Social para pagar uma parte dos custos.

A lista é grande e os números surpreendentes. A Navigator vai entregar 99 milhões aos acionistas, a Semapa irá distribuir na casa dos dez milhões à família Queiroz Pereira, a Altri é mais ambiciosa e prepara-se para ultrapassar 60 milhões em dividendos, e o comboio de dinheiro continua a passar.

E a EDP? Anunciou ontem que vai distribuir 695 milhões de euros em dividendos, muito acima dos lucros da empresa, avaliados em 519 milhões de euros em 2019. Ainda se lembra da ladainha de vivermos acima das nossas possibilidades. Pois, tem razão, isso era só para quem trabalhava.

António Mexia, o gestor mais bem pago do país, recebeu 2,2 milhões de euros no ano passado, 52 vezes mais do que a média dos trabalhadores da EDP. E, se compararmos com os salários que recebem os trabalhadores temporários que a empresa subcontrata para os call centers, um desses trabalhadores teria de ter uma vida ativa de 247 anos para chegar ao que Mexia ganha num ano. “Responsabilidade social”?

Chegados aqui, poderíamos perguntar se gestores e acionistas das empresas do PSI-20 não querem saber do país ou da sustentabilidade da economia portuguesa. Não se engane, a música que lhes vai no coração não é A Portuguesa. O coração deles balança entre a Holanda e o Luxemburgo. É para aí que vão direitinhos os dividendos, fugindo ao pagamento de impostos em Portugal, pois é aí que as empresas têm as suas sedes fiscais.

A Tax Justice Network (TJN) calcula que Portugal perca 236 milhões de euros por ano em impostos só com o dinheiro que foge para a Holanda. Neste momento de exceção, já era tempo de impedirmos esta sangria do país.

A elite económica não quer saber do estado de emergência, continua na impunidade. Se o “repugnante holandês” é apenas retórica, será a vitória da engenharia financeira e o empobrecimento do país. Neste último estado de emergência, vamos a tempo de travar a exportação de capitais, haja a vontade para colocar todos os recursos ao serviço do país.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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Presidente do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda

quarta-feira, 15 de abril de 2020

O VÍRUS A GEOPOLÍTICA E O FUTURO


Geopolítica do coronavírus
A pandemia veio reforçar o poder dos Estados ao mesmo tempo que aumenta a sua interdependência. Como pode ser-se mais forte e mais dependente em simultâneo?
14 de Abril de 2020
Analisemos três questões sobre o mundo que aí vem: as novas ameaças, a crise das organizações internacionais e o papel dos Estados.
Perante novas ameaças, novas estratégias

As questões de política internacional costumam distinguir-se entre alta e baixa política. A alta política diz respeito à sobrevivência e segurança dos Estados; a baixa política, a tudo o resto (como o comércio ou a cultura). Esporadicamente, alguns temas de baixa política adquirem relevância estratégica e passam a considerar-se de alta política, num processo designado por ‘securitização’. A pandemia veio transformar a saúde pública numa área de alta política. No entanto, ao contrário de ameaças clássicas como as militares, a proteção contra as pandemias não requer o exercício de poder sobre outros Estados, mas com outros Estados. A saúde pública não é um bem privado, coletivo ou de clube, mas de rede.
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Os bens privados são aqueles que um Estado possui em exclusividade e de cuja utilização pode excluir terceiros. É o caso de um porta-aviões nuclear.
Os bens coletivos são aqueles que um conjunto de Estados produz mas de cujo usufruto não pode excluir terceiros. As regulações marítimas e a estabilidade financeira internacional são bons exemplos. Os bens coletivos geram incentivos para a defeção (ou seja, para não pagar por eles porque se lhes pode aceder de qualquer forma). Para isto há duas soluções: uma consiste em monitorizar e punir a defeção; outra em aceitá-la. Puni-la requer autoridade, aceitá-la requer liderança. A liderança consiste na decisão de um país ou grupo de países aceitar pagar um custo desproporcionado (mas ainda assim conveniente) pela produção do bem coletivo. Os Estados Unidos cumpriram até há pouco esse papel, mas deixaram de o fazer.
Os bens de clube são aqueles que um grupo de Estados possui em exclusividade e de cujo usufruto pode excluir terceiros. Um exemplo pode encontrar-se na ação de organizações regionais, as quais defendem prioritariamente os seus membros. Pertencer tem os seus privilégios. 

Os bens de rede são aqueles cuja utilidade aumenta com a sua difusão: quanto mais usuários os possuam, melhor para todos. O exemplo mais elucidativo são as vacinas e a imunização em geral. Não é indiferente a cada país que os outros estejam sãos ou doentes: convém-lhes que estejam sãos, seja por razões sanitárias, seja por razões económicas.
Quando o objetivo é que todos tenham algo, a estratégia apropriada é a cooperação e não a competição. As novas ameaças são ‘males de rede’, cuja capacidade de dano aumenta com a sua difusão. Não existindo liderança internacional clara, enfrentá-las exige cooperar em rede mais que em clubes.
A crise das organizações internacionais
O efeito paradoxal da pandemia é que, embora a sua superação exija cooperação internacional, o seu combate imediato incita ao isolamento nacional. O impacto destes incentivos cruzados sobre as organizações tem sido assimétrico: embora quase nenhuma tenha estado à altura, as organizações políticas responderam pior que as técnicas. Assim, as Nações Unidas (ONU) têm tido um papel secundário, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) se constituiu como referência para a maior parte dos Estados. A nível regional aconteceu algo semelhante: enquanto a resposta dos órgãos políticos da União Europeia (UE), a Comissão e o Conselho, tem sido controversa e insuficiente, a do Banco Central Europeu (BCE) foi inicialmente deficiente mas posteriormente corrigida. E é do BCE, em última instância, que depende a sobrevivência do Euro, cuja implosão poderia ser uma sequela mortífera do coronavírus.
Duas lições podem retirar-se desta experiência. A primeira é que a cooperação técnica se mostrou mais útil e mais efetiva que a cooperação política. A segunda é que a bifurcação entre as dimensões política e técnica poderá dar lugar a uma globalização ‘desacoplada’, em que as esferas de influência dos Estados Unidos e da China não se distinguirão por alinhamentos ideológicos, mas regulatórios, com padrões técnicos e desenvolvimentos tecnológicos incompatíveis. Podemos estar a caminho de um mundo dividido não entre liberalismo e autoritarismo, mas entre algo tipo “Mac y PC”, no qual ficar de fora ou jogar ao meio não seja uma opção. A eleição de qualquer dos dois tem um preço, porque os Estados Unidos continuarão a controlar a divisa global enquanto a China definirá preços e decidirá investimentos.
A pandemia incentivará o fortalecimento do poder estatal, do qual existem dois tipos: o despótico e o infraestrutural. Os Estados mais eficazes serão aqueles que mais cedo operem uma abertura inteligente, e não aqueles que mais marcialmente mantenham o encerramento
O papel dos Estados
A pandemia não afeta todos igualmente, porque o contexto local bifurca os impactos globais. Os países desenvolvidos enfrentam uma dupla crise: sanitária e económica. Mas a crise nos países menos desenvolvidos é tripla: sanitária, económica e social. A informalidade dos mercados laborais e a precaridade dos Estados de bem-estar multiplicam as penúrias e dificultam as soluções. Embora a resposta à emergência exija mais Estado, as capacidades estatais não se constroem à pressa. O Estado não apenas cuida; também pode esmagar – por ação quando é totalitário, por omissão quando é débil.
A pandemia incentivará o fortalecimento do poder estatal, do qual existem dois tipos: o despótico e o infraestrutural. O poder despótico é a capacidade do Estado para atuar coercivamente sem restrições legais ou constitucionais. O poder infraestrutural é a sua capacidade para penetrar na sociedade e organizar as relações sociais. Uma vez mais, trata-se da distinção entre o poder sobre os outros e o poder com os outros. Os Estados mais eficazes serão aqueles que mais cedo operem uma abertura inteligente, e não aqueles que mais marcialmente mantenham o encerramento.
O retorno do Estado não implica necessariamente o retorno do nacionalismo. O Estado é um instrumento (de ação coletiva), a nação é um sentimento (de pertença coletiva). A eficácia do Estado é independente da emotividade excludente do nacionalismo – embora a emotividade não excludente do patriotismo seja sempre benvinda.
A pandemia veio reforçar o poder dos Estados ao mesmo tempo que aumenta a sua interdependência. Como pode ser-se mais forte e mais dependente em simultâneo? Este é o paradoxo da interdependência: a capacidade de um Estado não aumenta com o isolamento, mas com a gestão inteligente dos fluxos com o exterior, sobretudo dos bens de rede (poder com outros).
As ameaças do futuro envolvem a rivalidade geopolítica e a competição tecnológica: sem cooperação, as perspetivas do mundo que vem são sombrias. Porque as necessidades do futuro incluem melhores capacidades estatais, menos nacionalismo e mais cooperação internacional funcional: científica, sanitária e financeira. E, desejavelmente, mais democracia – mas este é já um juízo normativo.
Helena Carreiras é directora do Instituto da Defesa Nacional. Andrés Malamud é investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
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Directora do Instituto da Defesa Nacional
Investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

segunda-feira, 13 de abril de 2020


A pandemia está a gerar muitos debates, interrogações e propostas sobre a sociedade tal como existe hoje, como foi construída e se o mal que causa também poderá ser o ponto de partida para algo novo e melhor.

O vírus escancarou portas e janelas revelando que a fachada escondia um interior apodrecido, serviços de saúde voltados para o mercado e não para o cidadão, falta de meios e material para socorrer capazmente catástrofes, como os incêndios já tinham denunciado.

Não foi uma surpresa, há muito que cientistas, filósofos, economistas, ambientalistas e outros vinham avisando que o que está a acontecer iria acontecer.

Será que vamos aprender alguma coisa ou a maioria está desejosa de voltar ao mesmo, a um consumo capitalista irresponsável que mede a “felicidade” de cada um pelo número de objectos que possui?

Este texto do filósofo José Gil, na sequência de outros que tem publicado (assim como pelos seus livros), coloca observações pertinentes que merecem leitura. Não é por acaso que está considerado entre os melhores vinte pensadores da actualidade.

MC




A pandemia e o capitalismo numérico

A verdade é que este período de luta pela sobrevivência física não gerou até agora nenhum sobressalto político ou espiritual, nenhuma tomada de consciência da necessidade de mudar de vida. Não gerou esperança no futuro.

José Gil

12 de Abril de 2020

A pandemia da Covid-19 pode vir a modificar radicalmente o modo de vida das sociedades actuais, pré e pós-industriais. Um factor decisivo dessa transformação serão as novas tecnologias, que virão a ganhar uma importância maior na economia e nas relações sociais. Formar-se-á um novo tipo de subjectividade, a “subjectividade digital”, já em gestação nas sociedades actuais, mas que, no futuro, se colocará no centro do novo “capitalismo numérico”, como condição essencial do seu funcionamento. Entretanto, vivemos uma crise de transição, que compromete as próprias subjectividades.



Pandemia e desterritorialização

Mesmo antes de ser declarada a quarentena em Wuhan, sete milhões de chineses saíram da cidade e espalharam-se pelo mundo. A região da Lombardia, na Itália, que mantinha voos directos para a região mais contaminada da China, foi rapidamente atingida. A França, a Alemanha, a Espanha, o Reino Unido e, muito rapidamente a Europa, foram infectados. Alastrando a todos os continentes, a pandemia cobriu o planeta em poucos meses. Uma disseminação tão célere e imprevisível deveu-se às características do novo vírus, mas só foi possível graças à deslocação intensa de indivíduos e grupos, através da rede extraordinária de comunicações e transportes que liga hoje os países uns aos outros.

Trata-se de uma torrente imparável de gente sempre a ir e a vir, em que participam homens de negócios, políticos, universitários e estudantes, turistas (em turismo de massa ou individual) e multidões que se deslocam para assistir a acontecimentos culturais, desportivos ou religiosos, sem esquecer os milhões de migrantes fugindo da guerra e da fome. Estas vagas imensas de pessoas que vão de um território a outro, alimentam a desterritorialização geral, contínua, que não cessa de crescer. Ao disseminar-se, o vírus da pandemia não fez mais do que percorrer o mapa mundial da desterritorialização.

As máscaras, um novo elemento visual da paisagem Reuters/Ahmed Yosri

A pandemia resultou da desterritorialização, é a manifestação extrema da doença tecno-capitalista que há mais de dois séculos se infiltrou nas sociedades humanas. E que, tal como um vírus, vai contagiando território após território, país após país, continente após continente: é o capitalismo global que transforma a Terra inteira, submetendo-a, como um contágio epidémico, ao seu funcionamento. Se o novo coronavírus prolonga o movimento desterritorializante da economia capitalista, é porque esta é, no seu desenvolvimento e propagação, propriamente pandémica.

A primeira reacção contra a pandemia visou, logicamente, conter a sua proliferação: contrariando ao máximo a desterritorialização, impôs-se a quarentena a centenas de cidades, e confinaram-se os cidadãos nos seus locais de residência. Fecharam-se aeroportos, estações de comboios, portos e estradas, sítios onde as aglomerações de pessoas aumentam os riscos de contaminação. Porque a desterritorialização implica não apenas a deslocação, mas também o seu contrário complementar, os mais variados ajuntamentos de “pessoas sós”, que se encontram nas gares ferroviárias ou nos festivais de música. Cancelaram-se eventos de toda a espécie, proibiram-se saídas e passeios. Numa palavra, reterritorializaram-se os indivíduos nas suas casas, incentivando-os a cultivar um tipo de vida esquecido, por assim dizer “arcaico”, familiar e mais “humano”, que o regime habitual de trabalho havia sempre impedido.


O confinamento universal e a reactivação de modos de vida supostamente harmoniosos, mas já erodidos e ineficazes, levam à formação de novas subjectividades, mais adaptadas à “economia numérica”. A generalização do teletrabalho, a digitalização máxima dos serviços e a virtualização das deslocações e das relações sociais terão, muito provavelmente, consequências drásticas nas transformações da sociedade.

Se, até aqui, se alargava a desfasagem crescente entre o desenvolvimento da economia financeira global e os processos de subjectivação – que misturavam subjectivações digitais e subjectivações arcaicas, estas ligadas ainda às sociedades industriais e pré-industriais -, agora o vazio parece poder ser preenchido. A época de transição chega ao seu fim.

A nossa ideia é simples: a pandemia será o agente mediador da passagem de uma fase histórica do capitalismo (o capitalismo industrial-financeiro) – cada vez mais perturbada e caótica, cada vez menos viável no contexto geral da sociedade e do Estado – para uma outra fase em que se procuram os ajustamentos necessários entre as exigências económicas e as subjectividades que, em todos os domínios, do teletrabalho às práticas de lazer, lhes correspondam adequadamente.

Conseguir-se-ia, assim, um equilíbrio, sem dúvida precário, mas que asseguraria o desenvolvimento sem entraves do capitalismo digital: eis o que está inscrito, eis o que visa o impulso imparável da dinâmica capitalista. Evidentemente, serão precisas subjectividades apropriadas, com o máximo de consenso colectivo e individual, e o mínimo de conflito.

Terá sido necessário o surgimento de uma pandemia mortífera para adaptar as subjectividades às novas exigências do capitalismo global. A Covid-19 seria o trampolim a catapultar a colectividade para um nível superior, o da sociedade digital. Em vez de progredir gradualmente, passando por fases mediadoras, a pandemia vai obrigar a um salto brutal, impondo indiscriminadamente a digitalização de todas as actividades. Inverter-se-ia a ordem de subordinação: o digital, que estava submetido à hegemonia de hábitos ligados ao corpo físico (a desterritorialização obrigava os corpos a deslocarem-se ou a desapropriarem-se de si próprios), tornar-se-ia dominante, condicionando os outros actos sociais, quando não os suprimia.

O que se procurava, afinal, era que as gerações pré-pandémicas, com a sua cultura humanista, os seus hábitos jurídicos, a sua consciência judeo-cristã, não entravassem mais o livre funcionamento da economia. Só pelo número de mortos idosos, a pandemia já ajudou a limpar o horizonte. Mas foi sobretudo pela construção de novas práticas, novos constrangimentos, novos hábitos de prazer a que obrigou o isolamento social, que as subjectividades digitais poderão florescer e dominar. Serão subjectividades desterritorializadas, de certo modo, nómadas e transparentes, mas reterritorializadas no digital.

A inteligência artificial terá sem dúvida um papel decisivo neste processo de sedentarização. As novas subjectividades caracterizar-se-ão pela submissão e adequação dos corpos às (ou mesmo a sua exclusão das) tarefas da economia digital, e a permeabilização das mentes às ordens e necessidades da vida virtual. A nova subjectividade comportará capacidades passivas de obediência voluntária e capacidades activas de funcionamento programado. Estas características estavam já presentes na subjectividade digital pré-pandémica, que descrevemos acima.


O capitalismo, a esperança e as forças de vida

Vivemos, neste momento, dois tempos diferentes, em simultâneo: o nosso presente da vida confinada e o tempo da espera que a pandemia acabe. Nem um nem outro, nem os dois sobrepostos, ajudam a agir. Alguns pensam que este período de isolamento deverá ser aproveitado para tomar consciência da necessidade de mudar de vida, recusando voltar à “normalidade”. A normalidade representa o tecno-capitalismo e a vida caótica que ele engendra.

Através das fragilidades e insuficiências das políticas de saúde, esta crise revelou in vivo a desigualdade que condena tendencialmente os pobres à contaminação e à morte, a indiferença dos sistemas económicos perante o sofrimento e a doença, ou a falta de solidariedade e de coesão dos Estados membros da União Europeia. Mas mais profundamente, ela mostrou, segundo muitos, a futilidade e o vazio da vida sem sentido em que os povos viviam antes da pandemia. Apareceram então – e continuam a aparecer – certos pensadores, laicos e religiosos, que afirmam ser esta pandemia a ocasião única para operar “revoluções” ou “reformas interiores” ou “conversões” radicais que trouxessem uma mudança radical no modo de vida da humanidade. 

A verdade é que este período de luta pela sobrevivência física não gerou até agora nenhum sobressalto político ou espiritual, nenhuma tomada de consciência da necessidade de mudar de vida. Não gerou esperança no futuro. No nosso país, a unidade nacional foi reforçada apenas no sentimento colectivo de compaixão pelos mortos e doentes, e pela gratidão para com os médicos e enfermeiros. Talvez um pouco, também, pela adesão geral à política do governo.



Não se conceberam nem novos valores éticos, nem novos programas económicos ou práticas políticas. E nem a violência brutal do sofrimento e da morte nos hospitais, escancarada no espaço público mediático, conseguiu varrer as imagens enganadoras com que nos habituámos a lidar com a realidade. O confinamento não favoreceu a reflexão e a acção, pelo contrário, suspendeu o tempo, a vida activa e o pensamento. O contágio temido, imaginado, alucinado, foi o único acontecimento que condicionou as emoções e os gestos quotidianos.

Se, com o confinamento, fugimos à desterritorialização desabrida que vivíamos antes da pandemia, não nos reterritorializaremos, afinal, senão no digital. Quando se diz “estamos todos juntos nesta luta” ou “só com o esforço de todos poderemos vencer o vírus”, este “todos” que compreende sobretudo os confinados constitui, no fim de contas, uma realidade virtual. Estamos, virtualmente com todos e com a comunidade, em que participamos à distância, separando-nos dela. É toda a vida que se virtualiza.

De resto, o confinamento não foi e não é um tempo de expansão e alegria. Com as ruas desertas, as cidades silenciosas e o sofrimento gritante dos doentes, a casa em que nos fechámos não constitui, propriamente, um lugar de entusiasmo e criação. Nem propício à meditação metafísica, nem à elaboração de grandes projectos de vida. Afinal, a grande maioria das pessoas quer “voltar à normalidade” (ou, a uma “nova normalidade”, como diz Cuomo, o governador do estado de Nova Iorque).

Ao ver o desejo premente e angustiado dos políticos de certos países da Europa, de acabar, neste mês de Abril, com o isolamento obrigatório para pôr a economia a funcionar, constata-se que se está a preparar tudo para voltar e retomar – por mais difícil que venha a ser – o estado de coisas anterior. A economia versus a saúde, como se tem dito, ou a vitória da economia contra a saúde (nos vários sentidos da palavra). O tecno-capitalismo voltará a funcionar, talvez não como dantes, talvez como “capitalismo numérico”, construindo rapidamente novas subjectividades digitais. Não escaparemos ao seu poder de preservação, auto-regeneração e metamorfose. 

Resta-nos ver mais longe, e prepararmo-nos, com o máximo das nossas forças de vida: esta crise não é independente da crise ecológica que estamos já a viver e que em breve atingirá um patamar irreversível. Aí, e porque para ela não haverá vacina, teremos todos de pôr radicalmente em questão o tecno-capitalismo e os seus modos de vida, se quisermos ter um (outro) destino na Terra.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O QUE ANDAMOS ATÉ AQUI CHEGAR!







Vírus e elefantes

Esta Primavera, em que combatemos um novo vírus, é apenas mais um episódio nesta luta pela sobrevivência, que dura há milhares de milhões de anos.

6 de Abril de 2020 Arlindo Oliveira

Em poucas semanas, praticamente todos os portugueses ficaram a conhecer o conceito de evolução exponencial. O facto de cada pessoa infectada poder passar o vírus a várias pessoas, aumentando exponencialmente, com o tempo, o número de infectados, passou a estar omnipresente nas nossas mentes, tornando muito familiar uma função matemática que, até agora, era usada principalmente por engenheiros, economistas, biólogos, epidemiologistas e outros cientistas. A verdade é que esta característica exponencial da evolução dos seres vivos é bem conhecida há séculos, e está na base de toda a diversidade que observamos no planeta e na civilização humana. Se não fosse este potencial dos seres vivos para crescerem de forma exponencial, o planeta seria profundamente diferente e nós nem sequer existiríamos. A vida conquistou toda a Terra exactamente porque tem tendência a crescer de forma exponencial.

Charles Darwin publicou, em 1859, o livro que o tornou famoso, A Origem das Espécies, no qual tinha trabalhado durante décadas e que descrevia a teoria da evolução. Cerca de um ano antes, Darwin tinha publicado, juntamente com Alfred Wallace, um artigo que descrevia estas ideias cuja autoria, pelas regras normais de atribuição de crédito científico, deveria ser de ambos os autores. Por diversas razões, as contribuições de Alfred Wallace acabaram por cair numa relativa obscuridade, enquanto o nome de Darwin se tornou conhecido em todo o planeta. A teoria da evolução que, desde então, foi o foco de tantas controvérsias, interpretações e estudos, é talvez aquela que mais revolucionou a forma como vemos o mundo e o papel que, como espécie humana, nele desempenhamos.

A teoria da evolução veio esclarecer definitivamente o que é, talvez, a questão mais central que podemos colocar, como seres humanos: como é que aparecemos, como é que fomos criados? A resposta dada pela teoria da evolução, peremptória e incontornável, é que fomos criados pela evolução natural, por um algoritmo que, ao longo de milhares de milhões de anos, optimizou os seres vivos na sua luta pela sobrevivência. Como Darwin percebeu, a evolução das espécies depende, criticamente, desta capacidade dos seres vivos se reproduzirem de forma exponencial (ou geométrica, para usar uma outra expressão). Darwin escreveu “Não existe excepção para a regra de que cada ser vivo se reproduz a uma taxa tal que, se não for destruído, a Terra ficaria rapidamente coberta pela descendência de um só par. (…) O elefante é supostamente o animal que se reproduz mais lentamente, e fiz algum esforço para estimar a velocidade a que se pode reproduzir: não estarei a errar por excesso se assumir que se reproduz quando tem trinta anos, até atingir os noventa anos, criando três pares de crias nesse intervalo; se for assim, ao fim de cinco séculos existirão quinze milhões de elefantes, descendentes do par original.

Curiosamente, Darwin enganou-se nas contas, como fez notar William Thomson, que se veio a tornar famoso como Lord Kelvin, tendo determinado o valor da menor temperatura possível e dado o nome à escala absoluta de temperaturas. Se analisarmos a progressão proposta por Darwin, verificamos que ela dá origem a uma sequência que se aproxima rapidamente de uma evolução exponencial com parâmetro 1,618, por geração. Significa que, a cada 30 anos, o número de elefantes vivos se multiplica por 1,618. Fazendo as contas, existem apenas 14 elefantes após 100 anos e 8360 depois de 500 anos, não os 15 milhões que Darwin contabilizou. Mas, embora tendo errado nas contas, Darwin tinha razão na essência do argumento. Ao fim de 1000 anos existiriam 30 milhões de elefantes e, após apenas três mil anos, existiriam 3000 triliões (um 1 seguido de 21 zeros) de elefantes se, claro, não existissem limites físicos. Na (impossível) ausência de limites físicos, ao fim de apenas 7000 anos, a “esfera” de elefantes, agora com um número de animais igual a 10 elevado a 50 (um 1 seguido de 50 zeros), teria um diâmetro de 200 anos-luz e cresceria à velocidade de luz!

Tal como os infectados por covid-19 e os elefantes, o vírus reproduz-se exponencialmente, usando as células dos hospedeiros para fabricar cópias de si mesmo. Como acontece com todas as espécies, esta reprodução exponencial será sempre travada por outros factores: incapacidade de recrutar novos hospedeiros, uso de vacinas, utilização de tratamentos ou, no caso mais drástico e dramático, inexistência de novos hospedeiros porque já todos foram infectados e morreram ou desenvolveram resistência. O controlo dos três primeiros mecanismos está ao nosso alcance e todos podemos contribuir, ao manter o isolamento social, para impedir o vírus de recrutar novos hospedeiros.

Este processo, de evolução exponencial de um vírus, de uma bactéria ou de outro animal ou vegetal, está na origem da vida e na criação de todas as espécies que existem. Há milhares de milhões de anos, as primeiras estruturas, usando mecanismos que desconhecemos, conseguiram reproduzir-se de forma exponencial e iniciaram a colonização do planeta. Ao longo desses milhares de milhões de anos, as espécies tornaram-se mais eficazes neste processo, desenvolvendo novos mecanismos para identificar comida e evitar os inimigos. As células individuais agregaram-se em grandes colónias, que partilham o mesmo DNA, conduzindo aos organismos multicelulares, animais e plantas. A capacidade de processar informação veio a revelar-se chave na competição pela sobrevivência, e a pressão evolutiva fez com que se desenvolvessem cérebros, cada vez mais complexos. Cérebros suficientemente avançados levaram à criação de cultura, ciência e tecnologia, que temos agora ao nosso dispor para combater os nossos inimigos. Todos os dias as diferentes espécies lutam para sobreviver e se reproduzir, desde os organismos mais complexos, como os seres humanos e os elefantes, aos mais simples, como os vírus, que precisam de infiltrar seres vivos para se reproduzirem.

Esta Primavera, em que combatemos um novo vírus, é apenas mais um episódio nesta luta pela sobrevivência, que dura há milhares de milhões de anos. A espécie humana tem, do seu lado, uma capacidade única para perceber os mecanismos usados pelas outras espécies. É essa capacidade, a inteligência, que nos distingue dos animais e dos outros organismos. É essa capacidade que nos permitirá ultrapassar, sem danos significativos para a civilização, mais esta batalha pela sobrevivência. Que não será a última, nem a mais severa. Outros vírus, outras bactérias e outras doenças, potencialmente mais letais, continuarão a ameaçar a nossa sobrevivência como indivíduos e, no caso mais dramático, como espécie. Mas a inteligência humana coloca do nosso lado um arsenal de capacidade inigualável, que nos permitirá combater qualquer ameaça desta natureza. O maior inimigo da espécie humana não são os vírus, as bactérias ou qualquer animal. O nosso maior inimigo somos nós mesmos porque, pela primeira vez, uma espécie tem a capacidade de se autodestruir. Esse é o maior risco para a espécie humana, aquele contra o qual devemos estar precavidos e atentos.

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Professor do IST e director do INESC

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O coronavírus e a batalha da espécie humana


O coronavírus e a batalha da espécie humana

Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no conhecimento. E também de esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis.

1 de Abril de 2020 António Costa Silva

Não vamos ter ilusões. A tragédia global provocada pela pandemia do coronavírus é séria e é um dos maiores desafios já colocados à sobrevivência da espécie humana. Parece uma ironia do destino. Há alguns meses atrás estávamos preocupados, e bem, porque a espécie humana, no seu afã de dominar e subjugar a natureza, estava a destruí-la e a caminhar para o apocalipse climático. De repente é a própria espécie humana que é ameaçada pela natureza, na forma de um vírus microscópico, invisível e letal.



A realidade é mais complexa do que todas as nossas frágeis teorias e fundamentalismos. A situação é muito difícil mas é preciso termos esperança. Antes de falar de esperança é bom termos a noção do desafio. Nesta altura, os países confrontam-se com um dilema e há duas estratégias em curso. O modelo epidemiológico do Imperial College, da Universidade de Londres, é crucial para fazermos esta análise. É apenas um modelo e sabemos que os modelos, mesmo os mais avançados do ponto de vista científico, são apenas pálidas imagens da realidade.

O modelo testa as duas estratégias: a primeira, que é a da contenção, seguida na China, Coreia do Sul, Singapura e UE, incluindo Portugal. Significa actuar o mais cedo possível, confinar as pessoas à sua residência, evitar os contactos e tentar achatar a curva que mede o ritmo de propagação do vírus. Esta estratégia funcionou nos países asiáticos. Qual é o inconveniente? Sustém o contágio mas não erradica o vírus. O número de mortes é mais baixo mas quando a quarentena termina o vírus pode voltar e novas quarentenas podem ser necessárias. Isto pode ser insustentável do ponto de vista social e económico.

A outra estratégia é a do Reino Unido, Suécia, EUA e Israel. É uma estratégia que visa criar a imunidade de grupo, isto é, deixar o vírus propagar-se até grande parte da população estar infectada. Isto deve ser feito isolando e protegendo os grupos de risco como os idosos e os doentes. Qual é o inconveniente? O número de mortos pode ser brutal até se criar a imunidade de grupo. O modelo do Imperial College estima que, com esta estratégia, nos EUA podem morrer dois milhões de pessoas e no Reino Unido 500 mil. O preço a pagar é demasiado alto. E isto confronta os governos com grandes dilemas nas decisões que têm de tomar. Por isso, este não é o tempo de atirar pedras. Este é o tempo de nos unirmos à volta das autoridades e das instituições, seguirmos as directivas e as regras terapêuticas, ter em conta que as estratégias de combate não são estanques e podem ser híbridas, que todos estão a aprender com todos e que, no fim, as melhores decisões vão prevalecer para salvar o maior número de vidas.

Nestes tempos sombrios gostava de falar de esperança mas baseada no conhecimento. É a esperança na ciência que muitos desvalorizaram e atacaram ao longo dos últimos anos. O que nos vai salvar não é o obscurantismo, não é a feitiçaria, não é a sorte, não são as seitas que pregam contra as vacinas. O que nos vai salvar é o trabalho denodado dos profissionais de saúde e é o trabalho dos cientistas e dos investigadores para criarem uma vacina. A ciência, a investigação e o conhecimento vão sair mais reforçados desta crise. Vai demorar tempo mas os sinais da investigação que vêm do Japão, da China, da Alemanha e dos EUA são encorajadores. É também a esperança na espécie humana, na nossa criatividade, na nossa capacidade de dar a volta às situações mais difíceis. Quando as catástrofes aparecem elas fazem emergir o melhor de nós. Isso aconteceu muitas vezes na história. Nós temos muitos defeitos. Somos capazes do melhor e do pior. Mas quando toca a lutar pela sobrevivência mobilizamos tudo o que nos distingue, como a inteligência, e é assim que passamos as maiores tribulações. 

Nós surgimos há cerca de 200.000 anos atrás neste planeta extraordinário que é a nossa casa. O planeta já tinha 4500 milhões de anos de história quando nós aparecemos. O nosso percurso é uma fracção ínfima da vida do planeta. Nós somos os acidentes gloriosos de um processo imprevisível, como disse um dia o biólogo Stephen Jay Gould. Quando os nossos antepassados emergiram nas savanas africanas, e pronunciaram pela primeira vez a primeira palavra, começaram a comunicar uns com os outros e a cooperarem entre si. Essa cooperação foi decisiva para se defenderem com sucesso dos perigos imensos que os rodeavam. E eles sobreviveram porque, sem o saberem, transportavam consigo aquela que é a mais poderosa máquina da criação: o cérebro humano. Ele ajudou-os a ler o mundo, a decifrar os sinais, a detectar o perigo, a construir a cooperação que é a base da vida das comunidades. A descoberta da palavra mudou tudo e com ela veio também a capacidade de efabulação da nossa espécie, que é extraordinária.

Esta crise vai obrigar-nos a lutar pela sobrevivência, a reinventar a vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação por objectivos comuns. Vai obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Como dizia Swift: “Ser é ser tudo.” Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez

Os nossos antepassados resistiram a tudo: aos ataques das feras, aos sustos da natureza, aos ciclos climáticos, à devastação das colheitas, às epidemias mortíferas, às erupções vulcânicas, aos terramotos, às quedas de meteoritos e asteróides. Nessa admirável luta milenar, em cada dia que chegava ao fim, eles reuniam-se à volta da fogueira e contavam as histórias que ainda hoje são o património matricial da nossa espécie. Eles inventaram o fogo, as ferramentas, a vida nas primeiras cavernas e nas primeiras comunidades. Eles inventaram as redes sociais de cooperação. Eles inventaram os primeiros poemas, as primeiras pinturas e transformaram a arte em mais uma ferramenta para a sobrevivência. E há 75.000 anos atrás a espécie humana passou por uma das maiores ameaças à sua existência: a erupção brutal do vulcão Toba, na Indonésia. Esta foi a maior explosão vulcânica até hoje registada na Terra. Biliões de metros cúbicos de cinzas vulcânicas foram expelidas para a atmosfera. O Sol deixou de se ver durante dias a fio. O planeta entrou numa espécie de Inverno vulcânico. As cadeias alimentares foram destruídas. Muitas espécies foram extintas. Os nossos antepassados sobreviveram a esta catástrofe indizível. No fim, os sobreviventes, estima-se hoje, foram cerca de 2000. Cabiam num hotel moderno. E nós somos todos filhos dos 2000.

É por isso que o ADN de dois seres humanos, sejam eles quais forem, é praticamente idêntico. Nenhuma outra espécie tem este grau de similaridade no seu ADN e isto torna ainda mais ridículas as teorias racistas, a xenofobia, a exclusão do outro. Só há uma raça: a raça humana. Estes sobreviventes resistiram a tudo, incluindo às glaciações que fizeram baixar a temperatura do planeta de forma terrível. Esta é uma grande lição. E quando, há cerca de 10.000 anos atrás, a temperatura subiu e as condições ficaram mais favoráveis, eles foram capazes de erguer grandes civilizações, da Mesopotâmia à Pérsia, da Índia à China, da Europa à África e às Américas. Neste caminho a espécie humana foi movida pela curiosidade, pelo espanto, que, como disse Platão, é o motor do conhecimento. Ontem como hoje ele vai contribuir para a nossa sobrevivência.

Na terceira parte do Gulliver, o escritor Jonathan Swift descreve uma estirpe de homens decrépitos e envelhecidos, acomodados e entregues a débeis apetites, falhos de vontade, incapazes de comunicar e incapazes de ler. Este parece um retrato premonitório das nossas sociedades antes do coronavírus: frívolas, superficiais, egoístas, monossilábicas, mutiladas, zombies em perpétuo zapping. Mas esta crise vai obrigar-nos a lutar pela sobrevivência, a reinventar a vontade e a atenção, a redescobrir a cooperação por objectivos comuns. Vai obrigar-nos a ler, a estudar e a pensar. Vai, porventura, criar novos paradigmas políticos, económicos e sociais. Como dizia Swift: “Ser é ser tudo.” Esta crise vai reensinar-nos a ser tudo outra vez.

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Professor do Instituto Superior Técnico