quarta-feira, 7 de maio de 2014


Nestes tempos tão complicados e incertos que geram tanta perplexidade e confusão, juntamos dois artigos que certamente ajudarão a compreender o que se passa.

Opinião
Miséria social, miséria moral: mais pobres, mais frágeis
06/05/2014 - 02:57
A grande herança do Governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo.
Voltaire dizia que “quase toda a História é uma sequência de atrocidades inúteis”. A frase adapta-se como uma luva ao “programa de ajustamento” a que Portugal foi submetido nos últimos anos pelo Governo de Passos Coelho, pelos seus “parceiros” europeus e pelo FMI. As atrocidades a que fomos submetidos não são os horrores da guerra que estavam na mente do filósofo francês, mas continuam a ser as velhas misérias sociais e um novo tipo de miséria moral de que Passos Coelho ou Paulo Portas são simultaneamente propagandistas e exemplos.
As misérias sociais estão à vista: desemprego, precariedade, subemprego, emigração forçada, salários mais baixos, pensões mais baixas, aumento da pobreza e da miséria extrema, mais pessoas sem qualquer rendimento e sem apoios sociais, mais crianças pobres, mais velhos pobres, mais crianças com fome, menos acesso à saúde, menos acesso à educação, mais abandono escolar, menos serviços públicos, mais depressão.
A miséria moral é aquela que foi sendo insidiosamente instilada na sociedade pela atitude do poder e pelo seu discurso, pelo seu recurso despudorado à mentira sistemática tornada banal, pelo seu uso da desconfiança como instrumentos de manipulação do público.
Não é surpreendente que, depois de Passos Coelho, de Paulo Portas, de Miguel Relvas, de Maria Luís Albuquerque, de Poiares Maduro tenhamos passado a considerar comum a falta de honorabilidade dos governantes, fazendo crescer o descrédito na democracia. Hoje vê-se como inevitável a promiscuidade entre políticos e negócios e aceitamos que a verdade, como antes acontecia na guerra, seja a primeira baixa da política.
O Governo conseguiu difundir uma cultura de desprezo pelos velhos e pelos doentes, apresentando-os como gastadores de recursos sem préstimo e como abusadores dos direitos sociais. Conseguiu impor um clima de confronto entre desempregados e trabalhadores, apresentando a estabilidade de emprego como pecaminosa e um obstáculo à competitividade. Conseguiu lançar uma guerra de gerações entre velhos “privilegiados” por terem pensões e jovens a quem foi dito que estavam em risco de nunca receber reformas devido aos “privilégios” dos seus pais e avós. O Governo conseguiu minar consensos sociais laboriosamente construídos ao longo de 40 anos de democracia, como o acordo sobre a necessidade de investir na escola inclusiva, na formação de alto nível e na investigação – que passou a ser referida na narrativa oficial como uma actividade “pouco produtiva” e longe da “economia real”. O Governo conseguiu apresentar sistematicamente a máquina do Estado como uma “gordura” improdutiva, um aparelho inútil e despesista, formado por burocratas preguiçosos e incompetentes, pondo trabalhadores do sector privado contra funcionários públicos e destruindo uma filosofia de serviço público e uma ética de trabalho com séculos de consolidação, para melhor desmantelar o Estado social. E impôs por todos os meios possíveis a agenda neoliberal segundo a qual o trabalho é uma mera mercadoria sem dignidade particular, cujo valor deve ser tão reduzido quanto possível.
A miséria moral que este panorama evidencia pode ser menos visível do que os dramas da pobreza, mas é infinitamente mais grave, porque abre fracturas de hostilidade e desconfiança na sociedade que levam muitos anos a reparar.
O sucesso ímpar do Estado social após a Segunda Guerra Mundial não se deveu apenas aos serviços que o Estado fornecia, mas ao clima de estabilidade e de cooperação, de confiança nos outros e no futuro que esses serviços possibilitaram. O grande sucesso do Estado social foi a derrota da insegurança e do medo – do medo da doença, do desemprego, do futuro.
A grande herança do governo PSD-CDS no final do “programa de ajustamento” é a reinstituição do medo e da insegurança como elemento central da vida social e como instrumento estatal de “regulação social”. E, com ele, a desconfiança e a desesperança. Dividir para reinar é uma receita eficaz, como todos sabemos.
E a grande herança do Governo PSD-CDS na prática política é a crescente banalização da mentira e a glorificação do despudor. O sofrimento não nos deixou melhor do que antes. As atrocidades só serviram os saqueadores.
A “saída limpa” que o Governo anunciou este fim-de-semana não é nem uma saída nem limpa, como qualquer pessoa com um mínimo de honestidade admite – porque a fragilidade da nossa situação financeira é igual ou pior do que era, porque permanecemos submetidos a uma tutela externa com direito de veto de facto das políticas nacionais. Mudámos apenas de suserano: antes eram os nossos “parceiros” europeus, amanhã serão os “mercados”. A diferença entre um “programa cautelar” e uma “saída limpa” é a que existe entre o lume e a frigideira. A chantagem é a mesma, apenas muda o agente. E a instabilidade é maior.
Quando a UE refere os “progressos impressionantes” que Portugal realizou, faz um exercício de hipocrisia. Estamos economicamente mais pobres e socialmente mais frágeis. Mais temerosos e mais divididos. Só pode achar que isto é um sucesso quem tivesse este objectivo.
jvmalheiros@gmail.com


 Opinião
Missão cumprida
03/05/2014 - 02:03
Quanto à reforma do Estado, ficou claro que o Governo se limitou a reduzir o valor do trabalho.
No momento em que se aproxima a chamada “saída da troika”, ou seja, o fim do programa de governação ditado pelas instituições que tutelaram a obtenção por Portugal, em 2011, de um empréstimo de 78 mil milhões de euros – Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional –, parece não restarem dúvidas de que foi cumprida com sucesso a missão a que se destinava a intervenção tutelada pelas três instituições internacionais.
O objectivo era claro: tentar transformar o modelo de organização socioeconómica de Portugal, procurando desestruturar um modelo assente numa hierarquia que privilegiava o sector público, organizado em função da prestação de serviços pelo Estado a todos, para passar a privilegiar os interesses privados e a lógica do lucro do mercado. E esse objectivo é concretizado através da redução do valor do trabalho e do rendimento dos trabalhadores no activo ou reformados.
Nesse sentido, era cristalino que a diminuição na despesa pública e o emagrecimento do Estado seriam feitos à custa de baixar o nível de vida, o poder de compra dos trabalhadores portugueses. Dois anos e meio e terminado o programa de actuação governativa incluso no memorando de entendimento, o objectivo foi conseguido e o Governo assumiu esta semana que a redução nas pensões de reforma e de sobrevivência é definitiva, ainda que menor do que foram nestes últimos anos. Quanto aos salários dos funcionários públicos, fica transparente também que a verba financeira total destinada a remunerações no Estado diminuiu e não vai aumentar.
Mais uma vez, em Portugal parece funcionar a máxima de que o provisório é definitivo. E os cortes nas pensões e nos salários que foram anunciados como temporários são agora assumidamente para ficar. Esta semana tornou-se oficial no Documento de Estratégia Orçamental que os cortes sobre as pensões serão permanentes nas prestações sociais acima de 1000 euros por mês, variando gradualmente entre 2% e 3,5%.
Se o Documento de Estratégia Orçamental não traz nada de novo sobre as intenções de cortes nos salários do Estado e nas pensões em geral, a surpresa vem dos novos aumentos de impostos agora anunciados. Por um lado, de impostos sobre o consumo, com uma subida do IVA de 23% para 23,25% – o que dirão Pires de Lima e Paulo Portas depois da propalada promessa da descida do IVA e do IRS feita pela direcção do CDS eleita no congresso de Oliveira do Bairro?
Além da subida do IVA, foi anunciada uma subida da taxa social única (TSU) paga pelos trabalhadores, que passa assim de 11% para 11,25%. Depois da ameaça de disparar a TSU dos trabalhadores, que foi o rastilho para a manifestação que a 15 de Setembro de 2012 trouxe às ruas de Portugal meio milhão de pessoas, o Governo não desiste de aumentar a contribuição dos trabalhadores para a Segurança Social e não toca na contribuição que é paga pelos empregadores.
A taxação do trabalho mantém-se, aliás, na estratégia orçamental que agora é oficializada e que serve de padrão e regra para os próximos Orçamentos do Estado. O corte salarial dos funcionários públicos, que atinge actualmente uma margem de variação entre 2,5% e 12% nos salários mensais a partir de 675 euros, é reposto apenas numa parcela de 20% no vencimento de cada trabalhador.
Mas esta reposição de 20%, explicava o PÚBLICO, só parece estar garantida para 2015, já que de futuro ela dependerá “da capacidade de o Estado manter o valor da massa salarial na administração pública, nomeadamente através da diminuição de efectivos” (PÚBLICO online 01/05/2012).
Assim, há uma garantia de que um quinto dos cortes salariais dos funcionários públicos são repostos, mas, a partir daí, a repetição deste patamar durante mais quatro anos depende da diminuição do número de efectivos na administração pública. Introduz assim uma lógica segundo a qual quem quer ver o seu salário reposto dentro de cinco anos passa a desejar ardentemente que o colega do lado seja despedido.
Explicando melhor: a massa salarial de que o Estado passa a dispor para garantir as remunerações dos seus trabalhadores nos próximos anos é a que estará em vigor em 2015 e os ordenados só voltarão ao que eram antes dos cortes em função do sucesso da diminuição do número de funcionários públicos.
Por conhecer – ou melhor por fazer – está a mais que prometida reforma do Estado, bem como a anunciada reforma da Segurança Social. Sobre isto o Governo e os seus documentos mantêm o silêncio. Em relação à Segurança Social, a dita “reforma” é clara: mudam as fontes de financiamento, recaindo este num aumento da TSU dos trabalhadores e do IVA, para além da manutenção da diminuição das pensões. Quanto à reforma do Estado, também ficou claro que o Governo se limitou a reduzir o valor do trabalho.
Jornalista

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