sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A CULTURA AJUDA A ENTENDER MELHOR AS COISAS


A realidade nunca é a preto e branco, é sempre mais complexa, e para a entender são necessários vários focos para a iluminar. Os dois artigos que divulgamos, de Miguel Real, - um autor que tem vários livros sobre nós, os portugueses e a sua história, que tenho lido com proveito e prazer - , são, creio, elucidativos. Boa leitura, embora extensa vale a pena.


Identidade histórica em mudança (I)

Por Miguel Real

29/01/2015 -

A modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais.

Sociologicamente, a modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais:

1. – operou-se uma profundíssima alteração nos sectores produtivos da economia, com a terciarização desta a suplantar os sectores primário e secundário. A imagem representativa de Portugal abandonou a sua faceta rural e bucólica, carregada de pobreza, para se evidenciar como a de um país moderno, informatizado, europeu, turístico, de economia totalmente aberta ao exterior, acolhedora de imigrantes;

2. – operou-se uma profundíssima alteração na estrutura política do Estado com a passagem de um sistema hierárquico vertical e corporativista para um sistema de representação parlamentar democrática ao modo da Europa Ocidental;

3.  – operou-se uma profundíssima alteração do lugar geográfico e estratégico internacional de Portugal, deslocando-se o ângulo de actuação e reacção do Atlântico (o Império) para a Europa; resta, dos tempos passados, ligando o passado ao presente e a história à identidade nacional, os vagos traços de uma incerta Lusofonia;

4. – operou-se uma profundíssima alteração dos vínculos sociais institucionais tradicionais da cultura e dos hábitos dos portugueses (como a antiga ligação umbilical à Igreja e o predomínio de uma família clássica), propiciada pela aceleradíssima laicização e até profanização dos costumes obviada pela avalanche de novos padrões comportamentais individualistas, relativistas e niilistas advindos da Europa e dos Estados Unidos da América;

5. – operou-se uma profundíssima alteração ética na hierarquia social com desvalimento das antigas profissões nobres, como a do professor, do político, do militar, do sacerdote e do intelectual, substituídas pelo técnico especialista em economia e em gestão, pelo técnico em aplicações de ciência experimental e pelo comentador televisivo, ora considerados de superior valia e utilidade.

De certo modo, estas cinco alterações profundas no tecido social e na mentalidade nacional constituíram-se como realizações factuais da modernização europeia de Portugal e, com elas, o país actualizou-se historicamente e europeizou-se socialmente.

Assim, na segunda década do século XXI, o retrato histórico de Portugal figura já o resultado do violentíssimo choque social e cultural entre duas forças motrizes de natureza social, bem como o efeito deste choque na consciência do cidadão português:

1. – Tempo longo – A primeira força social imparável que tem regido a sociedade portuguesa como um todo consiste na esforçada modernização europeia de Portugal desde 1980 (assinatura do tratado de pré-adesão de Portugal à Comunidade Europeia) até ao final do século, princípio do XXI, ambição colectiva desenhada desde o consulado do Marquês de Pombal e só realizada plenamente na actualidade. Esta primeira força, mais do que um movimento social, constituiu, verdadeiramente, uma autêntica vaga histórica que atravessou o Constitucionalismo Liberal, a Regeneração e a I República, foi bloqueada ao longo do Estado Novo por uma visão política rural, imperial e católica da sociedade, e apenas integralmente executada e efectivada de um modo global após 1980.

O movimento social de modernização europeia de Portugal, como cumprimento histórico, correspondeu à inspiração dos três “Dês” postulados pelo Movimento das Forças Armadas, “Descolonizar, Democratizar e Desenvolver”, assumindo um tempo social novo, destituído de Império, sem prevalência da religião sobre os comportamentos individuais e sociais, sem regime de condicionamento industrial, desenvolvendo uma intensa terciarização dos sectores produtivos e uma esperançosa legislação igualitarista, fundada na justiça social, e permitiu, por um lado, a criação e a consolidação de uma fortíssima classe média e, por outro, um tempo de inovação cultural e científico, ambos sem paralelo no Portugal do século XX. Constituiu o tempo de ouro ou o tempo luminoso (cerca de um quarto de século) de justiça social, de coesão e igualdade sociais, de fortíssima mobilidade social (filhos de operários e pequenos agricultores tornam-se professores, médicos, advogados, economistas), do impetuoso arranque de uma nova visão cultural e estética de Portugal, de uma intensíssima actualização de todos os sectores sociais, económicos, académicos, culturais, científicos, desportivos e religiosos. Desde a Regeneração de Fontes Pereira de Melo que não se viveu tão bem nem tão “modernamente” ou “europeiamente” em Portugal como no período entre 1980 e o final do século. De certo modo, em quase todos os indicadores de qualidade de vida, atingiram-se desempenhos que nos colocavam, no princípio do século XXI, numa posição mediana nas estatísticas europeias, tendo Portugal partido em 1974, para a quase totalidade delas, de um lugar altamente subalterno, mesmo terceiro-mundista.

2. – Tempo conjuntural – A segunda força social opõe-se à primeira e deriva directamente, não da sociedade civil e das aspirações culturais e históricas de tempo longo, mas da recente administração do Estado, evidenciando uma regulação social que tem apenas em conta – e apenas – a saúde orçamental das finanças públicas e as aspirações tecnocráticas por que a elite político-administrativa, quebrando a mobilidade social e restaurando o tradicional estado de coisas hierárquico em Portugal, fortemente dividido entre “senhores” e subordinados, intenta reduzir a maioria da população à luz de uma visão burocrata, monetarista e tecnocrata da Europa. Este segundo movimento social inicia-se com o discurso da “tanga” de Durão Barroso (2002), opõe-se frontalmente às dinâmicas históricas criadas pelo primeiro movimento e prolonga-se até aos dias de hoje, deixando, porém e de novo, o país de “tanga”, agora não o Estado, mas a quase totalidade da população e das empresas de pequena dimensão (a maioria). O segundo movimento social, ao contrário do primeiro, que perfazia parte integrante do processo histórico europeu, há muito realizado na maior parte dos países seus constituintes e de certo modo constitutivo de um “desígnio” nacional (apenas o Partido Comunista votou contra a adesão de Portugal à Comunidade Europeia), é artificial, criado por problemas financeiros do Estado (crise da dívida soberana) e foi enfrentado, em Portugal, por uma fanática política de austeridade (dizemos “fanática” porque ultrapassou as metas de austeridade impostas pelo memorando de entendimento, subordinando todas as actividades e sectores do Estado e da sociedade a uma obstinação encarniçada de poupança orçamental e de brutal aumento do impostos) que empobreceu a maioria da população, privilegiou o sector financeiro e, paradoxo dos paradoxos, não concedeu um excedente de saúde contabilística ao Estado.

De um modo muito claro, tão explícito como nunca houvera em Portugal, propõe-se a adesão a um neoliberalismo global que deposita o país nas mãos de um mercado financeiro (quase) totalmente desregulado e de uma economia concorrencial de cunho selvagem (a tal que mata, segundo o Papa Francisco).

 
Identidade histórica em mudança (II)
Por Miguel Real
30/01/2015 -
A modernização europeia de Portugal entre 1980 e 2000 provocou uma profundíssima alteração nas suas instituições fundamentais.
2. – Actualidade – Com efeito, a imagem que o português possuía da Europa alterou-se radicalmente e consolidou-se negativamente entre 2008 e 2015. Se a antiga imagem da Europa se identificava, do ponto de vista histórico e civilizacional, com uma sociedade fundada na justiça social, no progresso económico, na qualidade de vida e no desenvolvimento científico e tecnológico, hoje, em função da consolidação do euro como moeda comunitária e da imposição alemã da regra de ouro das finanças públicas (máximo de 3% do défice), ela identifica-se com a existência de dois blocos de países, o primeiro capitaneado inflexivelmente pela Alemanha, constituído pelos Estados mais ricos da Europa Central e do Norte, e o segundo, para além da Irlanda, por um agrupamento de países empobrecidos do Sul (Grécia, Portugal, Espanha, Chipre, de certo modo a Itália), em perda acelerada de soberania, que, para fazer face às despesas correntes do Estado, se tornaram “eternamente” devedores dos primeiros através de uma troika de instituições financeiras (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). A nova imagem da Europa comunitária identifica-se, na mente dos portugueses, com acções penalizadoras, mesmo mortificantes, geradoras de desemprego de longa duração e de emigração forçada, desigualdade entre países e menor justiça social para as populações mais desfavorecidas. Existe, assim, uma diferença abissal entre o que Portugal esperava da Europa em 1980 e o que hoje espera, gerando sentimentos contraditórios – no primeiro momento, um optimismo voluntarioso; no segundo, um pessimismo desencorajante. Tendo a actual elite política e administrativa como principal motor de acção, assistiu-se em Portugal, como doutrina dominante, imposta pelas necessidades de financiamento do Estado, entre 2008 e 2014, a um inaudito e escandaloso empobrecimento da população com expressa destruição da recente e ainda economicamente insegura classe média. Neste sentido, o movimento geral social que enquadra a actualidade directa dos anos mais recentes reside, justamente, no choque social frontal havido entre as duas forças ou os dois movimentos sociais anteriores, gerando um país despido de identidade histórica própria, um país sonâmbulo, perplexo e petrificado, permanentemente em estado de choque.
A diferença radical entre a modernização europeia alcançada entre 1980 e 2000 e as políticas públicas desenvolvidas entre o princípio do século e 2014 pode ser sintetizada, de uma maneira simbólica mas muito expressiva, pela diferença de posição de Portugal no Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela Organização das Nações Unidas, que estabelece a qualidade de vida dos povos (educação, saúde, esperança de vida, riqueza…) entre 2002 e 2012. Naqueles anos, Portugal encontrava-se numa honrosa 23.ª posição, situado entre os países mais desenvolvidos; dez anos depois, encontra-se no 43.º lugar. A primeira posição reflecte os resultados do movimento de modernização europeia de Portugal; a segunda reflecte os resultados do segundo movimento social, de retracção no avanço de uma sociedade tendencialmente comunitária (a lei expressa o bem comum e não os interesses do Estado) e de enorme mobilidade social. Com efeito, em menos de 15 anos do século XXI, Portugal perdeu 20 lugares, o que significa que foi ultrapassado por outros tantos países.
A destruição dos resultados sociais atingidos pela modernização europeia de Portugal que os governos de Portugal empreenderam este século, retirando a esperança de um futuro estável para as famílias portuguesas e uma visão optimista de futuro para a maioria da juventude não pertencente à elite política e empresarial, conduziu à introdução maciça e acelerada de novos valores (emergidos, sem dúvida, através da intensa promoção do consumismo e do individualismo gerados pelo consulado de Cavaco Silva à frente do Governo) e à perda de referentes éticos e culturais do passado, como o valor do trabalho, o valor da amizade, o valor da poupança, o valor da honestidade, o valor da espiritualidade e da transcendência, o valor do saber desinteressado, o valor da memória histórica e cultural, substituídos por valores hedonistas (o prazer e a realização individuais acima de tudo, que é o mesmo que dizer, em geral, o dinheiro acima de tudo), valores técnicos de eficiência e de competição (de concorrência, no sentido em que invariavelmente ganha quem nasceu em berço de ouro e possui uma formação superior e conhecimentos pessoais no empresariado e nos partidos instalados, os restantes forçados a contentarem-se com empregos rotineiros e vencimentos débeis, sem esperança de que as suas qualidades sejam reconhecidas e possam atingir um dia um estatuto financeiro superior), niilistas (isto é, uma multiplicidade infinita de valores, nenhum dos quais de superior valia ao do dinheiro e do prazer, ambos medidos sobretudo pela ostentação de bens) e individualistas (a sociedade não se constitui como uma comunidade coesa solidária, mas como um agregado ou uma soma de valor nulo de indivíduos e todas as políticas são firmadas em nome da primazia do indivíduo e dos seus interesses e desejos).
Parado no meio do caminho da sua realização europeia, é forçoso que Portugal retome a sua caminhada histórica. Fazemos votos para que 2015 seja o ano desta retomada.
Escritor
 
 
 

 

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