terça-feira, 25 de janeiro de 2022


 O Liberalismo nunca se apresenta aberta e francamente, envolve a "mensagem" numa roupagem linguística que esconde os verdadeiros objectivos, em textos longos e fechados que cansam e fazem desistir os menos habituados a estas armadilhas. É um conto do vigário das classes da "ma$$a". O artigo que se publica desnuda a figura e mostra bem as garras do sujeito "liberal".

MC


Neoliberalismo à portuguesa I

O propósito deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há.

Rúben Leitão Serém

23 de Janeiro de 2022

As eleições de 2022 representam um marco histórico para o neoliberalismo português. De facto, esta é a altura ideal para estudar a Iniciativa Liberal (IL). Ou seja, após ter elegido um deputado e no momento em que procura conciliar uma ideologia elitista com ambições de crescimento, o IL não conseguiu ainda discernir com clareza absoluta entre as propostas que devem ser (por agora) abandonadas, aquelas que podem ser ocultadas através do recurso a linguagem metafórica, e as que merecem plano de destaque.

Um dos exemplos de projecto arquivado é a proposta de obrigar os estudantes universitários a financiarem os seus cursos, o que não constitui surpresa se recordarmos que Carlos Guimarães Pinto já tinha criticado a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano como um desperdício de recursos e um ataque à “liberdade de escolha” das famílias. É um recuo táctico, mas a intenção de quebrar o único elevador social funcional em Portugal é mantido. Em suma, é o ciclo em que o purismo ideológico casa com o pragmatismo táctico.

Já as metáforas e chavões servem para camuflar não só a indigência intelectual de Guimarães Pinto e outros, como também políticas mais impopulares. Vamos por partes. Não obstante a narrativa neoliberal de um país a caminhar para a autocracia, o respeito pela liberdade é consensual no espectro político democrático. Portanto, quando o termo liberdade é repetido até à exaustão por uma força política emergente é porque esta procura imprimir-lhe um conceito novo ao mesmo tempo que tenta aproveitar-se da unanimidade em torno da definição clássica. Quem, afinal, é contra a liberdade?

Mas, que “liberdade” é esta que os neoliberais vêem como estando sob ameaça constante? Numa das raras ocasiões em que um militante da IL se viu obrigado a clarificar um chavão (o significado de “visão liberal para a Presidência da República”), Tiago Mayan apresentou os estados de emergência como um assalto à “liberdade”. Faltou adicionar o óbvio, que uma sociedade democrática implica um equilíbrio entre o bem comum e a liberdade individual. No entanto, os neoliberais rejeitam conceitos tão básicos como o de justiça social – “uma miragem”, segundo Hayek – e da sua ausência cercear a liberdade de muitos, incluindo o direito à vida.

Para melhor definir a concepção neoliberal de “liberdade” (por isso o uso de aspas), é importante revisitar os seus alicerces ideológicos. O neoliberalismo assenta numa série de pressupostos simples. O primeiro é o de que todos os humanos são seres egoístas que apenas seguem os seus interesses. Importa realçar que os neoliberais não vêem isto como uma teoria mas antes, segundo Cotrim de Figueiredo, como o âmago da “natureza humana”. Que tal premissa tenha sido refutada por psicólogos sociais é imaterial.

O segundo pressuposto é o de que o mercado livre é o local onde todos estes interesses confluem e se digladiam, resultando numa harmonia perfeita. E, porque o mercado é livre, qualquer ingerência no mesmo constitui um ataque à “liberdade”. A conclusão lógica, segundo Hayek, é a de que uma elite assume o poder, substituindo-se à democracia, mas salvaguardando a “liberdade”.

Menos explícito que Hayek mas igualmente dogmático, Cotrim de Figueiredo afirmou num debate televisivo que a proposta da IL de abolir o salário mínimo nacional e substituí-lo por um salário mínimo municipal é de elementar justiça porque a situação actual limita a “liberdade” dos municípios. Ficámos a saber que os municípios se tornaram indivíduos merecedores de liberdades. Ficou também claro que a “liberdade” é, ao mesmo tempo, uma palavra elástica, para ser utilizada de forma cínica, mas também um termo cuja definição é bastante rígida: a “liberdade” é a económica e esta é absoluta. Não há bem comum ou outras liberdades que possam restringi-la.

Em vez de relembrar o trivial, tal como o facto de que existem áreas da sociedade que devem ser guiadas pela procura do bem comum e não pelo princípio do lucro, ou até mesmo recapitular os inúmeros exemplos práticos da falência da doutrina da infalibilidade do mercado, creio que será mais elucidativo expor o argumento da IL para a existência de “falhas de mercado”. Importa sublinhar que este é um conceito em tudo nebuloso excepto no facto de estas “falhas” não serem sistémicas e que a culpa última é sempre do Estado: ou porque interferiu no mercado ou porque não cumpriu a sua função de regulador, isto apesar de a IL afirmar que o “mercado é, ele próprio, uma forma de regulação, assente numa lógica de Liberdade”​.

As soluções são absurdamente fascinantes. Por exemplo, a corrupção deve ser combatida privatizando e desregulando ainda mais, porque a corrupção existe apenas na esfera do Estado. E isto tudo é a definição de uma ideologia extremista: simplista, dogmática, radical, absoluta e impenetrável a qualquer lógica.

Nunca, nos cinquenta anos da democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores televisivos, cronistas e até de um jornal

Falta clarificar um termo: o Estado. Para os neoliberais, o Estado é simultaneamente uma abstracção e uma ameaça real – a maior de todas – à “liberdade”. Ora, numa democracia, o Estado somos nós. Para ser mais preciso, é a estrutura administrativa do país, tutelada por um governo eleito através de sufrágio universal. É o único garante, se bem que falível, de que a vontade popular é respeitada. É também a maior salvaguarda, mesmo que frágil, de que uma oligarquia económica não transforme as relações laborais em relações feudais. E é precisamente por constituir uma ameaça a esta “liberdade” que é tão odiado.

Esta mundivisão extremista é explanada com particular clarividência na hora das derrotas. Como racionalizar a rejeição desta não-ideologia, desta simples materialização política da “natureza humana”? Qual, então, a causa para a derrocada do neoliberalismo suave do PSD nas eleições autárquicas de 2017 (o então presidente da IL negava, em 2018, que o governo passista tivesse sido “liberal”), ou a mais recente derrota de Paulo Rangel nas eleições internas do partido após ter sido ungido como vencedor antecipado pelo comentariado neoliberal? Segundo o mesmo, só existem duas leituras possíveis: ou a mensagem “liberal” foi mal transmitida ou o público é asinino. Libertos de constrangimentos eleitorais, ressurgem os preconceitos de classe.

Entre as primeiras declarações de Cotrim de Figueiredo após as legislativas de 2019 consta esta pérola: “O PS sabe que mantendo um país amorfo e resignado tem um grupo de pobres, desesperados e dependentes do Estado que lhe irão dar o voto. A pobreza de muitos é o que segura o PS ao poder.” Resumindo, os pobres são irracionais e vivem alegremente da caridade, por isso é que votam em quem os mantém na penúria. É a explicação possível da parte de quem julga que resolve a miséria abolindo o salário mínimo nacional e acredita que basta omitir tal medida do sumário do seu programa eleitoral para ludibriar as massas embrutecidas.

A soberba de Cotrim de Figueiredo é, contudo, compreensível. Nunca, nos cinquenta anos da democracia portuguesa, houve um partido tão pequeno que usufruísse de tanta notoriedade pública, podendo contar com apoio explícito de vários comentadores televisivos, cronistas e até de um jornal. Aliás, o Observador encarna várias das contradições do neoliberalismo: um jornal cujo valor supremo é a “liberdade” mas onde todos os cronistas são de direita; onde reina a meritocracia, mas onde muitos desses colunistas possuem um trajecto profissional medíocre; um jornal que promove a civilidade, mas onde abundam visões apocalípticas de um país a resvalar para o comunismo; e onde a noção de génio consiste em citar acriticamente os ideólogos do neoliberalismo como se de uma verdade divina se tratasse. O recurso constante a elogios mútuos e a argumentos de autoridade desvelam mais outra contradição: o corporativismo de classe.

Confrontado com a crise de 2008, Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal norte-americana, afirmou que a sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este credo reentre no panorama político nacional em 2022. Mas não é

E isto leva-nos para a última questão. O propósito deste neoliberalismo à portuguesa passa não só por perpetuar, mas também por ampliar, o domínio de uma classe através da eliminação de todos os direitos e protecções sociais. É uma doutrina repleta de contradições, mas é o que há. Se antes existia o direito divino dos reis, e isso bastou até ao século XIX, hoje temos um neoliberalismo que resiste até à sua declaração de óbito.

Confrontado com a crise de 2008, Alan Greenspan, o então chefe da Reserva Federal norte-americana, afirmou que a sua ideologia tinha falhado. Pode parecer anacrónico que este credo reentre no panorama político nacional em 2022. Mas não é, porque estamos perante o projecto político de uma classe que, cinco décadas após o 25 de Abril, acredita que a democracia foi longe demais em termos de justiça social e económica, e que é necessário um “PREC liberal”.

Parafraseando o título de um livro assinado pelo primeiro presidente da IL, Obrigado pela democracia, agora queremos liberdade. Para o neoliberalismo à portuguesa chegou a hora de substituir a liberdade pela “liberdade”.

Rúben Leitão Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham



Neoliberalismo à portuguesa II

O programa da Iniciativa Liberal é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais em termos de justiça social e económica.

Rúben Leitão Serém

24 de Janeiro de 2022

Por interesse profissional, li as 614 páginas do programa eleitoral da Iniciativa Liberal. Que este partido tenha produzido um paradigma de documento burocrático é apenas uma das muitas contradições do neoliberalismo. Proponho, então, que naveguemos as águas opacas de um texto repleto de informação duplicada, com uma mescla de propostas vagas com outras absurdamente detalhadas e saturado de lugares-comuns e muitos anglicismos.

Por isto tudo, importa sublinhar que, na mundivisão neoliberal, a burocracia é um monopólio do Estado e que a sua eliminação passa pela constante revisão de procedimentos e monitorização de funcionários. Ou seja, mais burocracia. Mas não se julgue que esta assenta num “corte cego de custos”, até porque existem planos para promover “salários competitivos na Administração Pública, em especial nos seus níveis mais elevados”, à custa “de uma racionalização faseada do número de funcionários”. Bastava ter escrito “despedimento colectivo” e ter-se-iam economizado algumas palavras.

Para se ter ideias não basta dizê-lo, há que tê-las. O autoproclamado “partido das ideias” resume-se a um dogma único – o mercado livre é infalível e o Estado é a sua némesis –, o que leva a conclusões tão singulares como afirmar que não existe um problema de especulação imobiliária em Portugal. Antes pelo contrário, urge “libertar o sector da habitação” que se encontra prisioneiro às mãos do Estado.

Seguindo o mesmo raciocínio, a IL exige que se revogue a lei que estabelece um limite de sete alojamentos locais por proprietário nas zonas de contenção, a abolição do Imposto Municipal sobre Transacções Onerosas de Imóveis, entre outros, e que o Estado se desfaça dos seus imóveis devolutos. Entretanto, a questão das residências universitárias está já a ser resolvida pelo privado e, “com tempo, até os estudantes mais carenciados beneficiarão desta dinâmica de mercado” que se quer livre, pois “a função do Estado é apoiar quem mais necessita e não concorrer”, mesmo em casos em que apoiar implica interferir.

A bizarria argumentativa não se fica por aqui. É quase impossível descrever a fé dos neoliberais no mercado. Por exemplo, a proposta da IL de reforma do sistema de representação proporcional na Assembleia da República é exequível porque, e eis a tese, “tal como no mercado, a concorrência funcionará”. Todavia, e no mesmo programa, lemos a antítese: “as pressões concorrenciais tenderiam a levar as entidades bancárias a agir de forma nem sempre consonante com a prossecução” da estabilidade do sistema financeiro. A conclusão, desprovida tanto de síntese como de sentido, é de que a culpa é do Estado, porque este ou interfere, ou não regula. Em suma, não há bancos maus, apenas Estado péssimo. Encontramo-nos perante um raciocínio circular e à prova de qualquer lógica.

A incoerência atinge novos patamares nas secções sobre o ambiente e mundo rural. “Não se prevê nenhuma compensação financeira aos agricultores” afectados pelas políticas da IL porque a “expetativa não deve ser financeira, mas sim resolver um problema ambiental”. Palavras nobres e corajosas. Contudo, em relação à questão ambiental em si, a solução apresentada é a de mais crescimento económico sem reduzir as emissões.

Importa frisar que os neoliberais não negam as alterações climáticas, apenas rejeitam que esta seja uma emergência. Aliás, e segundo Carlos Guimarães Pinto, um dos portentos intelectuais da IL, o aparecimento de uma consciência ecológica apenas é possível após o país alcançar um certo grau de desenvolvimento económico. De acordo com a mão invisível do PIB, a China deve estar prestes a atingir o nirvana.

Todos os problemas se tornam simples quando a resposta é única. Para a reforma do Estado, a panaceia das privatizações. É um remédio que serve para justificar a capitalização do sistema de pensões (e, a propósito, “promover a participação no mercado de trabalho de pessoas em idade de reforma”); a privatização da RTP, da Caixa Geral de Depósitos e da rede de transportes do Estado; a criação de PPPs na Cultura; o “aumento e desenvolvimento da colaboração com o sector privado” nas embaixadas e “mais liberdade para contratar e despedir” nos consulados. Até a violência doméstica se combate promovendo “o investimento privado na rede de apoio à habitação para vítimas”. O sofrimento é um óptimo negócio.

A “liberdade de escolha” na Saúde e Educação é um tema recorrente e a razão apresentada para legitimar o financiamento massivo de corporações roça o anedótico: “O Estado não financia o privado, financia o aluno” (e o mesmo se aplica ao doente), uma lógica em tudo semelhante à da National Rifle Association: “As armas não matam as pessoas; as pessoas matam-se umas às outras.”

Menos conhecida é a proposta para que a Saúde passe a ser financiada através de uma taxa única sobre os salários, porque a existência de escalões “leva a uma discussão sobre o ritmo de progressividade”. Pelos vistos, a única maneira de evitar um debate enfadonho passa por taxar ricos e pobres por igual. É o argumento possível, mas não o mais inescrupuloso. Este baseia-se na instrumentalização dos mais carenciados para exigir medidas que visam substituir o princípio do bem comum pelo do lucro. Ainda sobre a Saúde, falta concluir que este plano, conjugado com o famoso “choque fiscal”, levará à degradação e eventual destruição do SNS, que é apenas e só o objectivo final da IL. Após isso, teremos a liberdade, mas não a escolha.

Todavia, o exemplo mais crasso de canalização de fundos públicos para o privado é o ainda menos conhecido Plano Ferroviário Nacional, que implicará a construção de centenas de quilómetros de ferrovia para ser depois concedida a privados. A previsível implosão da CP é negada e fundamentada, como já suspeitávamos, numa “dinâmica positiva da competição”. Esta política rentista pode ser resumida numa palavra cada vez mais querida a esta direita – subsidiodependência.

Já a famosa taxa única de IRS de 15% foi apresentada por Cotrim de Figueiredo como uma medida em que “ninguém fica a perder”. Faltou acrescentar que alguns ficarão a ganhar e muito. Ora vejamos: os dois mil milhões de perda de receita fiscal contabilizados pela IL correspondem ao valor cobrado a 4% dos agregados familiares mais ricos. E por falar em liberalidades, falta mencionar que, segundo a IL, o “nosso setor bancário é atualmente alvo de inúmeras medidas punitivas”, logo, é uma questão de justiça que se exija o fim da taxação de “bónus distribuídos a administradores empresariais”.

No caso da taxa única, a Lituânia é apontada com um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. Entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura de melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu

Mas é precisamente na taxa única que reside a chave que decifrará o chavão favorito da IL: “mais crescimento económico” – mas como? Uma das tácticas recorrentes do partido passa por enfatizar que as políticas propostas foram já testadas noutros países. No caso da taxa única, a Lituânia é apontada com um exemplo a seguir, pois ultrapassou Portugal no PIB per capita. De facto, é um caso que merece reflexão. A taxa de suicídio da Lituânia é das mais altas do mundo, sendo uma das causas a desigualdade económica, a segunda mais alta da UE. O sistema de educação pratica dos salários mais baixos da UE enquanto o desempenho académico dos estudantes se encontra abaixo da média da OCDE. Na Saúde, este país tem hoje menos 52 hospitais que em 1990 e a esperança média de vida é seis anos mais baixa do que a portuguesa. Com resultados semelhantes, a Letónia decidiu abandonar a taxa única de IRS em 2018. Por último, entre 1990 e 2020, a Lituânia perdeu um milhão dos seus 3,7 milhões de habitantes. A maioria emigrou à procura de melhores condições de vida. É uma catástrofe demográfica equivalente a uma guerra. Mas o PIB cresceu.

Ainda sobre o tema da desigualdade económica, a reacção da IL aos tumultos sofridos no Chile é sintomática. Em Novembro de 2019, o partido entregou um voto de condenação sobre a violência no país em que o objecto da sua censura não eram as assimetrias económicas que provocaram os protestos, mas “o aumento do preço dos transportes públicos por parte do Governo, uma medida que não se enquadra nos princípios do mercado livre”. Esta negação do impacto da desigualdade, conjugado com as propostas laborais da IL, clarificam categoricamente de que forma o partido pensa colocar “Portugal a crescer”.

Sem surpresas, a IL ambiciona “reduzir a complexidade administrativa nos processos de despedimento individual” e exige mais “flexibilidade na legislação laboral” – bastava ter escrito “precarizar”. Propõe também o fim do decreto do pagamento de horas extraordinárias e, a cereja no topo do bolo, a abolição do salário mínimo nacional e a sua substituição por um salário mínimo municipal. Mais uma vez, o conceito de justiça reaparece para abolir direitos básicos. A IL menciona a injustiça que é poder usufruir do mesmo salário mínimo em Lisboa e em Belmonte. É uma proposição tão espúria como alegar que criar 308 salários mínimos significa desburocratizar, mas é esclarecedora para quem procura entender a mentalidade neoliberal: não são os lisboetas pobres que merecem salários mais altos; são os belmonteses que vivem acima das suas possibilidades.

Vale a pena lembrar que em Portugal o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre respeitável. Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas e blazer

As “perguntas frequentes” do programa da IL são talvez as mais elucidativas, por incluírem questões como: “Mas isto não favorece os mais ricos?” e “Estas reformas não vão prejudicar os mais desfavorecidos?”. O leitor nunca encontra formulações inversas, o que por si é bastante esclarecedor, mas não tanto como o programa de Assistência Social, que ocupa umas modestas seis páginas. A munificência neoliberal abrange a criação de centros de alojamento para os sem-abrigo, mas sempre salvaguardando a “relação custo/qualidade”, senão haverá “cortes automáticos” e, claro, envolvendo o sector privado. A lógica é cristalina: “apoiar os mais desfavorecidos passa por criar as condições necessárias para que haja crescimento económico sustentado”. Encontramo-nos perante a versão neoliberal da máxima pombalina: sepultar os pobres; cuidar dos ricos.

O programa da IL é exactamente aquilo que aparenta ser – um projecto de classe. Ou melhor, a fronda de uma classe que acha que a democracia portuguesa já foi longe demais em termos de justiça social e económica. A aplicação deste programa implicaria o fim da democracia tal e qual como a conhecemos e a implantação de uma versão moderna de uma plutocracia censitária do século XIX. A normalidade com que a direita clássica acolhe a IL no seu regaço e a falta de escrutínio de grande parte da comunicação social não representa nada de novo. Na realidade, existe uma tendência, compreensível dada a sua natureza histriónica em focar a atenção na direita que calça bota cardada. Contudo, vale a pena lembrar que em Portugal o extremismo que conseguiu (e consegue) alcançar o poder foi sempre respeitável. Se ontem trajava cartola e gravata, hoje passeia-se de sapatilhas e blazer.

Rúben Leitão Serém é Assistant Professor na Universidade de Nottingham


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