sexta-feira, 17 de abril de 2020

VALORES (I)MORAIS EM TEMPO DE PANDEMIA


Espremer a laranja

Se tenho orgulho no país que mostramos ser, a nossa elite económica mostra como não merece o país que tem.

17 de Abril de 2020 PFilipe Soares

Responsabilidade, solidariedade. Quantas vezes foram usadas estas palavras nas últimas semanas? “Só unidos venceremos”, “somos todos responsáveis”, “juntos conseguiremos”. É esta ideia de unidade, de reunião em torno dos valores fundamentais, de um pensamento maior do que os egoísmos individuais, de comunidade. E se tenho orgulho no país que mostramos ser, a nossa elite económica mostra como não merece o país que tem.



Março e abril são os meses das assembleias gerais das empresas do PSI-20. Os principais grupos económicos juntam os seus acionistas para debaterem as propostas das administrações. Ninguém se engane, para lá da pompa e circunstância, a parte relevante da conversa resume-se aos dividendos a distribuir pelos acionistas. Este ano a novidade foi a realização de muitas destas reuniões à distância, por meios digitais. Reuniões virtuais, dividendos reais e bem chorudos, que a crise não bateu a estas portas.

Quase um milhão de trabalhadores em lay-off, mais 40 mil desempregados do que no início de fevereiro. São estas as contas, por agora, das consequências da pandemia na economia do país. Sim, por agora, porque segundo os cálculos de Mário Centeno a situação ainda vai piorar. Segundo as previsões do Ministério das Finanças, a queda abrupta do PIB não terá par na nossa história, podendo chegar aos 8%.

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Perante o abismo, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) veio chamar a atenção para o “grau de incerteza e o contexto de risco acrescido” sobre a evolução da actividade económica e a necessidade de ponderar as decisões “com impacto na conservação de uma estrutura de financiamento sólida e resiliente”. Traduzindo, a CMVM apelou para a não distribuição de dividendos para evitar que as empresas fiquem descapitalizadas. Perante este alerta, a maioria das empresas do PSI-20 decidiram fazer ouvidos de mercador.

A Galp é a vencedora deste concurso desumano. Depois de despedir mais de uma centena de trabalhadores precários e em outsourcing, a empresa prepara-se para distribuir 314,7 milhões de euros em dividendos aos acionistas. E, cereja no topo do bolo da hipocrisia, está a estudar o recurso ao lay-off, colocando trabalhadores em casa com um corte no rendimento e pedindo à Segurança Social para pagar uma parte dos custos.

A lista é grande e os números surpreendentes. A Navigator vai entregar 99 milhões aos acionistas, a Semapa irá distribuir na casa dos dez milhões à família Queiroz Pereira, a Altri é mais ambiciosa e prepara-se para ultrapassar 60 milhões em dividendos, e o comboio de dinheiro continua a passar.

E a EDP? Anunciou ontem que vai distribuir 695 milhões de euros em dividendos, muito acima dos lucros da empresa, avaliados em 519 milhões de euros em 2019. Ainda se lembra da ladainha de vivermos acima das nossas possibilidades. Pois, tem razão, isso era só para quem trabalhava.

António Mexia, o gestor mais bem pago do país, recebeu 2,2 milhões de euros no ano passado, 52 vezes mais do que a média dos trabalhadores da EDP. E, se compararmos com os salários que recebem os trabalhadores temporários que a empresa subcontrata para os call centers, um desses trabalhadores teria de ter uma vida ativa de 247 anos para chegar ao que Mexia ganha num ano. “Responsabilidade social”?

Chegados aqui, poderíamos perguntar se gestores e acionistas das empresas do PSI-20 não querem saber do país ou da sustentabilidade da economia portuguesa. Não se engane, a música que lhes vai no coração não é A Portuguesa. O coração deles balança entre a Holanda e o Luxemburgo. É para aí que vão direitinhos os dividendos, fugindo ao pagamento de impostos em Portugal, pois é aí que as empresas têm as suas sedes fiscais.

A Tax Justice Network (TJN) calcula que Portugal perca 236 milhões de euros por ano em impostos só com o dinheiro que foge para a Holanda. Neste momento de exceção, já era tempo de impedirmos esta sangria do país.

A elite económica não quer saber do estado de emergência, continua na impunidade. Se o “repugnante holandês” é apenas retórica, será a vitória da engenharia financeira e o empobrecimento do país. Neste último estado de emergência, vamos a tempo de travar a exportação de capitais, haja a vontade para colocar todos os recursos ao serviço do país.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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Presidente do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda

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