segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

 





2022 um ano decisivo para a democracia nos EUA

Nas colunas dos mais importantes jornais norte-americanos fala-se abertamente sobre os riscos de uma guerra civil nos Estados Unidos. Em 2022, esses avisos vão ser postos à prova por uma série de decisões do Supremo Tribunal e pelas eleições intercalares de Novembro.

 

Alexandre Martins

27 de Dezembro de 2021

Um ano depois da invasão da sede do Congresso norte-americano por apoiantes de um Presidente dos Estados Unidos em exercício de funções, a corrosão acelerada da democracia americana é hoje uma realidade sobre a qual trabalham vários observadores e estudiosos independentes.

Em Janeiro de 2021, nos dias que se seguiram à invasão do Capitólio por cidadãos norte-americanos — um episódio sem precedentes na História dos EUA —, os discursos de condenação do ataque, por parte dos líderes do Partido Republicano, criaram a esperança de que o processo de deterioração da democracia podia ser revertido.

“Cidadãos americanos atacaram o seu próprio Governo”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, na votação final do segundo processo de destituição de Donald Trump, a 13 de Fevereiro de 2021. “Agiram dessa forma, porque foram alimentados com falsidades delirantes pelo homem mais poderoso na Terra — que estava zangado por ter perdido uma eleição.”

No mesmo dia, McConnell votaria contra a condenação de Trump, permitindo que o responsável moral pelo ataque ao Capitólio (segundo as suas próprias palavras) pudesse voltar a candidatar-se à Casa Branca em 2024. Mas havia a esperança de que o discurso do líder republicano fosse suficiente para trazer de volta à realidade os eleitores que acreditaram nas “falsidades delirantes” de Trump (também segundo as suas palavras de McConnell).

De acordo com as leituras mais optimistas da altura, as queixas de fraude eleitoral (nunca provadas em dezenas de processos nos tribunais e desmentidas por todas as recontagens e auditorias, incluindo por apoiantes de Trump) iam acabar por desaparecer com o passar do tempo, como tantas outras crises políticas e constitucionais no passado — à excepção dos anos que antecederam a guerra civil norte-americana, de 1861-1865.

“Sobrevivência do país”

Se o ano de 2021 marcou o fim da ilusão de que Joe Biden — ou, para esse efeito, Barack Obama, Oprah Winfrey ou Lincoln ressuscitado — seria capaz de salvar os EUA de uma corrida acelerada em direcção a um futuro potencialmente explosivo, o ano de 2022 será decisivo para se perceber até que ponto ainda é possível salvar a democracia americana de uma divisão tão profunda como a que originou a guerra civil de 1861-1865.

Numa sondagem da Universidade de Harvard, publicada no início de Dezembro, só 7% dos jovens norte-americanos dos 18 aos 29 anos consideram que o estado da democracia no país é “saudável”. A maioria, 52%, diz que a democracia está “em apuros”, ou é mesmo já uma “democracia falhada”.

E a percentagem é muito mais elevada entre os jovens republicanos do que entre democratas e independentes — o que reforça a ideia de que as queixas infundadas de fraude eleitoral lançadas por Trump passaram a fazer parte das crenças mais profundas no Partido Republicano. Segundo a sondagem, 70% dos jovens republicanos dizem que a democracia norte-americana está em risco, e 50% pensam que há pelo menos 50% de hipóteses de virem a assistir a uma guerra civil no seu tempo de vida.

Numa outra sondagem, da Universidade da Virgínia, publicada em Outubro, mais de 80% dos inquiridos em cada um dos partidos dizem que os representantes eleitos do partido adversário representam “um perigo iminente para a democracia americana”.

“Não é nenhum exagero dizer que é a sobrevivência do país que está em jogo”, diz Dana Milbank, um colunista do The Washington Post que foi correspondente na Casa Branca durante a Administração de George W. Bush.

“Se conhecem pessoas que ainda estão em negação sobre a crise da democracia americana”, continua Milbank no seu artigo, publicado a 17 de Dezembro, “tenham a gentileza de lhes tirar a cabeça da areia durante o tempo suficiente para que ouçam esta mensagem: uma nova descoberta surpreendente, feita por uma das principais autoridades do país em guerras civis no estrangeiro, diz que nós estamos à beira da nossa própria guerra civil.”

A descoberta a que o colunista do Post se refere faz parte de um livro com publicação agendada para Janeiro de 2022, escrito por Barbara F. Walter, uma professora de Ciência Política na Universidade da Califórnia que integra um painel de aconselhamento da CIA sobre a instabilidade nos vários países do mundo — a Political Instability Task Force.

“Ninguém quer acreditar que a sua amada democracia está em declínio, nem que esteja a caminhar para uma guerra”, diz Walter. “Mas se você fosse um analista de um país estrangeiro atento aos acontecimentos na América — como se estivesse a olhar para a Ucrânia, a Costa do Marfim ou a Venezuela —, iria usar uma lista predefinida para avaliar as condições que tornam provável o início de uma guerra civil. E iria descobrir que os Estados Unidos, uma democracia fundada há mais de dois séculos, entrou num terreno muito perigoso.”

Segundo a análise de Walter, os EUA já passaram pelas fases de “pré-insurgência” e de “conflito incipiente” — duas das três categorias que o seu painel usa para avaliar os riscos de uma guerra civil em qualquer outro país no mundo. “Só o tempo dirá”, acrescenta Milbank, “se a fase final, a da ‘insurgência aberta’, começou com a invasão do Capitólio.”

Supremo e eleições

Em 2022, há pelo menos dois acontecimentos que devem ser acompanhados com atenção para se perceber se os avisos catastrofistas sobre o futuro da democracia americana vão ficar mais perto de se tornarem realidade: a decisão final do Supremo Tribunal dos EUA sobre o direito ao aborto no país, que vai ser conhecida em Junho ou Julho; e as eleições intercalares de Novembro.

Numa audiência preliminar, no início de Dezembro, a maioria conservadora no Supremo adiantou que pode vir a devolver às assembleias legislativas dos 50 estados norte-americanos a autoridade para decidirem, cada uma por si, em que circunstâncias podem as mulheres ter direito a um aborto em condições de segurança.

Na prática, essa decisão iria pôr fim à consagração da interrupção da gravidez, em determinadas circunstâncias, como um direito constitucional — que existe nos EUA desde 1973. Ao mesmo tempo, aprofundaria ainda mais as divisões no país, no auge das campanhas eleitorais.

E as eleições de Novembro de 2022 são vistas, a esta distância, como muito importantes para o futuro da democracia dos EUA, apenas dois anos antes da eleição presidencial de 2024.

É provável que o Partido Republicano recupere a maioria nas duas câmaras do Congresso, o que lhe dará ainda mais margem de manobra para continuar a aprovar, nos estados mais conservadores, leis eleitorais que tornam legais muitas das pressões feitas por Trump, em 2020, no sentido de impedir a vitória de Biden.

“Na eleição presidencial de 2024, não haverá uma repetição dos acontecimentos de 6 de Janeiro de 2021”, diz Lawrence Douglas, professor de Direito na Universidade de Amherst, num artigo publicado no jornal Guardian, a 17 de Dezembro. “Quando o Congresso abrir os votos do Colégio Eleitoral, a 6 de Janeiro de 2025, o golpe estará consumado. Se isso acontecer, é porque o golpe foi preparado antecipadamente nos gabinetes dos responsáveis eleitorais nos estados mais disputados. E isso está a ser escrito neste preciso momento.”

Em Junho de 2020, o mesmo Lawrence Douglas dizia, em entrevista ao PÚBLICO, que era “impossível imaginar Trump a aceitar uma derrota nas eleições” — o que poucos se atreviam a dar como certo na altura, e que viria a acontecer cinco meses mais tarde.

tp.ocilbup@snitram.erdnaxela


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